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A questão do fundamento em Aristóteles e Kant

A QUESTÃO DO FUNDAMENTO: CARACTERÍSTICAS E PROBLEMAS

3.1. A questão do fundamento em Aristóteles e Kant

Procuramos, portanto, partir de dois sentidos mais abrangentes para, em seguida, determo-nos sobre a radicalidade própria da tarefa – e seus limites – em dois pensadores emblemáticos: Aristóteles e Kant. Com isso, temos a intenção de lançar pontos de apoio para uma compreensão do caráter da fundamentação dos direitos humanos e, de modo colateral, entender o que se pretende teoricamente quando se evoca a questão da fundamentação dos direitos humanos.

De modo geral, podemos reduzir as noções de fundamento a duas (MORA, 2001, p. 1159): a primeira como fundamento material à qual se atribui a noção de causa enquanto razão de ser de algo (deve-se lembrar sempre que tanto o conceito de causa quanto o de fundamento podem adquirir vários sentidos), ou seja, das condições materiais do surgimento, origem, de um fenômeno. O segundo sentido lida com a noção de fundamento como ideal, ou seja, como conjunto de princípios puramente racionais e/ou suficientes para que, a partir deles, razões entendidas enquanto motivos possam ser apresentadas justificadamente. Tanto cabem aqui as noções de fundamentação tradicionalmente idealistas/metafísicas – sistemas de pensamento que revelariam a “essência”, verdadeira realidade, do objeto abordado – quanto as propostas em termos de “discursos concorrentes” – argumentações sistemáticas que disputam a prevalência sobre determinado “ponto de vista”, tema ou objeto –, quer dizer, que podem gerar um consenso (e aqui se toma o consenso, ou o argumento “vencedor”, como uma espécie de fundamento no sentido de um ponto de partida ou de conclusão) e, ainda, um conjunto de crenças básicas – com maior ou menor grau de certeza – como pretendem os fundacionalistas contemporâneos. Se sobretudo este último sentido tenta evitar o “mergulho em busca de um fundamento absoluto” e, com isso, parece muito contemporâneo, não nos esqueçamos – como bem mostrou Berti – de que ainda não deixamos a esfera “endoxal” de

Aristóteles. Passemos, assim ao nosso excursus conceitual, não exaustivo, pela tradição filosófica.

Do ponto de vista histórico, a questão da fundamentação aparece nas origens do pensamento ocidental a partir do empenho discursivo de Platão para caracterizar e definir a filosofia e sua tarefa “primeira”56. E a tarefa primeira da filosofia trata de algo que se tornou

tão “caro” quanto “problemático” em toda a tradição filosófica: o ser.

Assim, mesmo considerando-se as mudanças contextuais acontecidas ao longo da história, as reviravoltas metodológicas e a “pluralidade interpretativa” cultivadas pela filosofia, a questão da fundamentação mira um pouco de ordem sobre o caos57. Entretanto, a

questão da fundamentação dos direitos humanos tem reunido tanto esforços teóricos em seu apoio quanto ressalvas quanto à sua possibilidade e necessidade. Ao invés de perseguir “antigos espectros”, ou seja, de entregar-se de pronto a uma busca pelo fundamento dos direitos humanos, Enrico Berti sugere que se faça uso de um método mais prático:

Ao invés de remontar aos fundamentos, isto é, de se perguntar de saída sobre em que base os direitos humanos se fundamentam, se sobre uma lei divina ou uma hipotética lei natural, ou sobre a cultura dos povos, ou sobre a história, etc., seria mais conveniente partir, uma vez mais, dos direitos humanos e proceder, por assim dizer, para trás, procurando descobrir o que eles implicam ou o que eles abrigam (BERTI, 2001, p. 10).

