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Minha pesquisa no adestramento brasileiro

Depois de assistir ao Pan de 2007, eu segui acompanhando a com- petição brasileira da modalidade até conseguir fazer contato com Roger, que me convidou para assistir os campeonatos nacionais em São Paulo, em 2009. Para um acadêmico de classe média como eu, o cenário era bastante novo: um clube de campo enorme em uma área de classe alta da minha cidade, onde pessoas de descendência europeia se reuniam para torcer por seus cavalos. O mais intrigante, porém, foi que toda a competição era em inglês: narração, anúncios, folhetos, nada em português.

Durante os dias em que entrevistei Roger pude conhecer seu chefe, Victor Oliva, e até almoçar com ele, sua ex-esposa, a famosa jogadora de basquete Hortencia, e Roger, que era o único cavaleiro autorizado a comer no restaurante com os proprietários de cavalos. Todos os outros cavaleiros, competidores profi ssionais, foram para outro lugar para comer, muitos tra- zendo sua própria comida em uma marmita e sentando debaixo de uma

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árvore para almoçar. No decorrer do texto fi cará claro como Roger conquis- tou o direito de fazer as refeições com seu chefe ao ganhar poder por meio de seu relacionamento com Nilo. O que se segue é o resultado de minhas conversas com Roger, que se tornaram, com sua autorização expressa, en- trevistas em profundidade (MINICHIELLO, et. al, 1995; DENSCOMBE, 2003). Essas conversas foram conduzidas durante a competição nacional de adestramento.

O negro

“Ninguém, nem eu, imaginaria um neguinho de Mato Grosso do Sul montando um cavalo branco nas Olimpíadas!” A história de Roger é épica, e ele tem consciência disso. Ele tem clareza que se tivesse nascido há dois séculos ele sequer estaria no lugar do cavalo de competição, o qual sempre recebe alimentação e tratamento excelentes; ele teria sido humilhado e usado como tração nas usinas de cana-de-açúcar. Naquela época, ser negro no Brasil signifi cava ser escravo.

Rogério Clementino, 27 anos na época de nossos encontros, nasceu na pequena cidade de Viena, em uma região remota do estado de Mato Grosso. Seu pai faleceu quando Roger era criança, e sua mãe se mudou com ele e suas irmãs para uma fazenda, na qual ele foi criado por seu padrasto, mãe e tias, e onde ele teve contato com todos os tipos de animais. Ele tem pouca educação formal, pois foi forçado a deixar a escola aos 12 anos de idade, quando começou a trabalhar em tempo integral em uma fazenda para ajudar sua mãe. Ele trabalhava com gado e montava touros e cavalos selvagens. Foi então que sua paixão por cavalos começou:

essa paixão pela equitação… veio da minha infância, às vezes eu mon- tava um touro ou um cavalo selvagem, meus irmãos e eu montávamos cavalos de adultos… era uma aventura, uma loucura… mas na minha adolescência, quando eu tinha 14 anos comecei a trabalhar em uma fa- zenda para ajudar minha mãe, e minha vida foi montar cavalos selvagens e touros ... era o meu sonho, e acho que essas aventuras malucas desde cedo me ajudaram muito na competição de adestramento.

Como o salário deste primeiro emprego era muito baixo, aos 14 anos ele decidiu mudar-se para uma cidade vizinha para ganhar mais dinheiro para “ajudar melhor a minha mãe”. Como trabalhador na produção de la- ticínios, ele ainda tinha a chance de galopar alguns cavalos nas fazendas nas quais buscava o leite. Passados alguns meses, Roger partiu para São Paulo para trabalhar como ajudante de Leandro Aparecido, que na época já era um renomado competidor de adestramento. Leandro admirava o trabalho

Capítulo 7 – Cavalgando no arco-íris: masculinidades fl uidas no adestramento brasileiro

e o talento de Roger e o contratou para ajudá-lo a tratar de um garanhão. Roger sempre reconhece Leandro como aquele que lhe deu sua primeira chance de trabalhar um cavalo, um animal espirituoso chamado Romântico (“Eu sempre me lembrarei de Romântico, meu primeiro cavalo, trabalhei e dobrei muito, e depois de 7 meses ele se tornou um cavalo legal”, diz Roger).

