• Nenhum resultado encontrado

O ponto de partida – as condições de possibilidade do lixo e do catador

SANITÁRIA

Afirmações: problema de

vazão, questão para as municipalidades.

Conceitos: lixo orgânico Estratégias e teorias: lixo

como adubo, uso de porcos e de incineradores, construção de aterros e lixões, políticas de repressão.

AMBIENTAL

Afirmações: necessidade de busca de

alternativas ao custo

da incineração, diminuição de espaços para vazão, escassez de recursos

Conceitos: resíduo, rejeito, inorgânico,

princípio dos 3Rs (reaproveitar, reutilizar, reciclar), reaproveitamento,

lixo como sinônimo de poluente

Estratégias e teorias: movimentos

ambientalistas, Estocolmo 1972,

cartilhas, tecnologias limpas, consumo verde e consciente, Eco-92,

reaproveitamento e reciclagem, Constituição de 1988 (Brasil).

ECONÔMICA

Afirmações: reciclagem como

algo competitivo e sustentável., objeto de valor como matéria-

prima, economia de recursos energéticos, necessidade de suprimento de matéria bruta, mercado promissor

Conceitos: lixo como commodity

secundária

Estratégias e teorias: coleta

seletiva, reciclagem de material com potencial econômico e passível de retorno ao ciclo de

produção, políticas de estimulação

Pela figura 3.1, o lixo é apresentado como uma produção discursiva formada de

elementos distintos, dependendo das questões que ele suscite. Quando ele é uma ameaça à saúde

se resume a uma questão da administração das cidades (municipalidades), quando resposta à escassez de matéria-prima há uma confusão entre as questões (ambiental e econômica) que passam a freqüentar o seu campo discursivo.

Da mesma forma que essa produção discursiva leva a que se pense sobre o problema da escassez de recursos, leva também à emergência do catador como alvo de políticas de estimulação. A figura acima procura colocar os pontos em que alguns elementos aparecem como que concomitante a um discurso (ambiental) e a outro (econômico). Ela permite pensar que a escassez pode ser tanto relacionada aos recursos naturais, que devem ser preservados, como à matéria bruta, necessária para a movimentação das indústrias. Da mesma forma que o catador é

alvo de políticas porque ajuda a despoluir o ambiente e porque ajuda a promover o retorno do

material ao ciclo de produção. Mais ainda, a problematização do lixo significa que o conceito de reaproveitamento e de reciclagem invade a sociedade que adere a essa atitude motivada pelas questões, ambiental e sanitária, mas também pela questão econômica.

Li (2003), em pesquisa realizada na cidade de Wuhan, China, identificou no dinheiro a motivação principal para as pessoas contribuírem para a reciclagem. Preocupações ambientais, pressões sociais e incentivos econômicos também estariam entre as razões para a participação delas. Apesar de ser um hábito antigo entre aquelas pessoas, ele estaria se perdendo à medida que os jovens vêm tratando o reciclável como lixo, não obstante os incentivos econômicos. Os depoimentos colhidos por essa autora lembram muito o dos biscateiros do estudo de caso 1, a serem mencionados no capítulo 5 que se mostram divididos entre uma motivação (discurso) econômica e uma ambiental.

O lixo, apesar de suas características de toxidade e de perigo à saúde passa a valor (que pode gerar lucro) à medida que apresenta potencial para retorno ao ciclo de produção por vários motivos: graças ao desenvolvimento de tecnologias; em função das suas propriedades físicas (lixo seco); da necessidade de matéria bruta para uma indústria em expansão e; conseqüentemente, do desenvolvimento de um mercado. A pressão política de alguns setores da sociedade para que haja mais reciclagem poderia estar entre um desses motivos, mas ela se daria

mais pelo viés social do que econômico.

Como um discurso, cada uma dessas três questões colocadas aqui são formadas de

elementos determinados, por meio dos quais as políticas de estímulo ao trabalho dos catadores

emergem como estratégia que podem ser associada a afirmações e conceitos oriundos de duas dessas questões (ambiental e econômica).

