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Estrutura da organização – responsabilidades coletivas, gestão do negócio individual

O ponto de chegada – arqueologia, genealogia e resistência nas organizações de catadores

7 CASO 3: A RESISTÊNCIA À PROBLEMATIZAÇÃO DO LIXO

7.2 Estrutura da organização – responsabilidades coletivas, gestão do negócio individual

Segundo os catadores desta associação, ao contrário dos membros do estudo de caso 1 e do estudo de caso 2, eles praticamente obtêm seu material de geradores determinados com quem estabelecem um contrato, geralmente informal, fruto de anos de convívio naquela região. Por esse motivo eles se definem como “donos de ponto”.

O gestor não interfere nas suas transações comerciais, mas cuida de controlar os aspectos relativos às responsabilidades coletivas, como a limpeza do local (varrer o galpão, limpar os banheiros), o pagamento de quentinhas e refrigerantes ali vendidos diariamente por camelôs. Esse galpão, como eles chamam ao espaço, é fechado por ele no final de semana – sábado à tarde – e reaberto na segunda-feira pela manhã. Explica: “Isso aqui é como se fosse a casa deles. Mas a

gente tem que fechar senão eles não saem mais”. Como os catadores permanecem ali ao longo de

toda a semana, segundo ele, se não cerrasse as portas no sábado o local perderia o caráter de ambiente de trabalho. Todos ali são moradores de regiões longínquas (Vigário Geral, Duque de Caxias e Nova Iguaçu) e permanecem a maior parte da semana na associação. Alguns acompanhados de seus cônjuges e/ou filhos maiores que já trabalham. A presença de crianças no local não é permitida, a não ser na semana do Natal, quando pessoas ligadas a entidades religiosas e ONGs levam presentes.

Dava para perceber no interior do galpão os espaços delimitados de cada dono de ponto, os quais se assemelhavam a um lar sem divisórias. Na hora do almoço isso era mais nítido, quando muitos costumavam sentar-se próximo aos espaços em que havia uma TV ligada enquanto comiam: “Parecem umas crianças assistindo o Pokemón”, comenta um deles com o observador à distância.

Cada dono de ponto tem um espaço próprio que é delimitado por objetos, como sacolas pretas de material coletado ou já separado, objetos que permitem identificar facilmente as fronteiras entre o lugar ocupado por uma pessoa ou outra. Nessas áreas, além de TV, costuma ter

rádio, geladeira e até mesmo fogão improvisado. O espaço possui também banheiros masculino e feminino e, durante a observação, estava para ser construído um refeitório com verba obtida pelo Ibiss.

O galpão em que fica essa associação se caracteriza por ser um espaço de armazenamento e limpeza do material coletado pelos donos de ponto. Nele os donos de ponto e seus auxiliares realizam a separação do material que vai ser recolhido pelos compradores tão logo não haja mais espaço para armazenar. Esse ambiente de trabalho está restrito apenas aos seus associados e auxiliares. Dos três grupos estudados, este é o único que não possui enfardadeiras. Isso interfere no preço do material, pela não agregação de valor ao produto. Por outro lado, cada um pesa sua mercadoria numa balança, cuja precisão eles próprios controlam e não o comprador, como acontece no estudo de caso 1 e parece ser algo comum na catação, como afirma a literatura (MAGERA, 2003). De acordo com esse autor, o hábito de o controle da balança ser realizado pelo comprador seria um indicador da manipulação a que catadores estariam submetidos quando da negociação do material. Nesse sentido, o fato de esses catadores pesarem o material que vão vender seria um passo importante.

O tópico seguinte procura tratar da divisão de tarefas, já que o volume coletado por eles leva ao estabelecimento de uma logística a fim de dar conta de manusear a tempo de esvaziar o espaço para a busca de mais material no dia ou na semana seguinte.

7.2.1 Associados e auxiliares

Embora esta tese afirme realizar um estudo de caso sobre organizações de catadores que surgiram a partir das políticas de estimulação do poder público nas duas últimas décadas, mediante a formação de cooperativas, esses catadores não se definem como cooperados. Eles preferem o termo associação para definir essa organização. Foi a partir do ano de 2003, com a proximidade estabelecida entre eles e o Ibiss, que este termo passou a designá-la.

