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Crença, Justificação e Problemas Gerais

A QUESTÃO DO FUNDAMENTO: CARACTERÍSTICAS E PROBLEMAS

3.2 O Fundamento na Epistemologia Contemporânea: O Fundacionalismo

3.2.2 Crença, Justificação e Problemas Gerais

Richard Fumerton, no artigo “Foundamentalist Theory of Epistemic Justification”, (Stanford Encyclopedia of Philosophy) apresenta o exemplo de um indivíduo X que acredita que o indivíduo Y morrerá de câncer dentro de algum tempo; em primeiro lugar, ele diz ter

sentido um “pressentimento” e, em seguida, afirma que a morte (por câncer) pode ser “predita” a partir da (curta) linha da vida na palma da mão de certo indivíduo. Já Ted Poston, no artigo “Foundationalism” (Internt Encyclopedia of Philosophy), apresenta-nos o exemplo de um indivíduo que acredita que morrerá por causa de uma doença cardíaca. No primeiro exemplo, como justificação para sua crença, o indivíduo X apresenta – ao indivíduo-ouvinte Z – um “pressentimento” de que o indivíduo Y brevemente morrerá de câncer. O exemplo 2 apresenta a crença de outro indivíduo que se acredita acometido por uma doença cardíaca; sua crença não é justificada por um pressentimento – nem porque a linha da vida na palma de sua mão é curta; trata-se da reelaboração do exemplo 1. Pelo contrário, sua crença ampara-se na “autoridade” dos exames e da respectiva avaliação médica às quais ele foi submetido.

As duas situações apresentadas no exemplo 1 – o “pressentimento” (hunch) e a leitura da linha da vida –, são consideradas insuficientes pelo indivíduo-ouvinte Z. A primeira, a justificação da crença numa breve morte por câncer (P) a partir do “pressentimento” (E) implica na justificação do “pressentimento” (E). Entretanto, no segundo caso (a leitura das mãos), os critérios são mais refinados: além da exigência pela justificação da “evidência” (pressentimento) da crença, exige-se a justificação da relação “causa-efeito” entre a evidência e a crença. Assim, não basta somente a justificação relativa à crença na breve morte do indivíduo Y por câncer (P) a partir da leitura da (curta) linha da vida (E); será necessário justificar como (a crença de que) uma curta linha da vida (E) torna-se evidência para a crença numa breve morte por câncer (P). Fumerton formula o princípio inferencial de justificação a partir da exigência feita no segundo exemplo: não é suficiente justificar a crença em E (evidência: a curta linha da vida) para justificar a crença em P (crença-conclusão: uma breve morte por câncer); faz necessário justificar a crença segundo a qual E torna P provável.

O exemplo relativo à crença de uma morte por doença cardíaca baseada nas evidências (exames e interpretação médica) pode ser formulado também na estrutura apresentada pelo PIJ (princípio inferencial de justificação). Isto quer dizer que será exigido que, além de justificar a crença nos exames/interpretação médica, se apresente a justificação da ligação entre a crença na morte por doença cardíaca (fenômeno “previsto”) a partir dos exames e da interpretação médica (evidência do fenômeno). Poder-se-ia, também, aplicar o critério que se refere apenas à justificação da crença na evidência que causa a crença na ocorrência de um breve fenômeno futuro. Então, para justificar a crença em P (fenômeno previsto) seria necessário apenas justificar a crença em E (exames e interpretação médica) e não justificar o que torna a provável a ligação entre E e P.

que não está baseada na experiência sensorial direta. Ela baseia-se num “sentimento subjetivo” (o pressentimento) – portanto, sem conexão direta com a experiência sensível, meramente intuitiva – ou numa interpretação “semiológica” sem nenhum apoio estatístico- probabilístico, da regularidade fenomênica observada criteriosamente (a relação entre possuir uma curta linha da vida e a possibilidade de, brevemente, morrer de câncer).

