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A QUESTÃO DO FUNDAMENTO: CARACTERÍSTICAS E PROBLEMAS

3.2 O Fundamento na Epistemologia Contemporânea: O Fundacionalismo

3.2.3 Tipos de Fundacionalismo 1 Funcionalismo Forte

3.2.3.2 Fundacionalismo Modesto

De acordo com Poston, ao reelaborar o fundacionalimo forte em termos mais “brandos”, William Alston contribuiu fortemente para seu revigoramento teórico. Alston estabeleceu várias distinções conceituais inter-relacionadas que, na medida em que enfatizavam qualidades de um fundacionalismo modesto, consequentemente, ressaltavam as limitações de sua versão forte. Três dessas distinções inter-relacionadas são: (1) crenças epistêmicas (epistemic belifs) e crenças não-epistêmicas (non-epistemic beliefs); (2) a condição de estar justificado (state of being justified) e a atividade de apresentar a justificação de um indivíduo (activity of exhibiting one’s justification) e, por fim, a distinção entre (3) uma justificação do argumento do regresso (a justification regress argument) e uma demonstração do argumento do regresso (a showing regress argument).

Passemos, então, às distinções inter-relacionais de Alston. A crença epistêmica é definida como portadora de conceito epistêmico (conhecimento e/ou justificação); trata-se de uma crença que deve ser acompanhada pela justificação epistêmica. Já as crenças não- epistêmicas não possuiriam o dispositivo de justificação conhecimento contido nas crenças epistêmicas. Se se considera as crença expressas nas proposições: “estou justificado de que há um carro vermelho diante de mim” e “há um carro vermelho diante de mim”, notar-se-á que a primeira crença possui o dispositivo epistêmico que permite sua classificação como epistêmica ao passo que a segunda não possui. As duas crenças são estritamente distintas e separadas: possuir a crença de que P não pode ser traduzido como possuir a crença justificada de que P. Neste sentido, não é pertinente o argumento segundo o qual as crenças não- epistêmicas demandam crenças epistêmicas para serem justificadas. Assim, embora necessite do dispositivo epistêmico para afirmar que a primeira proposição goza do status epistêmico, a

segunda premissa (classificada como não epistêmica em virtude da ausência do dispositivo referido) não necessita a rigor e necessariamente da premissa epistêmica para ser justificada nem, tampouco, do dispositivo que lhe permite a classificação como epistêmica. A primeira proposição possui um grau conceitual mais sofisticado visto que está justificada; já a segunda, sendo apenas descritiva e, conceitualmente menos elaborada, aproxima-se mais da experiência sensorial elementar e, portanto, é uma crença-premissa mais básica do que a primeira.

A segunda distinção inter-relacionada à primeira diz respeito à “condição de estar justificado” e à atividade de apresentar a justificação (de um indivíduo). Nesta distinção, Alston expõe a diferença entre a crença e sua justificação. Um indivíduo que possui uma crença pode não estar apto a justificá-la. Neste sentido, ele pode não dispor de condições de exercer a atividade de apresentar a justificação requerida; não fazendo, ele estaria de posse de uma crença não-epistêmica (non-epistemic belief). Entretanto, se ele o faz, passa a possuir uma crença epistêmica (epistemic belief). Poston utiliza exemplos de casos extremos e verídicos para apoiar a distinção de Alston, quais sejam: (1) a vovó deve estar justificada em acreditar que possui mãos sem estar em condições de apresentar sua própria justificação e (2) Timmy está justificado em acreditar que ele tem existido por mais de cinco minutos, mas não pode fazer coisa alguma para demonstrar sua justificação. Em ambos os casos, os indivíduos não estão em condições de demonstrar a justificação de suas crenças que, por sua vez, são baseadas em situações sensoriais evidentes para eles e para uma plateia dentro dos padrões sensoriais definidos como normais.

