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Fundacionalismo e Direitos Humanos

A QUESTÃO DO FUNDAMENTO: CARACTERÍSTICAS E PROBLEMAS

3.3 Fundacionalismo e Direitos Humanos

De que modo as questões levantadas pelo fundacionalismo podem contribuir para pensar uma teoria dos direitos humanos e para elucidar a possibilidade e o sentido de seu fundamento? A primeira e mais óbvia resposta seria, neste caso, pensar/determinar analiticamente se há crenças básicas em direitos humanos e quais seriam elas. Em segundo, a partir de então, indagar pela possibilidade de sua justificação – e, quem sabe, pensar a “demonstração” desta justificação; em terceiro lugar, tentar, ou melhor, testar qual seria a possibilidade mais eficiente entre os fundacionalismos forte, modesto e fraco para: (a) uma defesa argumentativa dos direitos humanos que restrinja os riscos de um “fundamentalismo” e de sua apropriação – indevida “adaptação” semântica – por parte de setores extremamente conservadores da sociedade (sejam políticos, religiosos, de direita ou esquerda, etc.); (b) uma ampliação da discussão crítico-dialética e pedagógica, com vistas a uma maior integração e compreensão transcultural dos direitos humanos. Buscar-se-ia, destarte, a efetivação dos direitos humanos nos âmbitos mais íntimos da vida como uma postura pessoal que, em primeiro, coloca o cuidado de si sob a mediação da alteridade, bem como rigorosa exigência e vigilância para que os mecanismos governamentais ajam progressivamente mais na direção do cumprimento de sua missão pública e não como “nichos” prevalentemente privado-

oligárquicos.

Contudo, deve-se considerar que, assim como “o mundo da vida” manifesta-se à revelia de uma teoria que possa descrever compreensivamente, em maior ou menor medida, seus fenômenos, o “fenômeno dos direitos humanos” desdobra-se independentemente da existência de um fundamento; sejam teóricos ou práticos, os riscos e perigos não podem ser terminante e definitivamente resolvidos. De fato, nem “o mundo da vida” não deve ser reduzido à crença humana nem, tampouco, a dimensão humana deve ser unilateralmente interpretada à revelia do mundo da vida; a “subvaloração” do mundo cultivada por algumas correntes teórico-filosóficas não alterara o estado de coisas do e no mundo da vida. E como o humano é parte deste mundo, uma histeria deste porte significaria a negação máxima de si mesmo enquanto pulsão vital. O mundo é “tudo que é o caso”: uma verdade de fato; o “fenômeno dos direitos humanos”, também. Entretanto, estes são fatos enquanto produtos culturais e, portanto, históricos; assim, o mundo da vida é a circunstância mais ampla à qual os direitos humanos e todos nós pertencemos. Se a epistemologia visa explicitar, compreender e caracterizar criteriosamente o conhecimento, uma epistemologia/teoria dos direitos humanos parece assumir como tarefa a compreensão e a defesa de uma autodeterminação digna das condições de vida humana, suas “falências” e contradições. Autodeterminação está concretamente expressa na constituição e no movimento do fenômeno dos direitos humanos; essa autodeterminação não prescinde da natureza, do mundo da vida e o ser humano, bem humanamente, é parte dessa cadeia de autodeterminação.

Falar de crenças básicas em direitos humanos implicaria em falar dos valores éticos básicos – como o faz James Rachels – e de justificá-los em função de uma vida boa. Destarte, poder-se-ia falar de um fundacionalismo dos direitos humanos, seja fraco, modesto ou forte. De todo modo, a escolha por este caminho não deve ignorar a possibilidade da determinação dos instintos e das estratégias de vida enquanto sentimentos morais; de como a razão, pulsão do instinto, operou laboriosamente estratégias – amiúde trágica e contraditoriamente – para o estabelecimento das condições de vida. Tratar a vivência humana no mundo como expressão unilateral e totalizante da razão, eliminando sem mais sua camada animal, suas determinações materiais e sua capacidade determinante, sua vontade de poder, sua recusa à sujeição dos imperativos naturais, sua capacidade material e intersubjetiva de transcendência tensionada entre o ser e o dever ser; enfim, ignorar a diversidade “assombrosa” da condição humana, no mínimo, seria repousar nas plácidas águas de um lago metafisicamente artificial.

E é nessa direção que, em certo sentido, a noção de crenças básicas do fundacionalismo parece ficar mais distanciada de crenças básicas em direitos humanos.