O exemplo apresentado por Ted Poston possui características distintas. Trata-se da previsão de um fenômeno (a morte por doença cardíaca) com base em evidências (exames/avaliação médica) apoiada pela experiência sensorial objetiva (proporcionada por técnicas de análise da saúde corporal geral). Neste exemplo, a crença na doença cardíaca – e na possível morte causada por ela – depende da confiabilidade/crença em dois elementos: (1) exames médicos e (2) avaliação médica. A aceitação da autoridade desses dois elementos implica na confiança/crença acerca dos dados informados na “situação/quadro”. A crença nas informações apresentadas implicará na crença da existência da patologia e da morte subsequente. As proposições baseadas nas evidências são caracterizáveis como crenças básicas. As crenças na patologia e consequente morte são crenças que dependem de outras crenças, isto é, são crenças não-básicas, quer dizer, dependentes das crenças (mais) básicas (do que elas). Entretanto, uma questão imediatamente se impõe na esteira do problema do regresso epistêmico: ainda haverá crenças mais básicas além das consideradas mais básicas? A questão do argumento do regresso é colocada e, dependendo do caso, pode resultar em um movimento de circularidade envolvida em argumentos inferenciais, seja no caso “pressentimento/quiromancia” seja no caso “médico”.

O primeiro princípio inferencial de justificação apresentado por Fumerton apresenta o “não solucionável” regresso ao infinito como consequência de uma cadeia de raciocínio que, imperativamente, impõe uma nova justificação. Para justificar uma proposição S, uma proposição P seria convocada. Entretanto, para inferir P, S precisaria estar em condições lógicas de fazê-lo a partir de uma proposição E1. Numa linha de justificação inferencial, para inferir E1, seria necessário recorrer a E2. Para justificar E2, por sua vez, seria exigido E3. A exigência de justificação inferencial deságua num regresso epistêmico vicioso, sem solução ou ponto de chegada definitivo. É esse retorno da forte exigência de justificação que caracteriza e tipifica o argumento do regresso.

Se, em relação ao princípio inferencial de justificação, não é possível colocar um limite (por “decreto”, por autoevidência, etc.), “espontaneamente”, como vimos, cai-se num regresso ao infinito. É neste sentido que um “fundamento-justificação” é exigido paradoxalmente como um limite que, entretanto, a cada novo enfrentamento com suas

fronteiras, exige uma ampliação deste limite na “esperança” de que a próxima fronteira seja a justificação definitivamente satisfatória.

Em seu artigo, tendo em mente a “insuficiência” da primeira cláusula do princípio inferencial de justificação diante do argumento do regresso, ao analisar a formulação do segundo princípio inferencial de justificação, Fumerton não mostra uma perspectiva mais animadora. Ele afirma que:

Se aceitarmos a segunda e mais controversa cláusula do princípio inferencial de justificação (PIJ), os regressos iminentes multiplicar-se-ão. O S acima não estará justificado apenas se levar E1 em consideração; para ser justificado S também deve considerar que E1 torna P provável, [ou seja], uma proposição que ele teria que inferir de outra proposição F1 (se não há fundamentos), a qual ele teria que inferir de F2, a qual ele teria que inferir de

F3 e assim por diante ad infinitum. Entretanto, S também precisaria ser

justificado ao afirmar que, na verdade, F1 torna P provável [e que, consequentemente,] E1 torna P provável, uma proposição que teria que ser inferida de outra proposição G1 a qual ele precisaria inferir de uma proposição G2 e assim por diante. E ele teria que inferir que, na verdade, G1 torna provável que F1 torne E1 provável que torna P provável e assim por diante. Sem [um caráter não-inferencial], crenças justificadas necessitariam completar um infinito número de encadeamentos de raciocínios infinitamente longos para justificar a crença em qualquer coisa (FUMERTON, 2010)74.

Se não se cai em um regresso ao infinito, por definição, ao estabelecer um sistema no qual, no final do encadeamento de raciocínio, haja justificação inferencial entre os elementos internos ao conjunto de crenças-premissas, enreda-se na circularidade. Nesse sentido, a inexistência de um conceito de justificação não-inferencial que impeça o regresso epistêmico vicioso, lança o fundacionalismo na busca de um resultado ao qual o método inferencial não pode atingir. Chega-se ao ponto no qual se faz necessário perguntar o que se entende por justificação inferencial e, também, o que se quer dizer quando se fala de uma justificação não- inferencial.

