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PARTE I – Obtenção e análise dos dados

Caso 1 Copacabana Caso 2 – Botafogo Caso 3 Centro Entrevistas abertas 5 (3 catadores, 1 gestor

2 ANÁLISE DO LIXO E DO CATADOR SOB A PERSPECTIVA DE FOUCAULT

2.1 Breve introdução à obra de Foucault

Segundo Machado (1981) e Rabinow e Dreyfus (1995), Foucault poderia ser definido como uma espécie de ‘epistemólogo das ciências humanas’, já que se propõe a fazer a história dessa área do saber, valendo-se para isso da análise do discurso. Para facilitar a compreensão

dessa afirmativa, Machado (1981) faz uma comparação dos trabalhos de Foucault com os de Canguilhem e Bachelard que, para falarem da física, o fizeram do seu exterior e a partir das suas rupturas – paradigmas. A análise que propõe Foucault implicaria, então, falar das ciências, mas a partir do seu interior. Essas ciências, no caso, seriam as ciências humanas, consideradas como uma construção como outra qualquer que, diferentemente, não se libertou da “matriz [de poder], como fizeram as ciências físicas” (RABINOW e DREYFUS, 1995, p. 177). Desta forma:

As ciências humanas geralmente tentam copiar das ciências naturais a exclusão de qualquer referência ao fundamento de suas teorias. Ao buscarem critérios de pertinência e ao desenvolverem práticas comuns de observação, os cientistas humanos esperam que as práticas sociais subentendidas em suas ciências possam ser, ao mesmo tempo, concebidas como adquiridas e ignoradas, como nas ciências da natureza. [...] A partir destas técnicas de formalização, a ciência normal deveria, de fato, se estabelecer; contudo, isto só aconteceria abandonando as técnicas sociais, as instituições ou os dispositivos de poder, que tornam possível determinar seus contornos ou propriedades. Entretanto, tais técnicas e o contexto das práticas sociais, que elas pressupõem, são inerentes às ciências humanas, [...] pois, se as ciências do homem afirmam estudar as atividades humanas, então, elas, ao contrário das ciências naturais, devem levar em conta as atividades humanas que tornam possível suas próprias disciplinas (Ibid., p. 178).

Canguilhem e Bachelard seriam definidos como epistemólogos, ao passo que Foucault teria sido um ‘arqueólogo’, já que sua proposta é a de que se pudessem considerar as práticas sociais ou estratégias (regras de formação do discurso) segundo as quais as ciências humanas se constituiriam (descontinuidades).

Enquanto a epistemologia se volta para a constituição histórica dos conceitos das ciências como a física (os seus avanços) e outras áreas de conhecimento que buscam uma objetividade pautada em critérios racionais, a arqueologia se interessa pelo saber constituído não pela sucessão de conhecimentos, mas pela história daquilo que é contemporâneo ao desenvolvimento de uma determinada ciência humana, suas condições de possibilidade (MACHADO, 1981), ou seja, o que permitiu (historicamente) o desenvolvimento de determinado tema, saber, teoria.

Em seu livro História da loucura (1989), Foucault procura mostrar o surgimento da loucura como um saber relativo à psiquiatria. O foco de suas pesquisas, segundo Rabinow e Dreyfus (1995), estaria no objeto louco e naquilo que teria permitido a sua existência como tal em meio à massa até então amorfa dos excluídos sociais. O surgimento do capitalismo e a

necessidade de uma massa de trabalhadores produtiva justificariam o aparecimento do saber sobre a loucura e as tecnologias para o seu tratamento, porque assim poderiam ser identificados entre os miseráveis e excluídos sociais aqueles aptos a trabalharem (produzirem) da mesma forma que os improdutivos poderiam ser isolados. Com isso, o autor procura, ao fazer uma análise histórica da psiquiatria, mostrar que as condições para a possibilidade da loucura – ou seja, as práticas institucionais do internamento, o saber que as acompanha e as mudanças econômicas e políticas que a elas se articulam – se mostraram mais relevantes para estudar o problema da loucura do que as teorias, conceitos ou métodos desenvolvidos a seu respeito (FOUCAULT, 1972; MACHADO, 1981).

