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A Questão da Legitimidade da Escravidão dos Povos Indígenas (domini et servi)

ANOTAÇÕES PARA UMA HISTÓRIA CONCEITUAL DOS DIREITOS HUMANOS

2.3 Do Direito Objetivo aos Direitos Subjetivos: o Debate sobre os Direitos dos Indígenas do Novo Mundo

2.3.2 A Questão da Legitimidade da Escravidão dos Povos Indígenas (domini et servi)

A reflexão de De Soto sobre o direito (ius), a propriedade (dominium) e a relação entre com a escravidão – ou a liberdade – dos novos povos descobertos apresenta semelhanças e diferenças em relação ao que já fora pensado até então. Como Aristóteles, De Soto classifica a escravidão como legal ou natural. A primeira pode decorrer em função de alguma necessidade econômica como, por exemplo, uma dívida que o indivíduo não tem meios para saldar e oferece a si próprio como pagamento34. O indivíduo também pode tornar-se legalmente

escravo quando, em virtude de uma guerra, cai sob o julgo do país inimigo. Trata-se do segundo tipo de escravidão legal. Com De Soto e Santo Agostinho, Tosi afirma que a etimologia da palavra “servus”, derivada de “servare”, remete à significação da conservação da vida sob uma única condição: como prisioneiro de Guerra (TOSI, 2004, p. 742).

Quanto à escravidão natural, De Soto conserva alguns elementos do pensamento aristotélico e, em outros aspectos, afasta-se do peripatético. Segundo Tosi:

A escravidão natural, definida por Aristóteles na Politica35, merece um discurso mais complexo.36 A escravidão natural é aquela que exercem os homens de engenho superior (elegantiori ingenii) sobre aqueles que são torpes e rudes (hebeti ac rudi). De Soto concorda com Aristóteles considerando a escravidão natural justa, porém, a diferença do filósofo, afirma que “aquele que é naturalmente dominus não pode usar os que são servos por natureza para uso próprio, como se fossem coisas de sua propriedade, mas deve servir-se deles como se fossem homens livres e independentes, para o proveito e a utilidade deles mesmo, instruindo-os e educando-os nos costumes”37. Numa clara referência ao problema indígena, nega que os cristãos possam invadir com as armas os países dos infiéis que, devido aos costumes rudes, aparecem como naturalmente servos (TOSI, 2004, p. 740).

Há, como se percebe claramente, elementos que indicam uma radical mudança de perspectiva no que concerne à questão da escravidão nas terras invadidas no Novo Mundo. Em primeiro lugar, De Soto não atribui igualdade de condição e tratamento entre um indígena e um mero objeto; o invasor não pode dispor do “escravizado” como bem entender (para seu

34 “De Soto cita expressamente o tráfico dos lusitani com os etiopi afirmando que “se eles se vendem livremente, não há razão de considerar como criminoso este comércio”,34 ao contrário, caso seja comprovado – como parece que efetivamente aconteça – que este tráfico é realizado através do engano e da força, os portugueses são obrigados a devolver a liberdade àqueles que foram feitos escravos injustamente mesmo se assim fazendo não recuperam o preço pago por eles” (TOSI, 2004, p. 742).

35 ARISTÓTELES, Pol., I, 5 1254 b 15- 1255a3. 36 De Dom., § 24, p. 146.

uso – como faz/faria com o objeto), ao invés disso, deve trata-lo como “homem livre” e agir em função de seu bem. De Soto também nega radicalmente qualquer direito de invasão sobre as prerrogativas da força e as alegações de “rudeza” e da aparência “servil”. Caminhando numa direção diametralmente oposta à Aristóteles, De Soto alega que:

Aquele tipo de servidão (a natural) não lhe retira a liberdade como no caso dos que se venderam ou foram capturados como prisioneiros de guerra. E uma vez que a liberdade é o fundamento da propriedade (dominium), eles (os índios) conservam os seus direitos sobre os seus bens38 (DE SOTO apud TOSI, 2004, p. 741).

De Soto sabe que, para Aristóteles, se pode dispor de alguns homens como se dispõe de animais, quer dizer, vendendo-os; mas, de quais homens? Homens que possuem certas características servis, quais sejam: vivem como bestas, são errantes e não respeitam “normas”. Assim, é possível “empreender uma guerra contra aqueles homens que nasceram para servir”; homens que “como as feras vivem errantes e sem respeito algum pelas leis do pacto e invadem as propriedades alheias por onde passam”39.

Neste sentido, Tosi recorda que:

Ginés de Sepúlveda havia defendido uma aplicação literal desta doutrina aos índios do Novo Mundo40, mas os escolásticos de Salamanca assumem uma posição diferente. A doutrina da escravidão natural não é colocada em dúvida – devido à autoridade de Aristóteles – mas interpretada num sentido mais favorável ao escravo: aqueles que são a natura domini podem dominar os que são a natura servi, mas não em benefício próprio, mas em benefício dos servos. Desta maneira, De Soto afirma que a relação entre espanhóis e índios deve ser exercida não em analogia com o governo despótico do senhor sobre o escravo, mas com o governo que o pai exerce sobre o filho ou o marido sobre a mulher (TOSI, 2004, p. 741).

Embora reconheça, De Soto não leva adiante a distinção entre o bárbaro “apolítico”, isto é, que não sabe governar-se e o bárbaro “insociável”, quer dizer, que vive “à margem da lei” (exlege)41. No sentido de mediar as afirmações do filósofo, De Soto ainda arrazoa que, ao

38 “Eo quod servitus illa libertatem non tollit, veluti illorum conditio, qui vel se vendiderunt, vel bello capti sunt. Et cum fundamentum dominii sit libertas, nullum ammittunt suarum rerum.” (tradução de Giuseppe Tosi). 39 De Iustitia et Iure, IV, q. II, p. 290.

40 J. G. DE SEPÚLVEDA, Democrates segundo o de las justas causas de la guerra contra los indios, a cura de A. Losada, Madrid 1984 (1951).

41 Esta distinção entre os tipos de Bárbaros será desenvolvida de forma mais detalhada e profunda por Bartolomé de Las Casas na sua Apologia lida durante quatro dias seguidos frente à junta de teólogos e juristas convocados em Valladolid pelo Imperador para dirimir a disputa entre ele e Ginés de Sepúlveda, em 1550. (B. DE LAS CASAS, Apologia, in “Obras Completas”, vol. 9, Madrid, 1988).

argumentar, Aristóteles considera apenas os bárbaros exlege quando admite a venda e não ao bárbaro “apolítico”.