A posição de Berti representa uma reação às mais variadas propostas de fundamentação dos direitos humanos que tem surgidos ao longo de décadas; propostas que pretendem alcançar a “essência” de um fenômeno antes de considerar detidamente o próprio fenômeno e suas expressões históricas, teóricas, culturais, etc. Desde as origens da filosofia, as “essências” têm sido perseguidas com empenho e método. O exercício das formas de pensamento, a práxis hermenêutica – por assim dizer – conquistou vários “postos” de observação no decorrer dos séculos. Percebe-se que a proposta de Berti é típica do método dialético aplicado à filosofia prática: no tempo presente, partir de um “dado elemento” e proceder com seu exame/análise, isto é, investigar sua significação situacional e simbólica e relacioná-lo com a linguagem ordinária, com os valores coletivamente postos, para retirar as

56 Entretanto, a questão do fundamento – tal qual a conhecemos hoje – não foi formulada por Platão.

57 “O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos. A filosofia quer salvar o infinito, dando-lhe consistência: ela traça um plano de imanência, que leva até o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes, sob a ação de personagens conceituais. (...) Pensar é pensar por conceitos, ou então por funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos [(a filosofia, a ciência, a arte...)] não é melhor que um outro, ou mais plenamente, mais sinteticamente “pensado” (DELEUZE. GUATTARI, 2007, p. 253).

implicações antropológicas, éticas e políticas que elas possuem; sem conhecê-la e, ao seu modo, Rabossi realiza a sugestão de Berti e, procura, assim, descontruir alguns mitos consolidados historicamente na seara dos direitos humanos. De qualquer forma, sem o apelo à exatidão numérica, para Berti, permanecemos na esfera endoxal. E, assim, na direção de melhor compreender tal esfera – e por questões metodológicas –, detenhamo-nos alguns instantes sobre elementos do pensamento de Aristóteles.

No decurso da história, bem antes de se chegarmos à questão do fundamento dos direitos humanos, Aristóteles havia dado início a um esforço teórico modelar na história do pensamento ocidental; ele tratou de sistematizar o conhecimento geral e filosófico de seu tempo e, ainda, elaborou sua própria reflexão a partir de seu legado cultural. Aristóteles procedeu com a sistematização dos saberes e o estudo das formas lógicas da linguagem e do conhecimento. Na sua filosofia, há uma primeira grande “virada” fundamental na história do pensamento ocidental que só seria sentida ao longo dos séculos, sobretudo depois da Idade Média.

À medida que o pensamento filosófico forjou incontáveis visões de mundo, limites e problemas, as questões relacionadas com a exigência de uma fundamentação última começam a se tornar mais patentes. No âmbito da formação de uma exigência explicitadora da verdade do mundo da vida, todos os ramos do conhecimento estão fincados e arraigados em um mesmo solo. A sistematização dos conhecimentos deve obedecer às características de cada conhecimento e envolver uma fundamentação explicitadora do sentido e da tarefa de cada um deles, de seus objetos gerais e específicos e de seus métodos. Por outro lado, envolve uma explicitação do caráter do conhecimento em geral, unificador de todos os outros. Desta feita, também em Aristóteles, a fundamentação do conhecimento – em sentido lato – aponta para algo que, estando além do conhecimento, possibilita-o enquanto condição de verdade.

No pensamento aristotélico, segundo Oliveira (OLIVEIRA, 1996, p. 20), a questão da fundamentação do conhecimento em geral aparece no escopo de sua investigação acerca da ciência primeira (a metafísica), ou seja, na busca pelo princípio autônomo, autofundante e que, consequentemente, pode fundamentar todos os demais tipos de conhecimento. Neste sentido, sem ignorar a “essência” de cada ente em particular – a “cavalidade” do cavalo, ou seja, a característica necessária que dele um “cavalo” e não outro ser qualquer –, Aristóteles lança-se numa investigação que pergunta por aquilo que define a essência enquanto tal, quer dizer, ele pergunta pela “essencialidade” da essência. O que interessa a Aristóteles é o caráter da essência em si e como “tessitura comum” de todas as coisas, o elemento que as une numa

mesma condição e que possibilita que sejam apreensíveis na sua unidade/identidade e, consequentemente, na sua diversidade.

A investigação da ciência primeira aristotélica implica na pergunta pela “condição de possibilidade do discurso humano” (OLIVEIRA, 1996, p. 20) a partir da participação do ente naquilo que, sendo partilhado pela infinidade das coisas existentes, pode ser apreendido pelo pensamento e apresentado na linguagem como conhecimento. “Assim, a ciência primeira tematiza o conjunto das condições a priori da comunicação dos homens entre si através da mediação da linguagem” (OLIVEIRA, 1996, p. 20) no sentido do saber último.