Já a última distinção desenvolve-se entre a justificação do argumento do regresso e uma demonstração do argumento do regresso. Como foi visto anteriormente, o modelo tradicional do argumento do regresso é, na verdade, o retorno de uma exigência de justificação que impõe a necessidade premente – e interminavelmente recursiva – de crenças justifiquem as anteriores. Trata-se mostrar em que condições a questão do regresso surge e quais são suas exigências; e a justificação do regresso demanda que a justificação de uma crença deve ocorrer de forma direta, ou seja, deve ser apresentada imediatamente. Enquanto que, no segundo caso – a demonstração do argumento do regresso epistêmico –, cada crença justificada deve demonstrar porque é justificada. A demonstração do argumento do regresso possui o objetivo de provar/demonstrar que a crença de S em P é justificada. Neste sentido, sempre que S tiver uma crença, S deverá demonstrar que está justificado em acreditar que P. Por conseguinte, justificar uma crença e demonstrar por que esta justificação é válida são exigências distintas conquanto em relação uma com a outra.

Por fim, segundo Poston, o fundacionalismo moderado apresenta-se bem mais atrativo se comparado ao fundacionalismo forte. Poston afirma que:

Com estas três distinções asseguradas e a posterior reinvindicação de que as crenças justificadas podem ser falíveis, revisáveis e dubitáveis, Alston resolve rapidamente as objeções apresentadas contra o fundacionalismo forte. Os argumentos contra o fundacionalismo forte não tem efeito se aplicados ao fundacionalismo moderado e, mais adiante, não possuem força contra as reinvindicações segundo as quais algumas crenças possuem uma forte pressuposição de verdade. As reflexões realizadas a partir de casos reais apoiam as evidências de Alston. A crença da vovó de que ela possui mãos pode ser falsa e, assim, poderá ser revisada à luz de evidências futuras. Talvez, a vovó tenha sido equipada com dispositivo protético que se assemelha e funciona como uma mão normal. No entanto, quando ela olha e percebe visualmente suas mãos, ela está plenamente justificada em acreditar que possui mãos79 (POSTON, 2010).

O fundacionalismo moderado de Alston é pensado por ele como uma forma de fundacionalismo mínimo que está implicado com “crenças não-inferencialmente justificadas”. Tal qual exposto, o fundacionalismo modesto considera que o conhecimento é possível mesmo quando não possuímos crenças ao modo do fundacionalismo forte; crenças justificadas podem, por conseguinte, possuir uma justificação suficiente apesar de serem passíveis de dúvida, falha ou correção. As crenças básicas – ainda que enfraquecidas – podem “fundamentar” crenças que demandam apoio. O fundacionalismo moderado trata o conhecimento e a justificação do conhecimento a partir de um conjunto de crenças básicas cujo caráter epistêmico positivo oferece um fundamento não-inferencial; esse conjunto de crenças básicas possibilita a inferência de crenças não-básicas cujo caráter epistêmico positivo permite a dúvida, a falha e sua revisão/correção em um momento futuro a partir do surgimento de dados que motivem a correção/revisão.

Há outras formas de fundacionalismo modesto/moderado. Fumerton cita, por exemplo, o conservadorismo fenomênico de Michel Huemer e o dogmatismo de Jim Pryor, ambos representantes do fundacionalismo internalista. Tomemos Huemer como exemplo rápido do fundacionalismo internalista moderado. O internalismo pressupõe que é possível identificar e

79 With these three distinctions in place and the further claim that immediately justified beliefs may be fallible, revisable, and dubitable Alston makes quick work of the standard objections to strong foundationalism. The arguments against strong foundationalism fail to apply to modest foundationalism and further have no force against the claim that some beliefs have a strong presumption of truth. Reflection on actual cases supports Alston’s claim. Grandma’s belief that she has hands might be false and revised in light of future evidence. Perhaps, Grandma has been fitted with a prosthetic device that looks and functions just like a normal hand. Nonetheless when she looks and appears to see a hand, she is fully justified in believing that she has hands (POSTON, 2010) (tradução nossa).

ter acesso a conteúdos internos que possuem propriedades epistêmicas bem mais vantajosas do que o mundo externo possa oferecer. Obviamente, o grau de certeza que é depositado nas crenças básicas internas define o caráter do fundacionalismo internalista: se forte, moderado/modesto ou fraco.