Conforme já colocado, esse grupo é composto de pessoas com longa experiência na catação. A maioria deles são pessoas jovens que nasceram em meio a esse contexto. Há idosos também, em número pequeno. Muitos começaram catando ao lado de seus pais também catadores

e acabaram por “herdarem a vocação” deles.

Pelo fato de o material que eles recolhem ser rico e abundante, muitos donos de ponto contratam auxiliares para ajudá-los a transportar e a separar. Seus auxiliares costumam transportar o material do gerador até o interior da associação, onde ocorre a separação da mercadoria naqueles espaços delimitados. Geralmente os donos de ponto contratam para auxiliá- los amigos ou parentes, que recebem por quantidade de material separado, pois apesar de o lixo ser rico, ele sempre vem com algo não aproveitável: “Eu tenho um separador aqui e dois na rua,

porque o serviço não tem hora pra acabar não” – comenta um dono de ponto.

Os donos de ponto dessa associação muitas vezes iniciaram suas carreiras trabalhando como auxiliares de outros donos de ponto e, com o tempo, conquistaram uma fonte de descarte de material própria. Desta forma, a expectativa de um auxiliar seria a de um dia se tornar um dono de ponto, conforme ocorreu com esse rapaz:

Trabalhava como puxador num depósito da [avenida] Rio Branco e depois eu comecei a catar. Eu olhava eles trabalharem à noite, não voltava pra casa. Aprendi a catar de uma hora pra outra, aí fiquei amigo das pessoas da rua. Trabalhava na Candelária no sol e na chuva, aí o B [gestor público e mentor do programa de cooperativas em 1993] chamou o pessoal e trouxe pra cá. Na primeira reunião da Comlurb tiraram o retrato da pessoa

[deles] para o crachá...

Outras vezes, o catador herdou o ponto de seus pais, como contou uma mulher que sobrevive do material de um prédio que a cada dia da semana é recolhido por ela ou um dos seus três irmãos desde que sua mãe falecera e o gerador decidira continuar doando para a família dela. Essa família hoje sustenta seus filhos com o dinheiro desse material doado para (herdado por) eles.

Uma senhora conta que o pessoal da Comlurb foi quem a sugeriu para que fosse trabalhar nesse galpão, na época em que ele era denominado como cooperativa. Seus filhos que trabalham com ela desde pequenos também teriam ido junto: “Graças a Deus, criei todos os filhos com isso

aqui [com a catação]”. Conta que o pai a tirou de casa pra cuidar da madrasta doente, depois foi

trabalhar em casa de família até que decidiu deixar o trabalho porque estava “enjoada” e, à medida que ia conversando com o pessoal da rua, aprendeu a vender frituras e amendoim até que

se tornou catadora. Segundo ela, foi ao vender papelão que se “fez na vida” e comenta:

Tentei ser para os meus filhos a mãe que nunca tive. Nem J, nem S nunca passaram pelo que eu passei. [...] Graças a Deus trabalho por minha conta. Só para mim. Para mim, não, para as minhas netinhas também.

Cada um de seus filhos cuida de seu negócio separadamente. De acordo com ela, antes de vir para a associação a única queixa que tinha da catação era o fato de que quando chovia o comprador se recusava a negociar o papel molhado. Com o galpão isso teria mudado, pois o teto os protegia e ao material.

Esse grupo de catadores não é o único grupo a catar no Centro. Há muitos catadores autônomos que trabalham nas ruas coletando e separando pelas calçadas ao anoitecer e que vendem pela manhã em algum sucateiro ou em caminhões que, embora raros, ainda existem. Em visita realizada nas suas ruas no período noturno, percebeu-se o anseio deles de que tivessem oportunidade igual aos catadores da associação, de que possuíssem um espaço para desempenharem o trabalho deles sem estarem submetidos às condições mínimas de trabalho nas calçadas das ruas.