Noutro sentido, seja no sentido mais intuitivo, empírico ou sentido mais sensorial, mais fenomenológico e, por assim, dizer, espontâneo, cultural, elas estão bem próximas do que parecem: há crenças básicas em direitos humanos; eles não existiriam se não as houvesse. E dentro da exigência epistêmica, devemos perguntar: podemos formulá-las, entrar num consenso prévio sobre quais são e, então, empenharmo-nos em justificá-las, na demonstração de nossa justificação e atingir um consenso, ainda que não definitivo, sobre as justificações das “crenças básicas” em direitos humanos? E a proximidade estreita-se na medida em que procuramos recorremos às ideias, representações, palavras, aos conceitos para tentar “compreender” as circunstâncias humanas diante de si e do mundo, ou melhor: no mundo.

Pode-se, então, apelar à ideia de tipificar os direitos humanos através da elaboração de uma lista de crenças básicas como, por exemplo: a crença na existência de uma “natureza humana ética”, na dignidade humana, na igualdade axiológica e biológica entre toda vida humana (toda vida humana tem igual “valor” e merece iguais chances de viver), na liberdade de escolha humana; a crença na proposição de que todos os seres humanos compartilham de fragilidades, de que todos nós necessitamos – proporcional ou eventualmente – de meios adequados para proteção e cuidados no desenvolvimento de nossa vida; a crença na existência de perigos engendrados na conduta humana; a crença na proposição de que todos os seres humanos possuem necessidades e interesses básicos (biológicos e culturais) e de que nem todos nascem abrigados pelas condições necessárias para satisfazê-las, etc. Essas proposições são portadoras de termos que expressam valores básicos – muitos deles implicados nos elementos manifestos na história conceitual dos direitos humanos – com os quais lidamos e nos quais acreditamos cotidianamente, em maior ou menor medida; geralmente, eles são colocados em díades que, muitas vezes, são interpretadas como oposições embora estejam enredadas não apenas no universo geral da linguagem, mas principalmente, em relação direta uma com a outra, sem poderem ser deslocadas dos “jogos” que as definem em seus usos, fartamente variados, no mundo. Por exemplo: bem e mal, bom ou ruim, malefícios e benefícios, direitos e deveres, fraco ou forte, útil e inútil, prazer e dor, segurança e perigo, preservação (vida) e extinção (morte) e, assim por diante, diante de situações e culturas multiplas.

Se a possibilidade de tratar a questão do fundamento dos direitos humanos não se mostra tão mais distante do fundacionalismo – ou mesmo do antifundacionalismo –, dificuldades de todas as ordens se avolumam. E elas estão em selecionar os itens mediante critérios adequados, definir e justificar o(s) critério(s) de seleção, explicitar satisfatoriamente esses itens e justificar todos os elementos e relações entre os elementos utilizados na

composição da lista, enfrentar os problemas de origem conceitual-terminológica e sua “correspondência” com a realidade – termos como dignidade, fraternidade, igualdade, por exemplo. Ainda há o que de se considerar, numa eventual lista, o que foi deixado de fora e o porquê; se nosso conjunto de crenças-premissas em direitos humanos deveria ser aberto ou fechada e segundo quais critérios e assim por diante. Ainda que conseguíssemos empreender a tarefa teórica de forma bem-sucedida, restaria os imperativos da vida prática, política, enfim, acenando com desconfiança diante de tão bem montado “sistema de ideias’. De todo modo, não podemos nos furtar à tarefa de usar a reflexão como uma navalha que livre a teoria de excessos que não dizem respeito ao objeto em questão. Com isso talvez se possa tipificar as algumas crenças – ou “princípios” – básicas e não-básicas em direitos humanos através das propostas de fundamentação ou, quem sabe, de suas lacunas, de suas insuficiências. Sem pretensões definitivas, sem pretensões transitórias. Talvez não haja fundamento. Talvez, sim. Como propõe o coerentismo – numa das versões mais fracas do fundacionalismo –, é possível que sejam “fundamentos”, crenças básicas que se apoiam mutuamente, de modo não inferencial.

Historicamente, podemos estar no caminho de revisar o conceito de fundamento e dar- lhe uma nova significação ou, ao menos, outro ângulo; uma revisão que não perde a ligação com a própria tradição de pensamento que tem tratado da questão ao longo dos séculos. Pode não haver tal coisa a qual nomeamos por fundamento, bem como é possível que seja exista; E isto não impede que trabalhemos por criá-lo. A impossibilidade de sua existência, “construção” ou ressignificação é uma presunção epistêmica tão grande quanto a presunção de sua posse “efetiva, certa e infalível. Seja como for, elas não devem ter um efeito paralisante, mas “movente”. Afinal, atiramo-nos ao mar do pensamento, da vida, e precisamos seguir viagem enquanto repararmos o navio.

4.

FUNDAMENTOS POSSÍVEIS DOS DIREITOS HUMANOS