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A QUESTÃO DO FUNDAMENTO: CARACTERÍSTICAS E PROBLEMAS

3.2 O Fundamento na Epistemologia Contemporânea: O Fundacionalismo

3.2.3 Tipos de Fundacionalismo 1 Funcionalismo Forte

3.2.3.3 Fundacionalismo Fraco

No fundacionalismo fraco, trabalha-se com uma justificação mínima estabelecida a partir de algumas crenças justificadas não-inferencialmente. No entanto, essa justificação não compartilha dos critérios fundacionalistas – seja internalista se externalista – segundo os quais o conhecimento deve ser justificado. No escopo desta exigência, a justificação em questão também não teria força suficiente para fazer com que crenças individuais possam servir como pontos de partida para a justificação de outras crenças. Por conseguinte, com o poder de justificação ainda mais enfraquecido – em relação ao fundacionalismo moderado –, e como a

atividade epistêmica envolve necessariamente a inferência e o conhecimento, o fundacionalismo fraco apelará para um fortalecimento mútuo das crenças não- inferencialmente justificadas para gerar uma justificação intuitivamente mais “confiável”. A força da justificação ficará depositada na coerência que as crenças básicas estabelecem entre si. Neste sentido, a coerência desempenha uma função central no fundacionalismo fraco. Refletindo sobre “a manobra coerentista” para evitar o regresso epistêmico e suas respostas às críticas anti-coerentistas – que acusam a justificação circular de não possuir força justificativa adequada –, BonJour toma em consideração a defesa do coerentismo levada adiante por Bonsaquet: não há nada que vincule obrigatoriamente a justificação a uma estrutura de ordem linear. Assim, pode-se considerar:

(...) A justificação, quando apropriadamente compreendida, seja, em última instância, não-linear ou holística por natureza, com todas as crenças no sistema estabelecendo relações de apoio mútuo, mas nenhuma sendo epistemologicamente anterior às outras. Alega-se que desse modo qualquer circularidade verdadeira é evitada. Tal visão significa tornar o próprio sistema a unidade primária de justificação, com suas crenças componentes sendo justificadas apenas de forma derivada, pois são participantes de um tipo apropriado de sistema. E a propriedade do sistema, em virtude da qual ele é justificado, claramente é especificada como coerência. (...) Mas o que é, exatamente, coerência? (...) Em um nível intuitivo, a coerência é uma questão de como as crenças em um sistema de crenças se encaixam ou se relacionam umas com as outras, assim constituindo um conjunto unificado e hermeticamente estruturado. [Entretanto, há problemas:] (...) primeiro, qualquer concepção de coerência que seja ao menos adequada prima facie como base para a justificação epistêmica deve exigir mais do que consistência lógica; de fato, à luz da falibilidade lógica humana geral (...), parece um erro ver a consistência lógica até mesmo como uma exigência absolutamente necessária para um grau significativo de coerência. Segundo, a coerência requer um alto grau de interconectividade inferencial no sistema de crenças, envolvendo relações de necessidade, tanto estritamente lógicas como, por outro lado, junto com conexões probabilísticas. (...) Terceiro, enquanto algumas posições recentes enfatizam as relações explicativas como a base para a coerência, parece razoavelmente claro que isso não pode ser tudo. A coerência de um sistema de crenças é certamente intensificada na medida em que algumas partes do sistema são explicadas por outras, reduzindo assim o grau em que as crenças do sistema formam anormalidades não explicadas. Mas nem todos os tipos de conexões inferenciais são de caráter explanatório (BONJOUR, 2008, p. 202-3).

Apesar de não estar tratando do fundacionalismo fraco, os elementos citados por Bonjour são relevantes para esclarecer problemas ligados à ideia geral de coerência. Embora possua atrativos – “elide” metodologicamente o regresso epistêmico e enfatiza o aspecto holístico do conhecimento, por exemplo –, a ideia de coerência possui pontos estruturalmente menos favoráveis além dos elementos internos citados por Bonjour: o

enfraquecimento/eliminação dos estímulos sensoriais, o isolamento/eliminação de problemas que afetem a coerência de uma teoria (holismo extremo), a multiplicidade de sistemas de crença equiparadamente coerentes (e a consequente ausência de um critério “eficiente” capaz de estabelecer qual(is) sistemas de crença podem ser considerados “conhecimento”), etc. Diante do exposto, a ideia geral de coerência termina frente a um problema consideravelmente difícil: explicitar a relação entre coerência e verdade.

De todo modo, com o apelo à coerência, o argumento do regresso não significa uma ameaça para o fundacionalismo fraco. Como foi dito, isso se dá na medida em que não se busca um fundamento “fixo”, uma certeza inabalável; e ainda: o fundamento “acontece” na proporção em que o apoio mútuo das crenças faz parte da estrutura da justificação e do conhecimento. Contudo, neste sentido, Bonjour (BONJOUR, 2008, p. 214) deixa claro que os sistemas de crença coerentista tornam-se dependentes de uma forma de explicação “aberta”, não definitiva e circular; isso enfraquece a utilização de ideias que remetam à noção de “objetividade” como, por exemplo, “dados sensoriais” e, se o fizerem, teriam que perspectivar os dados coerentemente dentro de um sistema de crenças.