Em Nascimento da clínica, o alvo de suas análises é o saber relativo à medicina. Nesse livro, ele procura mostrar ser falsa a afirmação de que a medicina clínica se funda na anatomia patológica e na superação dos entraves impostos pela moral e pela religião, como proibir a dissecação de cadáveres devido à oposição entre duas formas de saberes incompatíveis: a anatomia patológica e a clínica do século XVIII. Com isso ele quer indicar que, para justificar uma prática presente – a dissecação –, se recorreu a uma história enganosa sobre o passado da medicina. Assim, falar da proibição da abertura de cadáveres justificava o fato de que essa prática passasse a ocorrer depois de um determinado período e não antes, como se isso já habitasse a mente dos cientistas antes do seu gesto fundador. Daí se conclui, então, que o discurso sobre esse desejo anterior da abertura de cadáveres tenha emergido para dar conta do vácuo deixado por essa falha do conhecimento, quando isso se torna algo importante para o desenvolvimento desse saber, num esforço para sustentar a sua legitimidade e a competência dos que o representam.

Mas o que Foucault quer discutir em Nascimento da clínica é: como esse saber (a medicina) foi se constituindo e o conjunto de elementos (objetos, afirmações, conceitos e estratégias) que ajudaram a montar o seu arcabouço e o do médico como a autoridade máxima para falar em seu nome. Paralelo a isso, novamente, ele procura mostrar como o desenvolvimento do saber relativo à medicina vai atender, ou melhor, vai se amoldar a uma determinada forma de economia em expansão (o capitalismo). Como a medicina vai passar a aderir àquela lógica e a funcionar de acordo com os seus ditames, por exemplo, de acordo com a forma de atendimento, a instituição hospitalar, o médico e a saúde pública. É fundamental para esse empreendimento

imbuir o médico de uma autoridade da qual não fora investido até aquele momento.

Nos dois trabalhos antes mencionados, Foucault trata das condições históricas de possibilidade de um objeto específico – a loucura e suas práticas e saberes e o modo como estas se articulam às mudanças econômicas e políticas da época; e de um saber específico – a medicina e seu saber como algo que funciona de acordo com certa economia mediante uma determinada forma de atendimento e uma noção de saúde pública, por exemplo.

Em ambos os livros, a condição de existência do objeto (louco) e do saber (medicina) teria relação direta com uma racionalidade econômica. Isso não quer dizer que a loucura e a medicina não existissem anteriormente à sua colocação como um problema. Elas existiam, só não se sustentavam numa matriz racional tal como a que passa a dar suporte às instituições ocidentais após o advento do capitalismo – como ocorre com a família, a escola e até mesmo a igreja, nesta última, numa clara referência a Max Weber em a Ética protestante (2001). Enquanto em

História da loucura e em Nascimento da clínica Foucault procurou empreender uma arqueologia

do olhar médico, nos seus três trabalhos seguintes – As palavras e as coisas, Arqueologia do

saber e A ordem do discurso – ele empreendeu uma arqueologia das ciências humanas

(RABINOW e DREYFUS, 1995).

É em Arqueologia do saber (1972) que Foucault se dedica à descrição do seu método de análise. Esse livro é a base para o os tópicos desta tese relativos à definição do seu método, ou melhor, da arqueologia e da genealogia2. Nele, Foucault apresenta as regras que permitem um enunciado (discurso). Ao tomar a loucura e a medicina, de que tratara anteriormente, ele procura mostrar como os saberes (unidade discursiva) em geral são formados – práticas discursivas e não discursivas – a partir de elementos cuja identificação se designa por arqueologia e cuja racionalidade se institui como genealogia. Ambos (a loucura e a medicina) são saberes que adquirem legitimidade não pelos objetos que evocam (elementos do discurso – como o louco, por exemplo), mas pelos interesses a que atendem (racionalidade). Uma breve citação de A ordem do

discurso (1996, p. 35) sintetiza a proposta desse período:

É sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem, mas não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que

devemos reativar em cada um de nossos discursos.

2 Já que ao isolar os discursos (arqueologia) ele é levado a indagar sobre o modo como seriam utilizados e que papel teriam na sociedade (RABINOW e DREYFUS, 1995).

