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O ponto de partida – as condições de possibilidade do lixo e do catador

4 DAS AFIRMAÇÕES SOBRE O CATADOR ATÉ AS ESTRATÉGIAS E OS SEUS EFEITOS

4.2 O trabalho de catador – origens

4.2.3 O catador como alvo – as estratégias

A partir de agora serão apresentadas algumas das estratégias do Estado relacionadas aos catadores, e a tentativa de identificar as mudanças de afirmações sobre os catadores decorrentes das alterações dos discursos sobre o lixo.

Da mesma forma que o lixo, as pessoas tidas como indesejadas e as atividades consideradas sujas e ruidosas – açougueiros, ferreiros, dentre outros – permaneceram condenadas às periferias das grandes cidades (BURKE, 2001). Com os catadores de lixo não foi diferente. Como exemplo disso Portilho (1997) conta que as primeiras iniciativas voltadas para o saneamento básico na cidade do Rio de Janeiro não faziam discernimento entre os dejetos e as pessoas consideradas indesejadas. Ambos deviam ser afastados da sociedade.

As políticas voltadas para os catadores durante muito tempo se empenharam, usando de métodos coercitivos, para que eles se engajassem em outras ocupações. Mas esse empenho em geral falhou, segundo a literatura, devido ao fato de que muitos catadores teriam dificuldades

para conseguir um trabalho no setor formal, seja pelo baixo nível educacional, seja pela idade avançada (KASEVA & GUPTA, 1996; MORENO-SANCHEZ & MALDONADO, 2006). Além desta limitação, deve-se também considerar que muitos catadores gostam do ofício, conforme pôde ser constatado ao longo dos estudos de caso. Alguns autores acreditam, conforme encontrado na literatura, que mesmo que algumas pessoas envolvidas na coleta do lixo se engajem em alguma outra ocupação, não resultaria em redução do número de coletor nas ruas. Outras pessoas se encarregariam de ocupar o vácuo deixado por eles (KASEVA & GUPTA, 1996; MEDINA, 2000).

Em estudo minucioso, Medina (2000) propõe que as políticas oficiais do Estado dirigidas a esses atores poderiam ser classificadas como de quatro tipos: de repressão, de omissão, de conspiração e de estimulação.

A política de repressão é aquela que considera os catadores como fazendo parte da massa amorfa de excluídos sociais, e a catação uma atividade desumana, ilegal, símbolo de atraso, fonte de embaraço e de vergonha. Sendo assim, a atividade seria proibida em determinados horários, como no caso do Cairo, Egito, onde as carroças de jumento usadas para o transporte de material foram proibidas entre o amanhecer e o pôr-do-sol. Muitas vezes eles têm os seus objetos pessoais recolhidos, como no caso da Colômbia, e são alvos de campanha de limpeza social, conduzida por grupos de paramilitares, para quem os catadores de lixo, as prostitutas e os mendigos seriam um incômodo e, por isso, deveriam ser seqüestrados e expulsos de certas vizinhanças e áreas (MEDINA, 2000; RODRIGUEZ, 2003). De acordo com alguns catadores entrevistados, antes da iniciativa de apoio da década de 1990, eles eram tratados como moradores de rua e mendigos e assim encaminhados para albergues em locais afastados da cidade, junto com os seus pertences:

Era a operação ‘cata tralha’. O caminhão da prefeitura pegava as coisas dele [do catador], colocava tudo dentro do caminhão e levava para bem longe. Não queriam nem saber se ele tava ali trabalhando, pegava tudo e levava embora. [catador, caso 3]

De acordo com Dias (2002), a prefeitura da cidade de Belo Horizonte praticava algo parecido com os catadores quando eles estavam a fazer a triagem dos seus produtos nas ruas. O planejamento em gerenciamento de resíduos sólidos e o empenho em eliminar os catadores freqüentemente impactam o padrão de vida deles. Medina (2000) cita o caso dos catadores de

Bogotá que, comuns no depósito municipal da cidade até o ano de 1980, após a construção do aterro sanitário foram proibidos de freqüentar o local, o que os levaram a catar o lixo nas ruas da cidade. Isto, segundo o autor, teria sido algo desvantajoso, já que na rua é preciso caminhar muito a fim de obter uma quantidade apropriada de mercadoria para a venda, o que piorou o padrão de vida dos que trocaram o aterro pelas ruas das cidades. De fato, os catadores de rua declararam ao observador que precisam de carros para puxar seu material, que se expõem ao tráfego e que têm de caminhar longas distâncias a fim de coletar bastante material para vender. Muitas vezes eles disseram que são obrigados a dormir nas ruas a fim de obterem uma quantidade boa de material.

Li (2002), dá conta de que desde o início da década de 1990 a cidade de Wuhan na China tem experimentado uma rápida experiência de urbanização e modernização. Essa experiência implicou no afastamento dos depósitos de reciclagem para fora dos grandes centros por terem passado a ser considerados como depreciativos. Segundo ela, esse afastamento interferiu na conduta dos geradores (de resíduo doméstico), que desistiram de juntar objetos para a reciclagem em função da distância dos novos depósitos de material reciclável.

