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O Fundacionalismo – Características Gerais

A QUESTÃO DO FUNDAMENTO: CARACTERÍSTICAS E PROBLEMAS

3.2 O Fundamento na Epistemologia Contemporânea: O Fundacionalismo

3.2.1 O Fundacionalismo – Características Gerais

Se metodologicamente evitamos o confronto com a questão: “o que é a crença?”, em nosso parecer, somos levados a considerar duas questões inteiramente distintas: “porque cremos naquilo que cremos?” e “como cremos naquilo que cremos?”. Se, num primeiro momento, a primeira pergunta parece implicar numa “genealogia” da crença, percebemos, de relance, que ela passa antes por um retorno ao papel da memória e, num sentido contemporâneo, não deixa de apontar para a “filosofia da mente”. Tratada deste modo, a questão parece bem encaminhada se não deixasse de fora os dados dos sentidos e, por extensão, o mundo “exterior” e suas dinâmicas: o que nos motiva a agir, o que nos motiva a agir de certo modo e não de outro (os efeitos da ação e o “hábito”, etc.), qual é a contrapartida da ação em relação às emoções e à percepção, qual é o papel da razão se colocada, de modo não privilegiado, entre esses e outros elementos, e assim por diante. Poderíamos responder a primeira pergunta à moda pragmática, dizendo: “por que cremos naquilo que cremos saber? Ora, porque, às mais das vezes, nossas crenças “funcionam””. A segunda questão quer saber: “E como funcionam nossas crenças?” E o que lhes confere uma funcionalidade tipicamente atribuída ao conhecimento, quer dizer, universalidade, certeza (necessidade, previsibilidade) e clareza?

Em geral, o que é estabelecido como crença – num sentido ordinariamente cotidiano – o é a partir da conjunção entre mundo exterior e subjetividade, a partir do que “funciona” em um determinado contexto/situação e entra num repertório mnemônico que é aleatório em princípio e em certa medida. Em princípio porque a questão dos critérios é difusa e a organização sistemática é mera possibilidade ou está em desenvolvimento. Em certa medida

porque o que funciona em determinada situação, pode não funcionar em outra; cabe, portanto, saber quando é o caso. Assim, a pergunta: “por que, em geral, cremos naquilo que sentimos/percebemos?”, pode ser respondida de modo socialmente, cotidianamente, pragmático. O fundacionalismo intenta responder qual é o status epistemológico do conhecimento, quais são os objetivos e objetos da epistemologia. Tem-se, portanto, ao menos duas instâncias: (a) uma explicitação da possibilidade do conhecimento e da metodológica das ciências e (b) a constituição da teoria que melhor possa justificar essa explicitação.

Na confluência cotidiana dos elementos formadores do conhecimento, a experiência, a interpretação, a compreensão, o hábito e a familiaridade são formados – e “reformados” – a partir de um repertório de “memórias-experiências” que representam um papel relevante na percepção do indivíduo e, consequentemente, na forma como ele sente e relaciona-se com os estímulos ligados às circunstâncias e contextos vitais. Entretanto, ainda se pode operar uma redução metodológica no sentido de perceber que a experiência sensorial pode ser tipificada a partir de elementos básicos: experiências visual, tátil, auditiva, olfativa e gustativa. Consequentemente, de modo geral, Lawrence Bonjour afirma que:

Além disso, a versão mais padrão do fundacionalismo, é extremamente plausível de um ponto de vista intuitivo ou senso comum: é como se tivéssemos muitas crenças empíricas ou contingentes justificadas que são justificadas não com o apelo a outras crenças, mas com o apelo à experiência sensorial e introspectiva(BONJOUR, 2008, p. 196).

Neste sentido, crenças básicas estariam ligadas a experiências sensoriais básicas. Entretanto, pelo menos, dois problemas se avizinham: (1) a confiabilidade das experiências sensoriais e (2) a formulação adequada (formalização) de proposições que possam “traduzir” as experiências-crenças da forma mais clara (compreensível) e fidedigna (correta) possível.

A rigor, não se trata de “sentir” em um sentido subjetivo como, por exemplo, “sentir- se” triste. O apelo é, sem sombra de dúvida, ao sentir mais “fundamental”, elementar – para não dizer natural – e “auto-evidente” dos sentidos. Entretanto, uma “genealogia” da crença permanece ausente; tampouco estão presentes os elementos que venham a servir de critérios para que uma “proposição” goze da aceitação que caracteriza a “crença”. De todo modo, a “crença básica” não pode ser tomada como sinônimo de “sensação básica – sentido básico”; uma crença básica surge do sentimento inequívoco (imediato) que é gerado por um “estímulo sensorial básico”. Percebe-se, pois, que a dificuldade não está na certeza do que se sente, mas em como justificar, em termos proposicionais, a certeza do que se sente na forma de conhecimento; e de justificá-la “racional e convincentemente” perante uma comunidade de

indivíduos dotados de linguagem e razão. Trata-se de demonstrar seu caráter universal, verificável e assertivo.