Segundo Fumerton, Huemer parte de uma ideia não lapidada do conservadorismo epistêmico e procura melhorá-la. Ele começa pela ideia inicial de que basta alguém acreditar em P para, num primeiro momento, estar justificado em acreditar em P. A dificuldade para o cético aqui aparece claramente: em geral, o cético enfatiza elementos que comprometem qualquer certeza e, consequentemente, qualquer construção confiável do conhecimento; ele precisa lidar com “elementos” que sejam passíveis de dúvida. Ora, a pretensão de Descartes era erigir um conhecimento que fosse imune à dúvida; ele estabeleceu um argumento que fortalece a crença do sujeito a partir da própria dúvida. O que Huemer quer mostrar é que as crenças, enquanto crenças, são simplesmente imunes à dúvida: o cético nada pode fazer se alguém acredita – e está plenamente convencido – de que P. Ele precisará convencer o sujeito de que sua crença é equivocada ou, ao menos, passível de dúvida – e isso ainda não chega a invalidar a crença nem, necessariamente, torná-la mais fraca. Se considerarmos que Descartes usa a dúvida como “fundamento” de sua certeza, o cético se encontrará numa posição ainda mais difícil em sua batalha para convencer alguém sobre a “impossibilidade” de sua crença.

Huemer apresenta o paradoxo de alguém que, na medida em que envelhece, olha com mais “segurança/certeza” para o passado apesar de sua memória já não ser tão boa quanto antes. Com isso, a partir de exemplos, ele procura distinguir “crenças” de aparências (seemings) ou aparecimento (appearing). Ele cita a ilusão de Muller-Lyer para exemplificar a distinção proposta. Uma vez que estamos familiarizados com as duas retas de igual tamanho, colocadas paralelamente, cada uma das quais com setas nas extremidades apontando em direções opostas (a primeira com setas apontando para “fora” (>) e a segunda com setas viradas inversamente, como a letra V deitada (<), ou seja, com a extremidade inferior saindo da reta 2); enfim, uma vez que estejamos familiarizados com esse experimento, não mais atribuiremos tamanhos desiguais para as setas ainda que assim pareça. Com isso, Huemer quer enfatizar a diferença que há entre uma crença e impulso, inclinação ou disposição para crer. Assim, quando alguém acredita que P porque P apareceu – ou lhe pareceu – tal qual P, a princípio, neste estado, ele possui uma razão epistêmica – ainda que provisória – para crer que P. O problema básico do fundacionalismo, sobretudo forte – internalista ou externalista –, reside tanto na exigência por uma crença que oferece um maior grau de certeza – e não apenas uma “justificação intuitiva” – como, também, na ausência de um critério que possa identificar

e determinar quais crenças – ou quais aspectos de uma crença – são justificáveis e quais não são, bem como em que medida são demonstráveis.

O “concorrente” direto do internalismo é o externalismo. Apesar da posição externalista possuir uma grande variedade de versões, Fumerton (FUMERTON, 2010) afirma que, virtualmente, é possível determinar que sua unidade conceitual reside no fato de que se pode acreditar em P inferindo-o a partir de E sem, necessariamente, ter consciência do processo inferencial que vai de E até P. Passemos, pois, a vista sobre o fundacionalismo externalista moderado de Alvin Goldman.

