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O ponto de partida – as condições de possibilidade do lixo e do catador

3 A PROBLEMATIZAÇÃO DO LIXO E A PRODUÇÃO DO RECICLÁVEL

3.3 A questão do lixo no Brasil e na cidade do Rio de Janeiro

O lixo doméstico brasileiro, de acordo com a legislação, é de propriedade das prefeituras. Sua gestão cabe ao município, conforme a Constituição Federal/1988 - Art. 30, Incisos I e V. Os grandes geradores, como são denominados os estabelecimentos públicos ou privados (com atividades comerciais, industriais ou de serviços) cuja produção diária de resíduo considerado domiciliar ultrapasse 120 litros ou 60 quilogramas têm a coleta sob sua própria responsabilidade.

O lixo brasileiro, apesar de ser de propriedade dos municípios – a quem compete decidir sobre o seu destino final –, costuma ser um tema relegado para segundo plano pelas autoridades públicas. A explicação para isso é a de que haveria uma preocupação menor por parte do poder público quanto a problemas gerados pelos resíduos urbanos.

Segundo Calderoni (1998), o dinheiro investido pelas prefeituras no gerenciamento de resíduos é inapropriado e, geralmente, bem menor do que o investido em outros serviços.

Cointreau (1986[1982]) em relatório sobre projetos de gerenciamento de resíduos em outros países pobres declara algo idêntico. Já, de acordo com Portilho (1997), as prefeituras no Brasil possuem uma infra-estrutura de prestação de serviços elaborada de acordo com o número de habitantes, com os recursos técnicos e financeiros disponíveis e com os interesses dos prefeitos.

Uma explicação para o gerenciamento inapropriado dos resíduos sólidos estaria no processo de urbanização rápido por que passaram as cidades brasileiras que impediu que as estruturas de saneamento acompanhassem o povoamento de forma a atender a todas as camadas da sociedade.

A sociedade brasileira, ao que parece, passa a dar atenção aos problemas provocados pelo lixo a partir da década 1990, época em que uma consciência ambiental é incorporada, especialmente com relação aos aspectos ligados à reciclagem. A reciclagem teria começado a ser difundida a partir da Eco-92 (Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento) (PORTILHO, 1997).

A Eco-92 foi um encontro de representantes de diversos países que objetivavam conciliar desenvolvimento socioeconômico, conservação e proteção dos ecossistemas naturais. Nessa Conferência foram discutidas medidas que restringissem a degradação do meio ambiente. A partir desse evento, temas como o desenvolvimento sustentável e a redução do consumo passaram a ser difundidos para a sociedade. Nela foram também divulgadas convenções da biodiversidade e mudanças climáticas, e a Agenda 21, que procurou viabilizar um desenvolvimento de forma racional, conciliando proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica. (Fonte: www.unb.br/temas/desenvolvimento_sust). Na Eco-92 foi estabelecido o princípio dos 3Rs, o que implicava cuidado com o desperdício, a seleção dos resíduos e um investimento no que tange à destinação final do reciclável e do rejeito. Foi a partir desse documento que ambientalistas e sanitaristas passaram a aliar a questão ambiental ao elevado índice de produção de resíduos.

Segundo Read et al. (1997), de um modo geral, para alcançar os objetivos dessa agenda, foi preciso uma proximidade entre autoridades locais e o setor privado, a fim de promover a minimização do descarte, a reciclagem, o reuso e a recuperação de energia. O ônus da implantação das estratégias para alcançar tais objetivos, contudo, recaiu sobre as autoridades locais.

Não foi apenas no campo da ação que esse evento promoveu mudanças significativas na mentalidade dos governantes. No campo legal também. Gonçalves (2006) cita como um reflexo desse encontro leis como a de Crimes Ambientais (leis nº. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (www.silex.com.br/leis/l_9605), que trata das sanções penais e administrativas para atos nocivos ao meio ambiente; assim como a lei nº. 9.433, de 8 de janeiro de 1997 (www.silex.com.br/leis/l_9433), relativa à Política Nacional de Recursos Hídricos e que regulamenta o inciso XIX do artigo 1º da lei nº. 8.001, de 13 de março de 1990 (www.planalto.gov.br/CCIVIL/LEIS/L9795.htm), que trata da educação ambiental, mediante a Política Nacional de Educação Ambiental, dentre outras providências.

No ano de 1997 o 19º Congresso da Associação Brasileira de Engenheiros Sanitaristas – ABES – constata a necessidade de uma Política Nacional de Resíduos Sólidos, tendo como alvo mais importante o atendimento aos princípios dos 3Rs. Nesse período o acúmulo de lixo, na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, era apontado como um dos problemas ambientais mais graves da cidade (GONÇALVES, 2006).

Entre os anos de 2000 e 2001 foram lançados pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) três editais (Editais nº. 06/2000; nº. 05/2001; nº. 12/2001) para a seleção de propostas voltadas para o Programa de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PGIRS), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. Esse programa foi criado com o objetivo de buscar soluções para os impasses relacionados ao meio ambiente em cidades com população entre 20.000 e 100.000 habitantes. Dentre as ações previstas no PGIRS, estava a instalação do Fórum Municipal do Lixo e Cidadania (FMLC); a mobilização da sociedade para o seu acompanhamento e gerenciamento dos resíduos urbanos; e o apoio à organização dos catadores enquanto categoria profissional, mediante associações ou cooperativas, dentre outros. Se hoje os catadores são reconhecidos como categoria pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), é muito em função da conjuntura que surge a partir de iniciativas como essa mencionada acima e outras paralelas, que passaram a ocorrer em prol deles – com o apoio de ONGs e entidades religiosas, além dos governos municipais, estaduais e federal.

