• Nenhum resultado encontrado

O ponto de partida – as condições de possibilidade do lixo e do catador

3 A PROBLEMATIZAÇÃO DO LIXO E A PRODUÇÃO DO RECICLÁVEL

3.1 O lixo – aspectos culturais

Por cultura se entende o contexto criado por uma perspectiva simbólica de entendimento do mundo (GEERTZ, 1989). Cultura pode ser definida como uma teia complexa de significados que se transformaram ao longo das práticas cotidianas, quando das interações entre os indivíduos e também como “uma espécie de organização cognitiva socialmente compartilhada", conforme Spink e Menegon (2000, p. 80).

Os aspectos culturais relativos ao lixo referem-se à teia de significados que este termo pode apresentar. Esses significados têm geralmente conotações negativas. Em algumas situações específicas, de acordo com as práticas cotidianas, o lixo pode adquirir conotações positivas, como quando reaproveitado como adubo, como valor de troca e lucro. Este significado positivo, porém, fica restrito a determinados grupos de pessoas conforme o contexto social, tipo de atividade ou época.

No Dicionário Houaiss (2001) o lixo é definido como “qualquer objeto sem valor ou utilidade; detrito oriundo de trabalhos domésticos, industriais etc. que se joga fora”. De acordo com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) (MAGERA, 2003) e a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), o lixo pode ser classificado pela sua natureza física em seco ou molhado; pela sua composição química, como orgânico ou inorgânico; e conforme apresente riscos, em nocivo ou perigoso. O lixo pode ser também classificado de acordo com a sua origem em lixo doméstico (pós-consumo), comercial, industrial, hospitalar, público, agrícola, nuclear e entulho (COINTREAU, 1986 [1982]; MAGERA, 2003). As definições para o que constitui o lixo são inúmeras, da mesma forma que são inúmeras as suas classificações (READ el aal., 1997).

O lixo doméstico é produto das atividades residenciais (como restos alimentares e ligados à higiene) e sua coleta é de responsabilidade do poder público. O comercial são os restos de escritórios, restaurantes, hotéis, dentre outros que, de acordo com o volume, são coletados por

empresas privadas. O institucional é o produzido em escolas, órgãos governamentais, dentre outros, cujo aspecto se assemelha ao doméstico, porém é mais rico devido à quantidade elevada de papel branco, e a sua coleta é de responsabilidade do poder público ou privado, de acordo com a natureza da Instituição. Os restos de construções, o lixo nuclear, o tóxico, o sanitário, o industrial e o hospitalar, dentre outros que recebem cuidado especial no momento da coleta, podem ser da alçada do poder público ou de empresas privadas, de acordo com a natureza da fonte geradora e com o volume (CALDERONI, 1998; COINTREAU, 1986[1982]).

Embora lixo e resíduo sejam usados como sinônimos, a palavra resíduo está associada ao adjetivo sólido. Segundo Portilho (1997), o uso do termo resíduo sólido costuma ser empregado por técnicos e engenheiros de limpeza urbana, ao contrário da palavra lixo, que seria um termo de conotação popular, mas que não permite identificar de que resto se trata afinal: se líquido, pastoso ou gasoso, conforme sua constituição física. Cointreau (1986[1982]) afirma que o termo resíduo sólido é usado para as coisas que se descartam e envolve tudo aquilo que é jogado na atmosfera. Eigenheer (2003) declara que o termo ‘lixo’ passa a ser referido como resíduo a partir do século XX, de acordo com o material que passa a ser descartado após o advento da sociedade de consumo. Ele pode ser aproveitável ou não, sendo que o conceito de reciclável é atribuído a todo objeto com capacidade de retorno ao ciclo de produção, e o de rejeito refere-se àquilo que não pode ser aproveitado (www.polis.org.br).

Dentre os problemas provocados pelo lixo estaria a poluição, devido à sua disposição em corpos de água, em lixões e em encostas, dentre outros, capazes de provocar incêndios, desmoronamentos, eliminação de gases tóxicos, contaminação da água e solo e a proliferação de pragas e vetores (insetos, ratos etc.).

A preocupação social com o lixo é algo recente. Segundo Rodrigues (1995) a Idade Média não considerava o lixo como algo abjeto e sem utilidade. É com a filosofia de Descartes, e a possibilidade de fragmentar os objetos, com a separação entre homem e natureza, espírito e matéria que vai ser possível pensar a idéia de resíduo por meio de uma lógica dicotômica. Nessa lógica, as coisas que não se enquadram numa classificação são consideradas como sobra (sem classificação) e, portanto, devem ser eliminadas, expulsas. Com a sociedade industrial a visão muda. Os objetos passam a ser definidos pela sua utilidade e sobra como lixo passa ser aquilo que

é inútil (PORTILHO, 1997).

Mas o lixo seria portador também de um simbolismo, devido à característica de decomposição, que justificaria não apenas a repugnância das pessoas, mas também a associação do mesmo com a morte, a doença, o caos e a desordem (EIGENHEER, 2003). Esse sentimento de repugnância é intensificado pelas suas características negativas – ausência de forma, odor desagradável. Segundo Munford Lewis (1998, p. 21), porém,

O homem primitivo, assim como a criancinha, olha com interesse, com respeito até, todas as excreções do corpo [...] Tem ele esses produtos espontâneos na conta de provas de uma espécie de criatividade espontânea, comum tanto ao homem como a seus parceiros animais. Na aldeia, o simples número tornava abundante o excremento, pois chegavam a misturá-lo com a lama para rebocar as paredes feitas de junco trançado das tendas da Mesopotâmia.

Desta forma, a repugnância a certos objetos seria o resultado da cultura, ou como diria Freud (1976), da civilização – mediada pela educação e os hábitos que se adquirem na infância.

O novo tratamento dado aos restos, à medida que passam a ser considerados como reciclável, é fato recente e sugere um olhar diferenciado sobre os resíduos por parte da sociedade. Esta mudança decorre, principalmente, do papel desempenhado por setores imbuídos de um

discurso ambientalista ou econômico em relação aos problemas por ele provocados ou pelas

saídas que ele aponta para a economia dos recursos escassos. Este novo olhar permite que se fale em ressemantização do lixo, que, “grosso modo”, significa, atribuir ao mesmo um caráter de praticidade, como algo que pode vir a ser reutilizado ou que pode retornar ao ciclo produtivo como matéria-prima para outros objetos. Sob esta ótica, o lixo passaria a adquirir um caráter positivo perante a sociedade (geradora desse resíduo) que outrora tendia a ver os materiais por ela descartados como inúteis e quando não abjetos (se misturados a restos orgânicos).

A proposta de tratar o lixo como um discurso é a de apresentar os mecanismos que levariam a uma mudança no enunciado em relação ao mesmo. Uma mudança nos seus apelos de

verdade, melhor dizendo, nos saberes a seu respeito – e que levariam à atribuição de afirmações, conceitos e teorias distintas, conforme as condições históricas permitam que ele seja tratado de

como uma produção discursiva, apontar alguns dos discursos produzidos a respeito deste objeto até o início do presente século.