Dito isto, passemos às duas críticas colocadas em relação ao fundacionalismo fraco: a primeira mostra que o fato da coerência fortalecer a crença de um indivíduo – na forma de um sistema de crenças que se apoiam mutuamente – não implica que ela ofereça um critério de avaliação para identificar um conjunto/sistema de crenças corretas do ponto de vista epistêmico. Não há, portanto, um critério significante que apoie e identifique o conjunto de crenças como “correto”; se o sistema é “múltiplo e aberto”, seus critérios devem ser “coerentes” com ele. E isto poderia, a princípio, criar dificuldades por que não parece muito plausível que fosse possível selecionar o critério utilizado para avaliar qual conjunto de crenças seria o melhor dentre justificações concorrentes; e por melhor, entende: o mais explicativo, menos contraditório, o mais eficiente nas suas aplicações gerais e na resolução de conflitos, etc.

Qualquer que seja a coleção de crenças, a memória desempenha um papel fundamental na sua “montagem”. Entretanto, não cabe à memória a classificação das peças da coleção nem tampouco a classificação das coleções e a atribuição de um status epistêmico respectivo; a disposição das crenças premissas obedeceriam um caráter em geral aleatório e, em segundo plnao, condicionado a estímulos de várias ordens (físicos, emocionais, lógicos, etc). Assim, a proposta de uma fundamentação fraca parece pressupor que a memória seja o elemento suficiente para uma justificação não-linear, não-inferencial, portanto, holística, destituída de hierarquia conceitual – e, assim, fraca – de uma crença; o fundacionalismo fraco aposta suas

fichas na estrutura de apoio mútuo formada entre das crenças-premissas de determinado conjunto de crenças e mediadas pela ideia de coerência. Além do mais – eliminando-se a possibilidade de memórias aparentes –, deve-se ponderar criticamente o modo segundo qual a coerência poderia, de fato, fortalecer a justificação a partir de uma coleção de memórias verdadeiras. Além da ideia mediadora geral de coerência, os conjuntos devem ser tipificados para que sua unidade específica possa gozar de mais coerência interna.

A segunda crítica que, segundo Poston, é “tomada de empréstimo de Russell e levada adiante por Van Cleve, atinge o ponto central da coerência: a coerência entre dois elementos só é possível a partir de uma referência, senão a uma lei, a uma “generalização empírica” (POSTON, 2010) que confira o aspecto relacional entre esses elementos. Pode-se, então, significá-los em termos de uma coerência entre as determinações da generalização e os elementos relacionados por ela. Poston nos diz que:

Russelll observa que um fato só torna outro provável se relacionado com uma lei. Portanto, para que haja coerência entre certos fatos, para tornar um fato provável, um indivíduo deve estar munido de justificação suficiente para acreditar numa lei que liga os fatos entre si. Van Cleve explica que nós não deveríamos exigir uma lei genuína, mas, antes, uma generalização empírica que conecte dois fatos81 (POSTON, 2010).

Como a “generalização empírica” é elidida da posição “coerentista” do fundacionalismo fraco, a insuficiência torna-se latente: sem o apoio de uma generalização empírica, como seria possível apresentar uma justificação probabilisticamente significativa e satisfatória nos termos de um fundacionalismo fraco?

Aqui, como já foi apontado mais acima, a memória exerce um papel fundamental: a coerência de um sistema de crenças depende não somente da memória e do dispositivo classificatório da razão; ela depende da “generalização empírica” da qual abre mão. A questão é saber como, sem ter nada mais a oferecer do que uma justificação “ingênua”, o fundacionalismo fraco poderá gerar uma premissa confiável a partir de um sistema de crenças baseadas na memória. A coerência não parece sustentável se a razão e a memória não podem contar com “generalizações empíricas”, pois dela sairiam o critério estrutural geral – a coerência – e o critério demarcatório interno a cada conjunto (a especificidade classificatória) que justificaria a coerência entre elementos de cada conjunto. Pode-se tentar justificar a

81 Russell observes that one fact makes another probable or improbable only in relation to a law. Therefore, for coherence among certain facts, to make another fact probable one must have sufficient justification for believing a law that connects the facts. Van Cleve explains that we might not require a genuine law but rather an empirical generalization that connects the two facts (POSTON, 2010).

coerência inteiramente a priori, sinteticamente a priori; enquanto que o critério demarcatório interno seria pensável na correlação entre juízos sintéticos a priori e a posteriori, bem à moda Kant. Infelizmente, não espaço e tempo para fazê-lo neste trabalho.

Em sentido estrito, fica-nos, também, a possiblidade de um tratamento antifundacionalista da questão do fundamento em direitos humanos. Em sentido geral, ela é tratada na seção dedicada às reflexões de Eduardo Rabossi. Como veremos mais à frente, o jurista e epistemólogo argentino parte de pressupostos quineanos, quer dizer, trabalha sob a orientação de uma epistemologia naturalizada para “naturalizar” os direitos humanos em termos de “fenômeno dos direitos humanos”. Ao suspender a questão do fundamento em seu sentido mais tradicional – dado o caráter aporético e historicamente nada frutífero de suas incursões –, Rabossi recoloca a questão do fundamento em outros termos: o fundamento dos direitos humanos é tudo que é o caso; a cultura dos direitos humanos é seu fundamento e não faz sentido falar de seu fundamento fora da cultura que o realiza e que os direitos humanos, por seu turno, produzem.