Na cidade do Rio de Janeiro, os serviços de coleta de esgotos e de limpeza passaram a se restringir ao lixo somente em 1864. Antes disso, segundo Portilho (1997), vários projetos foram

tentados, mas nenhum logrou êxito, pois incluíam providências quanto a pessoas e animais indesejados. É com a contratação do engenheiro Aleixo Gary entre 1876 e 1891, para desenvolver um projeto de limpeza e irrigação, que mudanças significativas teriam ocorrido no sistema de limpeza da cidade. Após esse período, ocorreram sucessivas experiências fracassadas com empresas privadas, até que no ano de 1899 a Prefeitura da cidade reassume esses serviços. No início do século XX a tecnologia de coleta de resíduos municipais baseava-se na tração mecânica no esforço de superar a tração animal, que persistiu até o ano de 1961. Apesar de a primeira representar um progresso, o uso de animais permitia o acesso a locais onde os caminhões não alcançavam. O Departamento de Limpeza Urbana – DLU – é criado em 1940 e em 1962 se torna a Companhia Estadual de Limpeza Urbana – CELURB. Em 1975, com a fusão do estado da Guanabara ao estado do Rio de Janeiro, em que o antigo estado da Guanabara se transforma no município do Rio de Janeiro, e a CELURB passa a Companhia Municipal de Limpeza Urbana – Comlurb. Esta denominação é mantida até hoje (março de 2008).

Atualmente na cidade do Rio de Janeiro, o resíduo produzido é encaminhado para um aterro em Jardim Gramacho, bairro que se localiza no município de Duque de Caxias. Ele seria o maior aterro controlado da América Latina. Instalado em dezembro de 1975, quando 370,55 hectares de área foram cedidos à Comlurb para a sua construção. Antes dessa época, a maior parte do lixo era levada para o bairro do Caju – que após a construção daquele aterro continuou funcionado apenas como vazadouro de emergência. Este aterro passou a receber resíduos sólidos de grande parte da região metropolitana do Rio de Janeiro, como Duque de Caxias, São João de Meriti, Nova Iguaçu, Nilópolis, dentre outros (BASTOS, 2007).

Ao longo das duas últimas décadas, a área em que ele foi construído degradou-se levando a que o lixo nele acumulado invadisse o manguezal e a Baía de Guanabara, embora a expectativa com a sua criação fosse oposta. O que inicialmente fora concebido como um Aterro Sanitário acabou por transformar-se em um lixão. Desta forma, desde 1996, haveria um empenho por parte de vários profissionais (desde engenheiros, arquitetos, biólogos, topógrafos, entre outros, como pessoal ligado à área social) empenhados em reverter esse quadro e em (re)transformar o lixão em um aterro sanitário. Um enorme contingente de catadores trabalham no entorno desse aterro e, a fim de dar conta das suas questões (sociais e de higiene), a área de Serviço Social foi convocada

para cadastrá-los, organizá-los em cooperativas, e para restringir o acesso a pessoas sem condições para o desempenho da catação (termo cunhado pelos catadores). Esse aterro está com sua capacidade esgotada e tem exigido iniciativas do poder público para diminuição de sua vazão. No que tange à reciclagem, a cidade do Rio de Janeiro inaugura a sua primeira usina de separação de resíduos no bairro de Irajá no ano de 1977, com o objetivo de solucionar o problema da vazão aliando-o ao reaproveitamento. Na década de 1990 foram criadas mais duas outras usinas de reaproveitamento com o mesmo objetivo – nos bairros Caju e Jacarépagua. Na década de 1990 e início do século XXI o poder público lançou políticas voltadas para os catadores de rua da cidade e do aterro, com o objetivo de atender tanto ao reaproveitamento como à geração de renda. Essas políticas serão descritas no capítulo seguinte.

Quanto ao comércio, atualmente o mercado de recicláveis pós-consumo na cidade do Rio de Janeiro seria marcado pela união de três grandes atravessadores, que deram origem à CRR – Centro de Reciclagem do Rio de Janeiro. Considerada a principal compradora de material coletado por catadores na cidade, a CRR é um oligopsônio. Ela fica localizada próximo à rodovia que funciona como principal ponto de escoamento de produtos dessa cidade e é composta de empresas como a Cibrapel, a Farias Plásticos, a Ipiranga, o Depósito de Papel Santiago, Depósitos de Papel Pedro Alves e Depósito de Papel Santa Fé que, juntas seriam o principal responsável pelo acúmulo (escala) e escoamento de papel e plástico do estado do Rio de Janeiro. A Aleris Latasa Reciclagem, por sua vez, seria a única empresa especializada na reciclagem de alumínio e PET (polietileno tereftalato de etileno) desse estado (ARRUDA, 2005). Seus principais fornecedores seriam as cooperativas de catadores (legalizadas), bares e restaurantes, escolas, a Locantis e a Koleta (empresas privadas de coleta seletiva de grandes geradores). No total a Latasa possuiria 14 depósitos pelo Brasil. Tanto formação desse oligopsônio como a instalação da Latasa no estado do Rio de Janeiro determinam a conjuntura que em meados da década de 1980 e início de 1990 originam aquilo que se propõe como a problematização do lixo.