Se se pergunta pelo critério de verdade do princípio inferencial de justificação, pode-

74 “If we accept the more controversial second clause of PIJ, the looming regresses proliferate. Not only must S above be justified in believing E1, S must also be justified in believing that E1makes likely P, a proposition he would have to infer (if there are no foundations) from some other proposition F1, which he would have to infer from F2, which he would have to infer from F3, and so on ad infinitum. But S would also need to be justified in believing that F1 does in fact make likely that E1 makes likely P, a proposition he would need to infer from some other proposition G1, which he would need to infer from some other proposition G2, and so on. And he would need to infer that G1 does indeed make likely that F1 makes likely that E1 makes likely P, and so on. Without noninferentially justified beliefs, it would seem that we would need to complete an infinite number of infinitely long chains of reasoning in order to be justified in believing anything!” (FUMERTON, 2010, in http://plato.stanford.edu/entries/justep-foundational/ (acesso em 22/04/2013 às 13:40).

se responder, simplesmente, que a justificação de uma proposição P depende da habilidade de “alguém” extraí-la de uma proposição E1 a qual já seria uma crença justificada. Ora, nem a compreensão de “crença justificada” nem de “justificação inferencial” estão asseguradas. Para atingir o conceito de justificação inferencial deve-se definir antes o conceito de “justificação não-inferencial”. Fumerton propõe, então, uma reflexão:

Considere uma analogia. Suponha que um filósofo introduza a noção de bondade instrumental (algo que seja bom enquanto meio). Tal filósofo apresenta a seguinte análise grosseira do que é algo instrumentalmente bom:

X é instrumentalmente bom quando X conduz a algum Y que é bom. Mesmo

que nós tivéssemos que aceitar esta análise da bondade instrumental, fica claro que nós ainda não teríamos encontrado a fonte conceitual da bondade. Nossa análise de bondade instrumental pressupõe um entendimento do que, para algo, significa ser bom. Resumindo, não podemos entender o que significa ser bom para algo até que nós tenhamos algum entendimento primordial (e mais fundamental) do que significa ser “intrinsecamente” bom para algo. O argumento do regresso conceitual estabelece a tese de que a justificação inferencial está para a justificação não-inferencial como a bondade instrumental está para a bondade intrínseca (FUMERTON, 2010)75.

O regresso epistêmico e o regresso conceitual viciosos representam, ambos, um embaraço às tentativas de formular uma teoria “definitiva”, quer dizer, de uma posição epistemológica – neste caso, fundacionalista – que esgote o regresso e satisfaça, metodologicamente, as exigências conceituais mais rigorosas. Em “última” instância, justificar a justificação ou “tornar boa” a bondade, sintetizam o limite do método quando ele é forçado a enfrentar e ultrapassar seu próprio limite e o limite do objeto investigado. Nesta direção, se não se encontra uma alternativa ao modelo inferencial de justificação/validação das crenças, os caminhos apresentados conduzem ou à circularidade ou ao regresso ao infinito.

Uma das alternativas ao “embaraço inferencial” seria tentar descobrir um modo de estabelecer a justificação não-inferencial. Uma alternativa seria atribuir um caráter de infalibilidade à justificação não-inferencial. Entretanto, a justificação não-inferencial não

75 Consider an analogy. Suppose a philosopher introduces the notion of instrumental goodness (something's being good as a means). That philosopher offers the following crude analysis of what it is for something to be instrumentally good. X is instrumentally good when X leads to something Y which is good. Even if we were to accept this analysis of instrumental goodness, it is clear that we haven't yet located the conceptual source of goodness. Our analysis of instrumental goodness presupposes an understanding of what it is for something to be good. In short we can't understand what it is for something to be instrumentally good until we have some prior (and more fundamental) understanding of what it is for something to be intrinsically good. The conceptual regress argument for foundationalism puts forth the thesis that inferential justification stands to noninferential justification as instrumental goodness stands to intrinsic goodness. (FUMERTON, 2010, in http://plato.stanford.edu/entries/justep-foundational/ (acesso em 22/04/2013 às 13:43).