Nos Segundos Analíticos (I, 7, 75 a 41; 10, 76b 14), Aristóteles define axioma como um dos princípios do silogismo, quer dizer, aquilo a partir do qual e através de que um “conhecimento científico” pode ser demonstrado. Entretanto, como nem todo conhecimento demanda demonstração, o limite da exigência por uma “eterna demonstração” (ou fundamentação) esbarraria na natureza do princípio do conhecimento, ou melhor, do tipo de conhecimento em questão. Nos Segundos Analíticos (III 5 -20), Aristóteles sustenta que:

A necessidade de conhecer as premissas primárias levou alguns a pensar que não há conhecimento, e outros, admitindo a sua possibilidade, a pensar que todas as coisas são demonstráveis. Nenhum destes dois pontos de vista é exato ou logicamente inevitável. A primeira escola, que sustenta a total ausência do conhecimento, pretende que ocorre um retrocesso ao infinito, sob o fundamento de não podemos conhecer verdades posteriores por meio de anteriores, salvo se estas dependerem de verdades primárias (no que estão certos uma vez que é impossível atravessar uma série infinita), enquanto que se a série atingir um fim e houver primeiros princípios, estes são incognoscíveis, posto que não admitem demonstração, a qual é pra esses pensadores a condição exclusiva do conhecimento; e se não é possível conhecer os primeiros princípios, tampouco é possível saber em sentido estrito e absoluto que as inferências deles extraídas são verdadeiras; só podemos as conhecer hipoteticamente supondo que os primeiros são verdadeiros. A outra escola concorda com esta, no que respeita às condições do conhecimento, na medida em que sustentam que ele somente pode ser garantido por demonstração; mas sustentam [igualmente] que não há o que impeça que haja demonstração de todas as coisas, uma vez que a demonstração pode ser circular ou recíproca. Nós, contudo, sustentamos que nem todo conhecimento é de natureza demonstrativa. O conhecimento das premissas imediatas não é demonstrativo. E é evidente que assim deva ser, já que é necessário conhecer as premissas anteriores com base nas quais a demonstração progride e, se o retrocesso finda com as premissas imediatas, têm estas que ser indemonstráveis (ARÍSTÓTELES, 2005, p. 256-257).

Cada ciência, em particular possui seus axiomas próprios e, no geral, partilha axiomas comuns (BERTI, 1998, p. 7). Deste modo, as várias instâncias epistêmicas dos discursos humanos também possuem e se servem de axiomas comuns e dos que respeitam as suas especificidades. Entretanto, seus critérios internos obedecem ao caráter de delimitação de

“objeto”, campo e método de pesquisa, como vimos a propósito dos saberes apodíticos e endoxais.

Do ponto de vista epistemológico mais “econômico”, por assim dizer, o caráter radical de maior cognoscibilidade, universalidade, segurança e certeza (Met. 1005 b 9-13), metodologicamente, é atribuído ao princípio de não-contradição. Ele é apresentado como axioma primeiro enquanto pressuposto necessário de todo conhecimento (Met. 1005 b 33-34) e também, axioma último no sentido de que todo conhecimento deve remeter ao princípio original confirmando-o. Portanto, dentre todos os axiomas, aqueles compartilhados pelas ciências são os mais fundamentais; e aquele do qual depende todas as ciências e todo o conhecimento, é o mais fundamental. Assim, para além deles não se pode ir: eles fecham o círculo entre as instanciações primeira e última do saber; representam o princípio e o limite do pensamento e do discurso.

A ciência primeira como a ciência dos fundamentos últimos e mais universais tem certamente na tematização destes princípios, que são condição de possibilidade do diálogo entre os homens, uma de suas tarefas fundamentais. Estes princípios constituem, então, o horizonte sempre pressuposto da comunicação; tematizá-los significa explicitar as condições de possibilidade do discurso sensato, o que aliás garante seu caráter intersubjetivo (OLIVEIRA, 1996, p. 21).