É da esfera da genealogia investigar os mecanismos utilizados para o alcance desses interesses. É destes mecanismos que suas obras seguintes irão tratar. Ao enfatizar os mecanismos, ele passa a valorizar a questão das estratégias em detrimento das teorias (objetos de análise nas suas três obras iniciais, em que indaga sobre o controle interno das teorias (ou a ordem do discurso) e a indicar que as estratégias dão a idéia de um controle externo (poder).

As estratégias e o modo como operam (genealogia) são tópicos que ele desenvolve em

Vigiar e punir (1977) e História da sexualidade (1984) (BURRELL, 1998; MACHADO, 1981;

RABINOW e DREYFUS, 1995). É nessas obras que Foucault se volta para as tecnologias de controle (vigilância e punição) assim como para a questão dos sujeitos que as práticas discursivas ajudam a formar, de acordo com o modo como o crime ou a sexualidade, no caso, passam a ser considerados depois de uma determinada época. Todavia: “Isto não significa que as ciências do homem sejam um reflexo direto da prisão, porém apenas que elas surgiram numa matriz histórica comum e não se separaram das tecnologias de poder-saber investidas na prisão” (RABINOW e DREYFUS, 1995, p. 177). Essa matriz histórica refere-se aos aspectos que propiciaram o desenvolvimento do capitalismo3.

Em ambos os livros, Foucault novamente desenvolve seu raciocínio procurando mostrar que seu interesse não está em pensar sobre os criminosos, suas vigilâncias e métodos de punição, nem sobre a repressão dos instintos (sexualidade). Está em pensar sobre essas tecnologias de controle e em que elas seriam úteis para além da questão da criminalidade; e em que a repressão, ou a sua estimulação, poderia ser útil para além da questão da sexualidade em si. Segundo ele, elas são úteis no sentido de que atenderiam a uma racionalidade. Uma racionalidade instrumental, à medida que buscaria o alcance de uma ordem social mediante a qual o mundo pudesse ser representado como algo que possui uma lógica e um significado constituídos pela razão (econômica, no caso).

Mais do que isso, porém, ao apresentar essas tecnologias de controle como rituais de poder, ele mostra a sua contraface assinalada pela noção de sujeito – ou o alvo sobre o qual essas práticas incidem – ou da sujeição ao discurso. Ocorre, entretanto, que onde há poder (logo, assujeitamento) há resistência, ou seja, há a possibilidade de o sujeito (o alvo ou o assujeitado) rebelar-se contra o discurso que o engendra (FOUCAULT, 1995). A resistência, então, seria a

resposta a, e a resultante de um poder – entendido como o campo de relações (de práticas) a incidir sobre alvos determinados.

Segundo Foucault (1972), o que confere unidade a um discurso (conhecimento) é a sua localização histórica. Tomando os temas sobre os quais esta tese se debruça, é como se fosse possível propor que a atividade de catador é anterior ao marco que define o lixo como reciclável, apesar de os catadores ouvidos, por exemplo, terem se representado como legitimados, ou reconhecidos, socialmente pelo Estado somente a partir das políticas de estimulação ao trabalho deles na década de 1990 – época em que a reciclagem passa a ser difundida socialmente. Antes dessa época, a política de que se diziam alvo era a de repressão às suas atividades. É como se, com a difusão do conceito de reciclável – dada pela problematização do lixo – o catador passasse a ser alvo de estratégias diferentes, conforme esse conceito passa a se referir a algo cujo mercado é “promissor”. Desta forma, é preciso, então, estabelecer a localização histórica do lixo ou os discursos a seu respeito e como eles se formaram para que finalmente se possa pensar sobre as organizações de catadores estudadas e as condições que permitiram sua constituição; bem como se estas, por sua vez, admitem aos catadores participarem da formação das regras daquele discurso (sobre o lixo). O motivo para o qual essas organizações teriam sido criadas pelo poder público municipal foi o de permitir que o catador atendesse a uma economia de escala e vendesse a atravessadores (compradores de material na base da economia de escala) de médio porte.

Antes disso, contudo, passemos a alguns aspectos da obra de Foucault relativos à arqueologia, à genealogia e ao sujeito do discurso, de modo que se torne compreensível a sugestão desta tese de propor que se fale em problematização do lixo.