Segundo Dancy (DANCY, 1985, p. 75), o fundacionalismo divide as crenças em (1) “básicas” e (2) “não básicas”. As crenças básicas possuem virtudes epistêmicas próprias e, por isso, prescindem de apoio e podem apoiar outras crenças; ipso facto, elas expressam a experiência imediata do indivíduo a partir de seus estados sensoriais. Já as “crenças não básicas” dependem do apoio de “crenças” do primeiro tipo; elas são a estrutura construída a partir dos alicerces lançados, ou seja, das “crenças básicas”. No limite, até as crenças não derivadas imediatamente da experiência sensorial devem ser justificadas a partir de crenças básicas, ou seja, referentes à própria experiência imediata.

Por exemplo: certo indivíduo acredita que haverá “sempre” uma nova aurora, ou seja, de que o dia de amanhã surgirá tal qual o dia de hoje surgiu e assim por diante “indefinidamente”. A crença dele baseia-se na sua própria experiência: desde que se deu conta, os dias vem e vão continuamente; a cada novo dia, apesar de seu leve e breve temor, sua crença se confirma. Ele não precisa apelar para a experiência dos mais velhos; se os mais velhos existem, é sinal de que “o mundo” lhes precede. De qualquer modo, o mundo continua aparecendo e desaparecendo entre o sono e a vigília. Assim, dia após dia, levanta-se, faz o asseio matinal, alimenta-se, monta na bicicleta e vai ao trabalho. O velho e conhecido rio, o rumor das águas sob a ponte, o sol a mirar o horizonte, o odor das árvores, das flores, a terra alaranjada, quase vermelho, o chilrear dos pássaros... Enfim, o rumor da vida ao redor. Tudo continua, habitualmente, lá. Vez por outra, um ou outro capricho: um acidente, um incidente. Ele sorri. O pneu furou. Hoje é dia de completar o trajeto a pé.

O frugal indivíduo possui pelo menos duas crenças básicas: (1) ele está vivo, possui sentidos “funcionando de acordo com certo padrão”, pode comunicar-se e assim deverá continuar por algum tempo; (2) o mundo existe e não há razão que o faça demovê-lo da crença de que ele continuará existindo conforme tem estado. Todas as outras crenças parecem fundadas nestas duas primeiras; apesar de não haver garantias, não há motivos para pensar em contrário: quando falar, será compreendido; o caminho para o local de trabalho, para a prefeitura, não mudará “magicamente”; de que o sabor da laranja, a cor do céu, etc., manter- se-ão tal qual ele os percebe desde que se “entende por gente”. Qualquer mudança, “poderá” – ou deverá poder – ser justificada recorrendo-se à teia de relações, acidentes, dados, regularidades, rupturas, condições, que está posta no mundo ou através de uma revisão do “sistema-mundo”. As proposições que não se referem à experiência sensorial imediata também não podem ser compreendidas senão a partir da “paisagem” na qual o conjunto dos

estímulos sensíveis é vivido enquanto experiência.

Destarte, até o momento, acerca das características marcantes do fundacionalismo, podemos afirmar que: (1) Todo conhecimento deriva de crenças que, por seu turno, são possíveis a partir das experiências originadas através do nosso estado sensorial imediato; (2) as crenças são divididas em básicas (baseadas nos estados sensoriais imediatos, servem de alicerces para outras crenças e, concomitantemente, não precisam de “fundamentos”) e em “não básicas” (crenças que, não possuindo origem na experiência sensorial imediata, precisam do apoio das crenças básicas para se justificar). Por fim, (3) no fundacionalismo “clássico” – ou forte – encontra-se a afirmação de que as crenças básicas são infalíveis porque remetem à natureza de nossas percepções sensoriais imediatas. A exigência por um conhecimento – um ponto de partida – incontestavelmente seguro está presente na versão mais “radical” do fundacionalismo. Por conseguinte, Bonjour assevera que:

Particularmente, uma visão (por exemplo, de Quinton) de acordo com a qual ao menos algumas crenças sobre objetos físicos contam como básicas ou fundacionais (que, por sua vez, dependerão do relato específico sobre como tais crenças sobre objetos físicos contam como básicas ou fundacionais) claramente terá uma dificuldade substancialmente menor para oferecer um relato razoavelmente plausível sobre o escopo geral do conhecimento não fundacional do que uma visão mais tradicional (como a de Lewis), que restringe os fundamentos a crenças sobre estados subjetivos da experiência (BONJOUR, 2008, p. 197).

O relato de crenças básicas a partir de experiências sensoriais e/ou a partir de estados subjetivos (internos) da experiência marcará, respectivamente – como veremos brevemente ao final desta seção – a disputa no escopo da visão fundacionalista entre o fundacionalismo externalista e o internalista. Antes de apresentar versões gerais do fundacionalismo (forte, modesto e fraco), consideramos algumas questões sobre a “natureza” da crença e, consequentemente, a exigência de critérios para sua justificação; com isso, inevitavelmente, abordaremos problemas gerais relativos ao fundacionalismo.