Ao tematizar os princípios do conhecimento, Aristóteles percebe e indica uma das limitações intrínsecas relativas à questão do fundamento. Esta “dificuldade”, por assim dizer, permanecerá no horizonte da tradição filosófica como um ponto de retorno e embaraço para inúmeras tentativas de superação em torno da questão do fundamento tanto no sentido ontológico quanto gnosiológico. A “dificuldade/embaraço” surge no instante em que se exige que o fundamento apresente seu próprio fundamento. Cai-se, então, num “espiral” perpétuo, em um regresso ao infinito, ou seja, numa petitio principii. Em sua estrutura, o próprio processo de dedução impõe o axioma-princípio; este axioma mais fundamental não poderia ser deduzido de nenhum outro devido a sua “natureza fundante”. Trata-se de um limite do pensamento-conhecimento na sua forma linguístico-argumentativa.

O estabelecimento do primeiro princípio, do axioma-princípio, implica não somente num “recurso metodológico” para “fazer cessar” o regresso ao infinito para que se possa

proceder com uma investigação58; implica ao mesmo tempo uma consciência da limitação do

processo dedutivo de argumentação.

Assim para explicitar o caráter autofundante do primeiro princípio, do princípio de não-contradição, Aristóteles recorre a uma demonstração indireta (tentativa de refutação do axioma princípio), posto que insistir numa demonstração direta implicaria cair novamente na circularidade da petição de princípio: a própria prova direta carrega em si a exigência do fundamento; ela acaba por “desvelar” um duplo caráter “lacunar”: a ausência de uma demonstração do “axioma-princípio” e a impossibilidade de uma demonstração direta. Sem conseguir “sair” do pensamento na sua forma linguístico-argumentativa, a exigência espectral e icônica do fundamento reaparece insistente e incomodamente. Destarte:

A saída proposta por Aristóteles é que é possível estabelecer o princípio de todo pensar, o princípio de não-contradição, através da mediação da refutação (apodexai elenchtichos). (...) a tentativa de demonstrar o princípio [através de sua refutação] me leva à contradição, isto significa que ele é um pressuposto ineliminável de todo e qualquer discurso humano. Portanto, a própria contradição faz emergir o princípio de não-contradição como condição de possibilidade do discurso humano enquanto tal: ele se tematiza como o próprio fundamento do diálogo (OLIVEIRA, 1996, p. 23).

Trata-se, pois, de um argumento que utiliza o resultado da tentativa de negação do princípio para mostrar o caráter imprescindível do próprio princípio.

Ora, para negar o princípio, passa-se, antes, pela sua afirmação. Na tentativa de falseamento do princípio, a um só tempo, através do discurso, um opositor confirmaria o princípio e, inarredavelmente, refutaria a si próprio: contradizer o princípio de não- contradição significa contradizer a si próprio, ao próprio discurso. Enfim, ao receber sua “contraprova”, para Aristóteles, o princípio de não-contradição torna clara a necessidade de seu caráter autoevidente: o conhecimento das causas primeiras, das demais formas de conhecimento e toda sua estrutura não subsistem sem ele. O princípio de não-contradição firma-se, assim, como condição de todo pensar-dizer lógico, estritamente racional; torna-se seu princípio último, universal, seguro.

Ora, a prova por via de refutação eu distingo da prova propriamente dita, porque nesta última se poderia talvez descobrir uma petição de princípio, mas se uma outra pessoa for responsável pela asserção, teremos a prova

58“De fato, devemos começar com o que é evidente, mas as coisas são evidentes em duas acepções: algumas o são relativamente a nós, outras o são absolutamente. É plausível, então, que devemos começar pelas coisas evidentes para nós” (ARISTÓTELES, 1996, p. 121).

negativa e não prova direta. O ponto de partida de todos os argumentos desta espécie não é pretender que nosso adversário diga que alguma coisa é ou não é (o que poderia talvez ser tomado por uma petição de princípio), mas que diga algo que tenha significado tanto para ele próprio como para um outro; (...) O responsável pela petição de princípio, contudo, não é o que demonstra; porquanto, ao mesmo tempo que refuta o raciocínio, submete-se a ele. E, por outro lado, quem admite isso já admitiu que há algo de verdadeiro fora de qualquer demonstração [de modo que nem tudo será “assim e não assim”] (ARISTÓTELES, 1968, p. 95).

