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A Questão do Dominium do Imperador e do Papa sobre o Mundo (Dominium et

ANOTAÇÕES PARA UMA HISTÓRIA CONCEITUAL DOS DIREITOS HUMANOS

2.3 Do Direito Objetivo aos Direitos Subjetivos: o Debate sobre os Direitos dos Indígenas do Novo Mundo

2.3.3 A Questão do Dominium do Imperador e do Papa sobre o Mundo (Dominium et

Potestas)

A caracterização do dominium – seja do Imperador, seja do Papa – sobre o mundo é colocado como uma questão estratégica no sentido da delimitação do poder e, neste sentido, para responder à questão sobre o que é lícito àquele que detém o poder. A argumentação não é simplesmente tecida a partir de aspectos jurídicos. Para além do direito, ela aponta para o respeito às formas de vidas distintas dos povos do novo mundo. Retoricamente, o direito e as instituições políticas são utilizados “negativamente” – com veremos brevemente –, quer dizer, evocam-se as instituições, costumes ou a legislação espanhola para criar um reflexo da situação se, por acaso, ela estivesse sendo vivida por eles e não pelos indígenas.

De Soto fala de um dominium econômico – considerado com Aristóteles como a forma de dominium por excelência –, bem como aponta para um dominium em sentido político. A questão sobre o domínio do Imperador sobre toda a terra será tratada por De Soto como um dubium potissimum e, assim, largamente abordada a fim de atingir uma conclusão pouco óbvia no que respeita à legitimidade das conquistas ultramarinas.

De início, De Soto faz duas observações pontuais: (1) em relação aos súditos, o rei não é proprietário; ele possui a “jurisdição” em relação à qual se relaciona com o povo; (2) o rei também não exerce o domínio sobre toda a terra (dominus totius orbis). Contudo, De Soto nega ao rei tanto o direito à jurisdição particular quanto á universal, aquela que se refere à todo o mundo. Não se trata de um poder conferido por natureza – visto que todos os homens possuem a mesma origem e, neste sentido, nascem iguais –, nem tampouco é possível que seja através de um direito convencional, humano, posto que não ter havido nenhuma manifestação da vontade de todos os homens elegendo o rei como senhor de uma jurisdição universal.

Neste caso, para De Soto, não resta dúvida: as terras dos “infiéis” não estão sob a posse do Imperador, visto que seu poder não se estende universalmente seja por direito divino ou humano. Excetuando as terras que foram tomadas aos cristãos – África e nos territórios invadidos pelos turcos –, nenhuma outra pode ser tomada e reclamada. As terras do Novo Mundo não podem, portanto, ser consideradas como terras usurpadas e que, portanto, podem ser tomadas de volta por direito; os indígenas tampouco deixam de ser possuidores de bens

por não serem “fiéis”. Lembrando um dos princípios inspiradores da Escola de Salamanca em contraposição ao agostinismo político de Sepúlveda, De Soto arrazoa que:

Porém, nos povos das ilhas recentemente descobertas (isti insulani) estas duas situações não se dão; com efeito, eles não perdem os direitos sobre os seus bens e o domínio por jurisdição, nem devido à sua infidelidade nem devido aos maiores pecados, como afirma Santo Tomás na Suma Teologia (II, II, q. 10, a 10). Com efeito, como ele afirma, a distinção entre os domínios e as propriedades foi introduzida por direito humano, mas a distinção entre fieis e infiéis é de direito divino. Porém, o direito divino, que pertence ao âmbito da graça, não tolhe o humano que é conforme a razão natural42 (DE SOTO apud TOSI, 2004, p. 744).

Surge, então, a questão de se o poder do Papa – que se estende por toda a terra – não poderia conceder a jurisdição universal ao rei. A partir de argumentos colhidos dos Evangelhos, De Soto recusa a tese ao afirmar que:

Cristo não foi rei por nenhum título terreno, nem possuiu algum dominium temporal não somente sobre a terra, mas tampouco sobre qualquer povoado (alicuius oppiduli), mas somente teve o poder sobre as coisas temporais para um fim espiritual (in ordine ad finem spiritualem), ou seja, para o fim da salvação (ad redemptionem)43 (DE SOTO apud TOSI, 2004, p. 744).