A política de omissão (negligência) ocorre quando as autoridades se recusam a considerar os catadores e sua função. Eles não são perseguidos, mas também não recebem apoio. São simplesmente ignorados. Cidades africanas como Dakar, Senegal, Bamako, Mali, Cotonou e Benin apresentariam casos de política de omissão (MEDINA, 2000).

A política de conspiração é aquela marcada pela fraude, em que funcionários do governo desenvolvem com os catadores uma relação de exploração, de ganho e de assistência mútua – numa espécie de clientelismo político. O caso da cidade do México é tradicional nesse sentido: autoridades do governo e lideranças formadas entre os catadores (denominados “caciques”) - de acordo com Berthier (2003) e Medina (2001) - teriam desenvolvido uma complexa estrutura de relações que incluiria não só catadores de depósitos, como também varredores de rua, coletores de lixo, atravessadores, industriários e autoridades locais. Algumas das relações ilegais incluiriam o pagamento de suborno aos oficiais do governo a fim de que ignorassem os abusos de poder.

A política de estimulação ocorre a partir da constatação das deficiências ou na inaplicabilidade das tecnologias de gerenciamento de resíduos americanas e européias para os países em desenvolvimento. Essa inaplicabilidade caracterizaria uma das condições de

possibilidade do catador como alguém tido como apto a ter acesso ao reciclável pós-consumo em áreas onde aquelas tecnologias não alcançam. Uma das razões disso é o fato do lixo produzido nesses países ser mais orgânico (COINTREAU 1986[1982]). Essa constatação leva a uma mudança na postura adotada em relação aos catadores, que passariam a ser considerados como pessoas preparadas para enfrentarem adversidades, já que muitas vezes os seus veículos são mais apropriados do que os caminhões compactadores, para coletar nas más condições das favelas, por exemplo (MEDINA, 2000). Outros autores que também desenvolveram trabalho no México afirmam que sem essa habilidade do catador, somente aquilo que fosse voluntariamente separado pelos geradores alcançaria as companhias de reciclagem (OJEDA-BENITEZ et al., 2002).

Segundo Ojeda-Benitez et al. (2002), porém, foi o reconhecimento de setores do poder público de que o lixo é fonte de renda que levou muitos municípios da América Latina a usarem métodos não tradicionais para a esfera que manuseia o resíduo sólido, geralmente no esforço de trazer trabalho para as áreas de baixa renda.

A política de estimulação, na maioria das vezes, considera o trabalho dos catadores pelos seus benefícios ambientais, econômicos e sociais. Ela consiste no apoio mediante a legalização da atividade, ao estímulo à formação de cooperativas - como no caso da Ásia -, na concessão de contratos para coleta de lixo misturado ou de recicláveis e na formação de parcerias público- privadas entre autoridades locais e catadores – como na América Latina.

Na Indonésia, por exemplo, os catadores possuem leis nacionais de apoio aprovadas (KASEVA et al., 2002). Haveria ainda o apoio do governo central para a formação de cooperativas, o financiamento pelos bancos de empréstimos, a imposição de tributos ao material importado no esforço de aumentar os seus ganhos (MEDINA, 2000). Além da Indonésia são mencionados estudos sobre a reciclagem e o reaproveitamento de resíduos realizados na Tanzânia, Paquistão, Singapura e Taiwan (COINTREAU, 1986[1982]; KASEVA et al., 2002).

Muitas dessas políticas foram influenciadas pelas iniciativas do Banco Mundial que, no início da década de 1980, produziu um projeto guia para o gerenciamento de resíduos em países em desenvolvimento. Esse projeto continha uma variedade de opções em tecnologia e gerenciamento de resíduos a serem consideradas de acordo com as circunstâncias locais dos países considerados. A coleta mecanizada, por exemplo, foi questionada pelo projeto do banco

Mundial num momento em que questões relativas à disposição e recuperação dos resíduos fizeram parte de uma discussão mais geral sobre os impactos de diferentes técnicas na estrutura das comunidades em que elas eram introduzidas (COINTREAU, 1982; FUREDY, 1984).

O interesse social, entretanto, de acordo com os relatórios do Banco Mundial, deveria predominar nas discussões que envolvessem os catadores, suas condições sociais e as implicações do planejamento de resíduos sólidos e da recuperação de recursos. Duas das proposições centrais daquele projeto incluíam ajuda e assistência pelos municípios aos coletores de resíduos e aos catadores informais no que tange à saúde, condições de trabalho e mercado (COINTREAU, 1985, 1986[1982]; FUREDY, 1984).

Conforme Berthier (2003), em 1983, no México, teria sido produzido o primeiro estudo sistemático sobre o lixo e o problema social nele embutido. A dificuldade em se obter dados a respeito da catação justifica-se por essa ausência de documentos também aqui no Brasil. Conforme a literatura consultada, eles teriam sido identificados na década de 1930, 1950 (DIAS, 2002) e, de acordo com as pessoas ouvidas, na década de 1970 e 1980. A figura 4.1 situa as afirmações e as estratégias associadas aos catadores. Trata-se de uma distribuição que leva a pensar que as políticas voltadas para os catadores seriam diferentes, da mesma maneira que o

discurso sobre o lixo leva-os a serem alvo de estratégias distintas, de acordo com o discursos

sobre o lixo.

Figura 4.1 Os discursos sobre o lixo e as afirmações e estratégias sobre os catadores

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