Figura 3.2 As condições de possibilidade do lixo como questão econômica e ambiental

O que muda em relação a esses elementos são as afirmações que justificam sua importância: para a questão econômica, o reciclável representa material que pode retornar ao ciclo de produção (matéria-prima), para a questão ambiental, aquilo que se não tratado pode poluir porque não se degrada (inorgânico).

A figura 3.2. apresenta elementos (conceitos, estratégias e afirmações) do discurso sobre

PROBLEMATIZAÇÃO DO LIXO

QUESTÃO AMBIENTAL Tipo de material que passa a

ser produzido Problemas de vazão

Escassez de recursos naturais

QUESTÃO ECONÔMICA

Propriedades físicas do lixo

Lixo como matéria-prima

Desenvolto. de tecnologias de reaproveitamento Desenvolvimento de indústrias de reciclagem Escassez de matéria-prima Desenvolvimento de um mercado Movimento ambientalista

o lixo que podem ser associados a uma questão econômica e ambiental. O desenvolvimento de tecnologias de aproveitamento, o crescimento da demanda industrial por matéria-prima após a Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento de um mercado, ilustram práticas discursivas que junto com o conceito de reciclável e do lixo e suas propriedades físicas compõem esse campo

discursivo.

As políticas públicas, a mobilização da sociedade (os movimentos sociais) são práticas

discursivas que emergem única e exclusivamente desta questão. O que se altera, parece, é a

incorporação de regras que acabam por atender também à questão econômica, que muitas vezes se valem de afirmações incompatíveis para se referir ao contexto aberto por uma mesma

estratégia. Por exemplo, a escassez de recursos que enquanto em um discurso é uma ameaça ao

ambiente, para outro representa ameaça ao progresso (ao desenvolvimento das indústrias ou à sua produtividade).

Após apresentar os discursos associados ao lixo, é possível propor a sua problematização como condição para o aparecimento do catador como uma formação discursiva, a ser tratada no capítulo seguinte.

3.5 Discussão

É a concomitância entre a diminuição da vazão dos resíduos nos aterros e a demanda industrial por recicláveis que leva a que as municipalidades elaborem políticas que facilitam o retorno do material reciclável ao ciclo de produção, mediante estratégias como a construção de plantas (aterros controlados, usinas de separação); campanhas de conscientização da sociedade (que resultam em práticas como a coleta seletiva) e políticas de estimulação aos catadores (apoio à formação de cooperativas de catadores) ou de reaproveitamento e geração de renda.

O objetivo deste capítulo foi o de mostrar as condições que permitem pensar sobre a concomitância entre um discurso ambiental e um discurso econômico em relação ao resíduo doméstico e institucional, e ainda mostrar que elementos permitem propor essa concomitância. Foi possível estabelecer as estratégias que ajudam a corroborar essa proposta e estabelecer os atores nela envolvidos, que vão desde os geradores, consumidores, especialistas ligados às

questões ambiental e econômica (ecologistas, engenheiros etc.), gestores públicos, empresários (intermediários, beneficiadores), segmento industrial voltado para a reciclagem, até os catadores.

A identificação desse atores é importante para mostrar que o envolvimento deles ocorre por motivações distintas, que valem a pena ser destacadas, pois esses atores são evocados somente a partir do instante em que o discurso deles (dos especialistas) ou relativo a eles (aos alvos) passa a ter um apelo econômico (empresários, intermediários) ou um apelo ambiental (geradores, consumidores). Da mesma forma, o papel que cada um desses atores ocupa (como

elementos) no discurso econômico ou ambiental é também distinto, seja como elaborador de regras, seja como um alvo sobre o qual as formações e práticas discursivas incidem. Nesse

sentido, tomando a problematização do lixo como uma unidade discursiva, pergunta-se a quem as regras dessa problematização mais diretamente se dirigiriam?

Tabela 3.4 O lixo como unidade discursiva e as suas condições históricas de possibilidade Unidade Regras Formações ou práticas discursivas

Questão ambiental Ecologistas. Engenheiros.

Gestores públicos etc.

Geradores (coleta seletiva).

Consumidores (redução do consumo, consumo consciente).

Questão econômica Empresários (intermediários, beneficiadores).