Um dia, Leandro comentou que havia um emprego em um rancho distante, o Green Island de Victor Oliva. A decisão tinha que ser imediata. Roger não pensou duas vezes; arrumou sua trouxa e lá se foi novamente em busca de novas oportunidades:

Foi uma oportunidade única, eu tive que aceitar, e eu sempre agarrei as poucas oportunidades da minha vida. Eu deveria ser o ajudante de um cavaleiro já renomado (Fabio Lombardo), mas ele saiu do Green Island assim que eu cheguei, e eu tive que montar Nilo em uma competição. Eu não sabia de nada, mas ganhei a competição contra cavaleiros ex- perientes. Foi Deus, suas mãos, que me ajudaram lá. O senhor Oliva veio até mim e disse que não contrataria outro cavaleiro, e eu seria o cavaleiro ofi cial daquele cavalo.

Foi um momento decisivo na vida de Roger. Ele teve que usar toda sua habilidade para surfar a onda que mudaria sua vida para sempre. Ele era o humilde empregado negro, sem educação ou treinamento. No entanto, naquele momento ele começou a negociar sua posição na hierarquia social daquela fazenda, incluído ai sua posição nas hierarquias de gênero, ou seja, a sua masculinidade. Roger, que era um empregado humilde nas estreba- rias, na parte inferior da hierarquia social e masculina (CONNELL,1995b) daquele contexto, de repente tornou-se fortalecido por seu relacionamento com Nilo. Como Birke e Brandt (2009: 193) afi rmam, os cavalos têm sido parte ativa dos construtos de gênero em torno de seus cavaleiros, e geral- mente “a masculinidade do cavalo (…) refl ete a masculinidade do cavaleiro”. Depois que Victor Oliva lhe disse que ele deveria ser “o cavaleiro ofi cial de Nilo”, Roger exigiu melhores condições de trabalho para que ele pudesse entregar o que o proprietário estava esperando. Ele relatou a conversa com seu chefe deste modo:

Sr. Oliva, eu não sei muito sobre trabalhar com cavalos de competição, eu não tenho nem a técnica nem o tempo para trabalhar este cavalo. No entanto, se o senhor me der um instrutor, se fi zer algum investimento, tenho uma força de vontade maior que a de qualquer outro cavaleiro, no seu sitio e no mundo. Tenho disposição, mas depende do senhor. E ele começou a fazer isso! Ele pagou um instrutor para mim, e eu trabalhei duro, cara, trabalhei o máximo que podia e um pouco mais!

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Ao falar com Oliva dessa maneira, Roger estabeleceu uma conversa que se tornaria parte essencial do relacionamento dos três protagonistas dessa história.

O branco

Nilo V.O. é um garanhão branco lusitano, com cernelha de 1,62m, nascido em 1994 na fazenda Green Island. No mundo equestre, Nilo luta por espaço contra as raças europeias mais tradicionais. No entanto, mesmo entre os outros lusitanos do rancho, Nilo não era considerado valioso antes da chegada de Roger:

Nilo era um cavalo com o qual ninguém se importava. Quando cheguei no rancho, ele era um cavalo pesado, difícil de montar, então ninguém trabalhava nele. Só as crianças fi cavam com ele, mais bullying o animal do que cavalgando. Os melhores cavalos iam para os cavaleiros profi ssio- nais que não queriam trabalhar com o Nilo. Então, ele foi abandonado, e eu o escolhi. Eu pensei que, como ninguém o queria, ele seria o melhor para eu trabalhar e aprender alguma coisa.