implica necessariamente numa crença infalível como quis Descartes (FUMERTON, 2010). A noção de crença infalível lida com a ideia de “verdade necessária” (uma verdade necessária pode falhar? Uma crença infalível é necessariamente verdadeira? Mas, o que é uma crença infalível? O que pressupõe uma crença infalível? E uma verdade infalível?), mas: de que modo? Num sentido formal, uma verdade necessária apresenta resultado em acordo rigoroso com seu valor de verdade, ou seja, sempre implica em resultados isentos de falha, falta, erro, equívoco; sob pena de contradição, uma verdade não pode falhar. Se ela falha, é sinal de que ela é “não-verdadeira”. Por conseguinte, uma verdade necessária é suficiente para gerar uma crença infalível que, por sua vez, pode ser compreendida como – na exigência que se faz de uma – justificação não-inferencial, ou seja, na qual cessa a exigência por ulterior justificação: diante de uma verdade auto-evidente pode-se gerar, portanto, uma crença-proposição infalível. Contudo, novas questões se colocam: como tipificar satisfatoriamente a “verdade auto-evidente” e, ainda: haveria uma “relação” mais apropriada segundo a qual a crença- proposição seria “inferida” da verdade em questão? Pode-se, pois, elidir os processos inferenciais? Qual seria o substituto? De todo modo, a verdade necessária pode ser compreendida na formulação: “A crença de S de que P em t é infalível, se S crê que P mediante t implica que P é verdadeiro”.

Tomar proposições autorreferentes como ponto de partida como, por exemplo, “eu existo”, pode ser uma “saída”, mas não há garantias de que se manterá a segurança e a infalibilidade pressupostas numa verdade necessária – considerando que uma proposição autorreferente pode ser tomada como uma verdade necessária (em certo sentido, como crença básica). Nesta direção, ao ultrapassar a fronteira das proposições autorreferentes, perde-se a segurança de uma verdade “objetiva”, necessária, universalmente auto-evidente e, consequentemente, na ausência de crenças infalíveis, o problema da justificação apresenta-se novamente. Fazer o caminho inverso, em busca do restabelecimento da ligação entre proposições autorreferentes e proposições de outras ordens, tornará claro o abismo que separa as primeiras das últimas. Além do mais, não se deve perder de vista que há uma considerável distância entre P ser o caso e a crença em P como estado de coisas.

Assim, como validar logicamente as proposições autorreferentes e universalizá-las? Proposições que, de início, parecem não enfrentar problemas se consideradas como “verdades necessárias”. Se pensarmos em outro exemplo sugerido por Fumerton, a questão tornar-se-á mais clara. Ao considerarmos a proposição “Agora, eu estou sentindo dor”, os problemas ficam num relevo mais alto. (1) Necessariamente, outro indivíduo que observa a situação não tem como asseverar a verdade da proposição. (2) Se o indivíduo acredita que sente dor, isto

não implica que ele, realmente, sinta-a. Além do mais – como pondera Fumerton –, deve-se considerar que:

É certamente possível que a região do cérebro que é causalmente responsável pela produção da crença de que seu estou sentindo dor é completamente diferente da região do cérebro causalmente responsável por produzir a dor. Deve haver uma conexão causal entre a ocorrência do evento cerebral “dor” e a ocorrência da crença cerebral “crença”, ou vice-versa, mesmo se existisse a conexão causal, ela não passaria de um fato contingente. Não parece razoável supor que os neurologistas possam descobrir conexões causais puramente a priori (ou de qualquer outro tipo). Mas, se o estado do cérebro responsável pela crença de que “eu sinto dor” é completamente diferente do estado cerebral responsável pela dor, e se as conexões entre eles são meramente nomológicas, então, em princípio, é possível produzir uma coisa sem a outra. A crença não implica a verdade daquilo em que se acredita76 (FUMERTON, 2010).

Haveria alternativa para “justificar” uma justificação não-inferencial? Fumerton refere-se à possibilidade de uma justificação não-inferencial como “justificação infalível”. Levando em conta a relevância da infalibilidade para uma justificação não-inferencial, é possível pensar na disponibilidade de uma justificação distinta que apoie uma crença: a infalibilidade da crença de S estaria justificada na condição t quando a justificação da crença de S em P implica relevantemente na verdade de P. De modo preliminar, o vínculo da crença de S em P deve ser caracterizado como relevante no sentido de que o fato que torna o primeiro verdadeiro também implica na verdade do segundo (S implica P de modo relevante se e somente se o fato que tornaria S verdadeiro participa, pelo menos, do fato que torna P verdadeiro) . Neste sentido, cabe perguntar: que “fato” é esse? Nota-se que se há um “fato” que torna S verdadeiro e que também torna P verdadeiro, em certa medida, há uma “interseção de verdade” da qual participam S e P: a justificação das proposições depende de uma “esfera” (conjunto) que, ao menos, lhes é relativa. Se a justificação de S e P é alcançada, o “conjunto verdade” do qual eles participam permanece sem justificação.