Industriários. Gestores públicos.

Catadores (organização em cooperativas).

Para entender esta tabela deve-se considerar a unidade discursiva como uma experiência historicamente singular que se baseia em regras (poder). Regras essas que possibilitam a interação de afirmações e a transformação dos objetos a elas relacionados, os quais, por sua vez, resultam em formações ou práticas discursivas pelas quais os indivíduos se reconhecem como

sujeitos de uma experiência historicamente singular. A tabela 3.4 acima mostra de onde partem

ou a quem é dado o poder (ou o direito de) proferir afirmações ou a capacidade de elaborar

conceitos e propor teorias e estratégias, cujas formações ou práticas discursivas oriundas desses elementos incidem sobre indivíduos determinados que passam a ter de se reconhecer como

geradores, consumidores (cidadãos, conscientes) e catadores (organizados em cooperativas). As estratégias pensadas para os catadores – tais como sua organização em cooperativas –,

partem dos gestores públicos, empresários, engenheiros e até mesmo de ecologistas; estratégias as pensadas para os consumidores – e sua conscientização sobre a necessidade de mudanças quanto a seus hábitos de consumo – e para os geradores – a fim de que separem o material aproveitável pós-consumo – também partem de especialistas e instituições determinadas (do Estado, no caso). Essas estratégias significam formas de assujeitamento daqueles que são seus alvos, conforme têm de mudar seus hábitos para se adaptarem àquelas regras.

Interessará nesta tese tratar apenas dos catadores e do efeito da problematização do lixo em suas práticas, uma vez que são os únicos que subsistem única e exclusivamente da coleta e venda dos recicláveis. E uma vez também que são os únicos que, ao contrário dos geradores e consumidores, não seriam sujeitos do discurso mediado pela questão ambiental, mas pela econômica – vide as regras de que se valem as políticas de estimulação ao trabalho deles por parte do poder público, que visam ao atendimento das exigências do mercado.

Assim, o que motivou esta tese não foi necessariamente a concomitância dos discursos em relação ao lixo, mas o efeito dessa concomitância quando se percebe (mediante os estudos de caso) que há motivação econômica nas práticas adotadas por geradores e consumidores e apelo ao meio ambiente quando os catadores são evocados (conforme as entrevistas com os gestores públicos) pelas políticas de reaproveitamento e geração de renda do poder público.

Em 2001 Gonçalves afirmava que o gerenciamento de resíduos passava a ter que dar conta não só do aspecto sanitário, mas também do ambiental, do econômico e do social. O aspecto social não foi colocado neste capítulo por ser um tema que sempre emerge quando da relação entre o lixo e a miséria ao seu redor. Da mesma forma que o aspecto do consumo emerge quando da evocação do gerador e do descarte de resíduos. Ambos os catadores e geradores foram evocados aqui somente à medida que são alvo da problematização do lixo, ou seja, da racionalidade econômica que as estratégias e conceitos relativos ao lixo passam a suscitar, apesar de ocuparem um lugar diferente nesse discurso.

Uma coisa é o lixo como algo sem utilidade ou valor, repugnante ou fora do lugar, termo associado à desordem e à bagunça ou que pode provocar nojo ou aversão. Outra é o lixo como algo que ameaça a saúde e o meio ambiente e que, por isso, deve ser alvo de políticas. O termo reciclável é usado para designar tanto a saída encontrada para a resolução do problema ambiental

que ele provoca como o objeto de interesse econômico em que ele se transformou.

O objetivo deste capítulo foi o de apenas mostrar as diferentes produções discursivas relativas ao lixo e a concomitância de elementos que permitem problematizá-lo, conforme Foucault (1984). E, na medida em que procurou mostrar os diferentes discursos sobre o lixo e os

elementos de que se vale cada um deles, ajudou a abrir caminho para que se pudesse compreender

a partir do que a emergência do catador se tornou um tema possível. O capítulo seguinte procura mostrar o que se pode denominar como alguns dos elementos constituintes do catador como uma

4 DAS AFIRMAÇÕES SOBRE O CATADOR ATÉ AS ESTRATÉGIAS E OS SEUS