Roger começou a trabalhar com Nilo e, passo a passo, as pessoas começaram a enxerga-lo como um cavalo diferente. De um ‘ninguém’ sem valor, Nilo começou a ser admirado como um garanhão. Ao mesmo tempo, Roger também passou a ser visto como mais do que um simples empregado. A relação transformava a ambos. Não havia mais “cavalo puro ou humano puro” (GAME, 2001, p. 3). Eles desenvolveram uma “comunicação entre espécies” diária, que é como as pessoas que vivem com animais se conectam com estes (GAME, 2001).

Sua conexão era, claro, mediada pela prática do adestramento. As cadências dos movimentos do adestramento, o controle que Roger tinha sobre Nilo (com a anuência deste), a criação de um “ritmo cavalo-huma- no” (GAME, 2001, p. 3); em suma, a encenação e performance de seus corpos, formaram um “centauro vivo” (GAME, 2001, p. 3). Seus corpos eram mediadores em seu relacionamento (BROWN, 2006). Através de sua conexão incorporada, ou melhor, por meio de sua “coencarnação”, Nilo e Roger estavam transformando seu mundo e, conforme veremos logo adian- te, transformando a ordem de gênero em torno deles.

Capítulo 7 – Cavalgando no arco-íris: masculinidades fl uidas no adestramento brasileiro

O verde

Eu me refi ro a Victor Oliva como o ‘verde’ não apenas porque ele é o proprietário do rancho Green Island, onde esta história começou, mas também porque ele possui as verdinhas, os dólares que bancam Nilo, Roger e sua própria condição social.

José Victor Oliva, em sua própria defi nição, é um empreendedor irrequieto e incansável. Ele começou sua vida de empresário durante os anos 1980, administrando restaurantes e casas noturnas de sucesso em São Paulo, duas das quais se tornaram locais lendários de encontro para a elite da capital paulista. Naquela época, ele era conhecido como o ‘Rei da Noite’ e era visto constantemente em jornais e programas de TV. Ele era casado com Hortência Macari, uma lenda do mundo do basquete nacional e inter- nacional; juntos eles tiveram dois fi lhos. Durante a década de 1990, Oliva começou a trabalhar em um setor diferente (marketing promocional). Desde então, ele construiu um “império de negócios” nessa área (FARAH, 2003).

Oliva tem poder social e econômico. Comparado a Roger e Nilo, ele certamente está no topo de uma ‘hierarquia masculina’. Os “ideais culturais” (DONALDSON, 1993, p. 646) da masculinidade que ele emana são os de uma masculinidade hegemônica (CONNELL, 1995). Ele é o chefe e outros homens são subordinados a ele. No entanto, ele começou a mudar quando os cavalos apareceram em sua vida.

Em 2002, Oliva, a esta altura já divorciado de Hortência, apaixo- nou-se por cavalos. Ele comprou seu primeiro cavalo, um lusitano negro chamado Bolero, e nunca mais parou (FARAH, 2003). Ele transformou sua fazenda (Green Island) em um rancho onde cria quase 100 cavalos lusitanos; Oliva conhece todos seus cavalos pelo nome. Em seu rancho, Oliva pretende transformar sua paixão por cavalos em um negócio lucrativo. Ao mesmo tempo, ele acredita que os cavalos foram um poderoso ponto de virada em sua vida pessoal: “Cavalos fascinam as pessoas. Eles me ajudaram a me re- conectar com meus fi lhos, minha atual esposa e meus amigos. Com cavalos, comecei um novo ciclo na minha vida. Isso é inestimável” (FARAH, 2003).

A relação de Oliva com os cavalos mudou toda a sua vida. Seus relacionamentos tornaram-se mais dialógicos, vinculando-se novamente a pessoas importantes que gravitavam a sua volta. Nas próximas seções discuto como a coencarnação de Nilo/Roger afetou as masculinidades de todos os protagonistas desta história.

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