Na esfera da exigência epistemológica geral, qualquer tentativa de uma explicitação de pressupostos do fenômeno dos direitos humanos implica na “elaboração” de sua estrutura lógico-formal e, assim, exige o princípio de não-contradição. Na verdade, nenhum discurso pode prescindir de tal princípio; nenhuma forma de conhecimento pode abrir mão dos elementos metodológicos que conferem “sentido” e “significado” ao saber que é elaborado, seja formal ou informal; mais exigente e rigoroso no primeiro caso e mais intuitivo e “aberto”, no segundo. A afirmação de Aristóteles aponta o caráter de aceitação do jogo argumentativo da linguagem e, tão importante quanto, a afirmação de que há uma esfera da verdade que é pressuposto das exigências “lógico-demonstrativas”.

A perspectiva do fundamento tematizado a partir de Aristóteles – enquanto princípios primeiros do mundo e do conhecimento do mundo – não envolve a necessidade de que o mundo seja de outro modo; ele não aborda nem afirma a necessidade de que a substância gere as coisas tais quais elas são. Então, se a substância pode ser substância de “quaisquer dos mundos possíveis”, ela é a única coisa necessária e todo o resto é “acidental”. Entretanto, se se tivéssemos a “coragem” de suspender a questão da essência ou da substância (da “coisa- em-si”), qual seria o caminho para “enfrentar” as exigências da fundamentação? Após anos de “desenvolvimento” na Idade Média – sobretudo a querela dos universais – e de vários pensadores contundentes, surge uma radicalidade nova.

Se, de modo geral, na Idade Média59 a questão do fundamento radica-se

primordialmente na relação entre Deus-substância e os entes-criados e, em última instância, remetem ao conceito de Deus, na modernidade, essa questão ganhará seus contornos mais característicos na medida em que a “esfera transcendental” aparece no pensamento crítico kantiano como instância fundante. Com a crítica da razão, a questão do fundamento fica dependente do estabelecimento das condições de validade do próprio pensamento. No período

59 Apesar de toda a importância da filosofia medieval – a questão dos universais e sobretudo seu ‘desfecho’ no pensamento de Abelardo, os desdobramentos da filosofia de Duns Scott e da ‘navalha de Ockham’, por exemplo –, procuraremos remeter, sobretudo, a pensadores que tenham se aproximado mais ‘arriscadamente’ dos limites da questão do fundamento.

medieval, com a entrada do conceito cristão de deus, a instanciação geral da metafísica grega é preservada, apesar das diferenças de tom, inflexão e cores.

No panorama histórico nascente da modernidade, progressivamente, a prática científica começa a delinear seus contornos mais rígidos. A partir da sistematização do método matemático-experimental60 aliado ao uso do método indutivo, do desenvolvimento

técnico e do crescente rigor na observação, passo a passo, a ciência consegue conquistar uma autoridade independente de “opiniões” e teorias. A ciência estabelece para si mesma seus métodos e critérios (parâmetros de julgamento), ou seja, ela conquista sua autonomia através de sua autodeterminação e, através de seus resultados garantem validade e importância.

Diante disso, Kant se pergunta se a metafísica é possível enquanto ciência. Tendo colocado a razão no banco dos réus, para avaliar seus “poderes”, o filósofo de Königsberg dirige seus esforços para descortinar um fundamento evidente e incontestável que valide o conhecimento como expressão da verdade, além de suas estruturas e métodos. Para tanto, precisa assegurar que, arquitetonicamente, a razão seja capaz de validar a si própria enquanto produtora de conhecimento mediante representações que produz. Kant procura, pois:

O conhecimento de uma consciência inteiramente liberada da sociedade e da história, para dar à ciência um fundamento inabalável (fundamentum

inconcussum na expressão de Descartes), um ponto arquimédico,

absolutamente seguro como ponto de partida e de legitimação de todo o seu procedimento. O que distingue estas tradições entre si é o lugar desta evidência originante e o caminho de acesso a ela. No caso do racionalismo se trata de uma auto-intuição da razão, que ocorre através da reflexão da razão sobre si mesma, enquanto no empirismo se trata, em última instância, de uma intuição a ser atingida no campo da experiência sensível, ou seja, na esfera da percepção. A mediação fundamental para ambas é a dúvida metódica, que conduz ao fundamento último do conhecimento de onde se vai à frente seja pela dedução, tendo como modelo a matemática enquanto

60 “A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o