As proposições autorreferentes de ordens distintas (“eu tenho cabelos grisalhos” e “eu estou sentindo dor”) não implicam – como já vimos – que outros indivíduos partilhem da

76 It is surely possible that the region of the brain causally responsible for producing the belief that I am in pain is entirely different from the region of the brain causally responsible for producing the pain. There may be a causal connection between the occurrence of the “pain” brain event and the occurrence of the “belief” brain event, or vice versa, but even if the causal connection holds it will be a contingent fact that it does. It hardly seems that the neurophysiologist could discover these (or any other) causal connections purely a priori. But if the brain state responsible for my belief that I am in pain is wholly different from the brain state responsible for the pain, and if the connections between them are merely nomological, then it is in principle possible to produce the one without the other. The belief will not entail the truth of what is believed (FUMERTON, 2010).

crença delas e não me autorizam, tampouco, uma sinonímia entre crença e estado de coisas. Nem uma crença não-autorreferente (César foi assassinado) pode ser tomada como um “estado de coisas”, como o que é o caso. De pouco adianta afirmar que a justificativa para minha crença no assassinato de César baseia-se no fato de que César foi assassinado; ou de que se eu acredito que estou sentindo dor, é porque, de fato, estou sentindo dor; ou, ainda, a crença de que meu cabelo é grisalho não implica que ele seja grisalho. Permanecendo num isolamento metodológico rígido – em que a metodologia assume as condições de verdade –, crenças não podem ser justificadas a partir de fatos, nem fatos a partir de crenças; afinal, que elementos autorizaria a “tradução” elementos empíricos/contingentes em termos conceituais?

A questão da justificação encontra uma nova tentativa de explicitação noutra versão do fundacionalismo clássico: a teoria da familiaridade de Russell. De modo “rasteiro”, pode-se dizer que Russell propõe que a crença na dor está justificada porque estou diretamente familiarizado com a dor. Neste sentido, eu não poderia estar familiarizado com o assassinato de César ou com qualquer outro fato contingente. Portanto, para que a proposição-crença esteja justificada, não é suficiente que se esteja familiarizado com o fato: a familiaridade deve ocorrer igualmente no que diz respeito à relação de correspondência existente entre a proposição e o fato que justifica, que a torna verdadeira. De acordo com Fumerton, um conceito da verdade como correspondência joga um papel fundamental na teoria da familiaridade de Russell. Entretanto, o que vem a ser esse campo entre o fato – ou o dado – e a crença-proposição do fato? Como assegurar o caráter necessário entre correspondência, fato e crença-proposição? O problema que emerge é de uma familiaridade “estrutural”, sem a qual não se poderia justificar a “crença” nos termos pretendidos.

Sem levar a posição de Russell mais adiante – e ainda seguindo Fumerton de perto –, tomamos brevemente uma observação proposta por Sellars ao papel “objetivo” do dado na familiaridade. Ele mobiliza sua reflexão na direção de uma “desconstrução” de um elemento caro ao fundacionalismo: o “dado”. Uma “doutrina” do dado pressupõe a preservação de uma pureza objetiva do “dado”, quer dizer, que se possa tomar o dado tal qual ele se apresenta aos sentidos sem, no entanto “maculá-lo” com conceitos. A intenção é torná-lo imune à exigência de justificação que caracteriza o argumento do regresso e, com isso, encerrar a questão. Fumerton pondera que se:

Por um lado, assegurar que algo que foi “dado” não envolve outras crenças, proponentes/defensores da visão querem que o dado mantenha-se “puro” em relação à aplicação de conceitos. Por outro lado, toda a doutrina do dado é elaborada para por um fim no regresso da justificação, para dar-nos

fundações seguras sobre as quais possam repousar o que nós