Conduzindo as implicações de sua argumentação, De Soto nega ao Papa o poder de estabelecer uma jurisdição universal em favor do rei – ou de quem quer que seja – e chega a uma conclusão surpreendentemente emblemática. De Soto atinge, assim, a aporia que, simbolicamente, representará a perplexidade sentida profundamente pelos maiores teólogos de seu tempo. Ele afirma que “devemos concluir, portanto, que o Imperador não possui o Império sobre o mundo por nenhum caminho (nulla via). Com que direito, então, conseguimos o Império ultramarino que encontramos? Na verdade, eu não sei”44 (DE SOTO

apud TOSI, 2004, p. 744).

42“Sed in istis insulanis, qui modo reperiuntur haec duo cessant; ex eo enim quod sunt infideles non amittunt bona sua nec dominium quod habent iurisdictionis, sicut non amittitur ob maiora peccata, ut probat Sanctus Thomas, Secunda Secundae, q. 10, a 10. Nam, ut dicit, distinctio dominiorum et praelationum introducta est iure humano, sed distinctio fidelium et infidelium iure divino, ius autem divinum cum sit de gratia non tollit humanum, quod est naturali rationi conforme. Sed hoc non statuimus hic disputare, sed supponimus quod solum ratione infidelitas, si nunquam fuerunt fideles, non amittunt ius bonorum suorum” (tradução de Giuseppe Tosi).42

43 “Christus non fuit rex aliquo titulo temporali, nec habuit dominium temporale non solum orbis sed nec alicuius oppiduli, sed solum habuit potestatem in temporalibus in ordine ad finem spiritualem, scilicet in ordine ad redemptionem” (tradução de Giuseppe Tosi).

44“Habemus ergo quod Imperator nulla via habet Imperium in toto orbe. Quo ergo iure obtinemus Imperium quod modo reperitur ultramarinum? Re vera ego nescio” (tradução de Giuseppe Tosi).

A relação entre dominium e ius ressaltada no início deste intermezzo entre a Idade Média e a Primeira Idade Moderna aponta, pois, para uma impossibilidade estrutural. De Soto se dá conta de que a identificação deles esbarra na ampla cobertura significativa que o conceito de ius possui diante do dominium. Porém, De Soto acata a definição de dominium como faculdade ou poder (dominium como facultas vel potestas) de um sujeito e, com isso, ele se aproxima dos pensadores modernos e, neste sentido dá uma enorme contribuição para a construção da concepção subjetiva do direito. Ele realiza, portanto, uma contribuição valorosa para o universo conceitual dos direitos humanos. Finalmente, neste sentido, Tosi afirma categoricamente que:

No interior de uma concepção formalmente objetiva do direito, começa a aparecer, assim, uma concepção subjetiva do domínio, como algo existente no estado de natureza originário, cujo fundamento é a imagem de Deus que se expressa na racionalidade humana e que constitui uma característica intrínseca do homem; sem a propriedade sobre si mesmo, as próprias ações e os próprios bens, o homem não é livre. Como afirma Paolo Grossi: “Minha liberdade coincide com a propriedade que eu tenho sobre mi mesmo e minhas ações, minha existência de sujeito livre consiste numa série de comportamentos “dominativos”, em suma, na propriedade que eu tenho de mim mesmo”.

E conclui

Esta afirmação será levada até as extremas conseqüências pelo Procurador dos índios Frey Bartolomé de Las Casas, o qual, tomando a sério o princípio de que os índios eram veri domini publice et privatim, sicut christiani retirava qualquer legitimidade teológica ou jurídica à conquista espanhola dos novos territórios e exigia a restituição dos bens roubados e o restabelecimento dos legítimos senhores (domini) indígenas, justificando como única guerra justa no Novo Mundo, a dos indígenas contra os usurpadores (TOSI, 2004, p. 745).