Goldman concentra sua posição na noção de confiabilidade. Conforme Fumerton, não há nada excessivamente complexo no argumento de Goldman; pelo contrário: a justificação das crenças está vinculada à sua confiabilidade. Se uma crença é produzida de modo confiável, então, ela é uma crença justificada; e, uma crença justificada é, provavelmente, uma crença verdadeira. Goldman vincula as crenças básicas aos processos de crenças independentes e as crenças não-básicas aos processos de crenças dependentes. De acordo com Fumerton:

As crenças formadoras (originárias) são crenças produzidas pelo “software” do cérebro que assume que os estímulos de entrada (stimuli “input”) de dados são de outra ordem, distintos das crenças; as crenças secundárias (tardias) são crenças produzidas por processos que assumem, pelo menos, seus dados de entrada como [provenientes] de outras crenças. Então, por exemplo, é possível que tenhamos nos desenvolvido de tal modo que estimulados com certos dados sensoriais de entrada nós, imediata e irrefletidamente, chegamos a conclusões sobre objetos externos. E nós podemos estar vivendo num mundo no qual crenças sobre o mundo externo produzidas deste modo são, geralmente, verdadeiras (ou geralmente seriam verdadeiras se um número suficiente delas fosse produzido). Tais crenças serão justificadas em virtude de serem produtos de um confiável processo de crenças independentes80 (FUMERTON, 2010).

Um processo independente e confiável de formação de crenças é iniciado pelo cérebro a partir dos estímulos recebidos sensorialmente. Os estímulos não são as crenças e o cérebro, de algum modo, reconhece isso; irrefletidamente, ele gera os dados e, por conseguinte, as crenças – que são crenças básicas, imediatas, na existência de objetos externos. Em geral,

80The former are beliefs that are produced by “software” of the brain that takes as its “input” stimuli other than beliefs; the latter are beliefs produced by processes that take as their input at least some other beliefs. So, for example, it is possible that we have evolved in such a way that when prompted with certain sensory input we immediately and unreflectively reach conclusions about external objects. And we may live in a world in which beliefs about the external world produced in this way are usually true (or would usually be true if enough of them were generated). Such beliefs will be justified by virtue of being the product of reliable belief-independent processes (tradução nossa).

como as crenças produzidas acerca do mundo exterior possuem elevado grau de operacionalidade prática e, quando não, podem ser corrigidas, assume-se o caráter confiável tanto dos processos quanto das próprias crenças geradas. Pode-se, assim, passar para os processos de geração de crenças dependentes (não-básicas) e, portanto, de justificação dessas crenças. Eles serão confiáveis na medida em que o conjunto dos processos relevantes de produção de crenças (independentes e dependentes) e as próprias crenças relevantes (de entrada e saída) sejam verdadeiros e se apoiem mutualmente, confirmando-se. Um processo de crença-dependentes é confiável, se suas crenças de saída são geralmente (ou normalmente) verdadeiras, se as crenças de entrada relevantes são verdadeiras, e as crenças de saída dos processos confiáveis são justificadas, desde que as crenças de entrada estejam justificadas (FUMERTON, 2010). Entretanto, a confiabilidade não possui maior relevância epistêmica do que a probabilidade; ambas são incapazes de cumprir a exigência de uma crença definitiva tão aventada pelo fundacionalismo forte e, tampouco, Goldman está se propondo consegui-lo. Ele tenta mostrar que não há motivos para desconfiar dos processos cerebrais usuais no que concerne à formação de crenças e sua “justificação” inicial.

De modo geral, Poston avalia que as críticas ao fundacionalismo moderado ecoam a exigência do fundacionalismo forte de Lewis: de um modo ou de outro, elas insistem na ideia de que não há probabilidade possível sem uma certeza. Não é possível estabelecer um “fundamento” sobre uma probabilidade: para que uma probabilidade seja possível, deve haver antes uma “certeza” ou, ao menos, crenças básicas, informações adicionais, das quais a probabilidade depende. Certamente, além de críticas específicas, o fundacionalismo fraco também irá enfrentar as críticas oriundas do fundacionalismo forte. O menor grau de exigência relativo à certeza não livrou o fundacionalismo fraco das críticas.