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O ponto de chegada – arqueologia, genealogia e resistência nas organizações de catadores

6 CASO 2: A GOVERNAMENTALIZAÇÃO DA RECICLAGEM

6.2 Estrutura da organização – divisão de tarefas e rotinas

6.2.1 Apenas cooperados

Cerca de setenta pessoas com idade entre 19 a 64 anos, naturais do Rio de Janeiro ou da região Norte e Nordeste do Brasil, se dividem em tarefas que vão desde a separação até o armazenamento de material reciclável (a maioria plástico, vidro e papel) entre pessoas analfabetas e com o primeiro grau incompleto. A maioria trabalha ali há menos de um ano, sendo

que as mais antigas vieram de aterro ou de uma usina de separação de matéria misturada. Metade não sabe o que significa a palavra reciclagem, assim como muitos se dizem estigmatizados porque não têm escolaridade. Cerca de 95% dos cooperados nunca tiveram anteriormente uma conta no banco. Eles abriram uma após a entrada na cooperativa. Dessas pessoas, 42% não tinham documento de identidade. Para o ingresso na cooperativa, eles foram levados a adquiri-lo.

O ganho dos cooperados é por produtividade e é distribuído de forma eqüitativa, independente das funções desempenhadas. Vales (adiantamento do salário) lhes eram permitidos. Mas, segundo a gestão produtiva, isso gerava um problema, pois, em função disso, o valor recebido no final do mês caía e eles não se conformavam: “Eles não percebem , esquecem o para

trás, o que fazem antes, os adiantamentos, como os vales. E para o transporte, o seguro....”.

Além dos vales, alguns tinham seus salários descontados em função do pagamento do transporte e do seguro, conforme mencionou acima o responsável entre eles pela gestão da produção. Eles pagam em torno de 79 reais para o veículo que transporta as pessoas que moram longe do local de trabalho. Segundo um cooperado: “Antes a cooperativa pagava a condução da gente , agora

não”. Não soube o motivo desse corte, acredita-se que por questões financeiras, já que muitas

outras garantias não lhes foram oferecidas, conforme proposto no contrato assinado pela cooperativa gestora com a Comlurb.

No estudo de caso 1 alguns cooperados também costumavam pedir vales. A diferença é que lá eles costumavam pedir um adiantamento sobre aquilo que viriam a coletar, ao contrário deste estudo de caso 2, em que o pagamento desse vale é garantido mediante o desconto no salário.

Quando os cooperados deste núcleo faltavam, eles tinham seus salários descontados, a não ser que apresentassem um atestado médico. Muitos cooperados entrevistados não concordavam com isso nem tampouco com os salários. Não gostavam do fato de que seus salários fossem divididos coletivamente e reivindicavam o direito de receberem por produção individual. Essa reivindicação partia da crença de que uns trabalhariam mais do que outros. Mas havia também os que defendiam a idéia de que deveriam receber um salário fixo, ao contrário do salário oscilante que muitos não toleravam. Ao defenderem essa idéia, demonstravam uma incompreensão quanto ao fato de se tratar de uma cooperativa. Como uma cooperativa é natural

que os ganhos sejam divididos de acordo com a produção, que no caso era repartida de forma eqüitativa, uma vez que se supõe que todos trabalham com a mesma intensidade, mesmo que em funções diferentes.

Como cooperados todos os membros dessa organização recolhem tributos que seriam descontados nos salários, de forma que de 100% do valor gerado ao mês, 70% ia para os salários deles enquanto 15% para o INSS e os 15% restantes para a compra de material para a manutenção das instalações. Como não se conformam com essa forma de distribuição dos ganhos, acreditam que uma liderança entre eles, mais representativa, numa alusão clara à gestão da produção, poderia se encarregar de sanar essa questão, reivindicando suas demandas junto à cooperativa gestora e à Comlurb.

Essa crença por parte deles denota uma ausência de autonomia e uma dependência de alguém que conheça o processo de venda. Embora essa pessoa exista (vide a administração produtiva), num primeiro momento parece que ela não repassa para eles tais informações. Pelo menos é o que parecia ocorrer nos dias de pagamento. Nesses dias a mesma retórica de sempre se repetia. Eram dias tensos e o momento em que eles aproveitavam para desabafar suas mazelas com o observador. Entre eles, por sua vez, costumavam sugerir, quando se reuniam na hora do almoço, a necessidade de que fossem mais unidos a fim de que pudessem reivindicar maiores esclarecimentos sobre os motivos que levavam a que os salários fossem baixos.

“Tem roubo” [separadora]. “Mas quem rouba?” [observador] “A Q [cooperativa gestora]” [separadora]

“Mas não tem jeito de os cooperados controlarem a produção?” [observador]

“É, mas acontece que eles fazem uma conta aqui e os outros fazem outra lá e dá diferente e

ninguém sabe por quê. [...] A Comlurb diz que não quer nem saber, que isso é coisa deles

[entre a cooperativa gestora e os compradores].” [separadora]

Esse salário baixo levava a que se sentissem roubados. Essa impressão se manifestou em praticamente todas as entrevistas. Isso sugere que o vácuo deixado pelo estigma, que não apareceu em suas retóricas, como foi possível de se perceber no estudo de caso 1, acabou sendo substituído pela sensação de exploração.

compreensão do modo como funcionam os negócios da organização da qual são membros, bem como os salários ruins. Essa rotatividade levava a que muitos não tivessem tempo suficiente para assimilar informações relevantes como a questão da oscilação do mercado, que à medida que interfere no preço do produto, interfere também nos salários.

Na verdade, isso ocorre porque recicláveis como o papel e o plástico têm o seu valor definido de acordo com a bolsa (mercado de commodities). Um exemplo dessa oscilação de preço é o que ocorre com a indústria de papel e papelão, que precisa comprar imensas quantidades no final do ano, devido ao consumo na época do Natal, mas cuja demanda diminui em seguida (portanto sazonal) – justamente no período em que as cooperativas obtêm mais desses materiais. O fato de a demanda das indústrias ser baixa leva a que o preço pago seja menor, de modo que o atravessador compra por um preço reduzido e estoca o papel até vender em período adequado, o que uma cooperativa de catadores não tem condições de fazer por não ter espaço suficiente para estocagem.

Da mesma forma, esse tempo de permanência insuficiente, além de levar um treinamento constante dos recém contratados, resultava em uma separação mal feita, o que gerava, às vezes, um material com baixo valor agregado. Esses dois aspectos seriam suficientes para justificar aquela sensação de exploração.

Os motivos para essa elevada rotatividade vão desde as demissões por indisciplina ou conflitos até a troca dessa forma de remuneração por um outro tipo de trabalho. Tal como no estudo de caso 1, essa tarefa é representada por eles como algo temporário em suas vidas. Logo, a rotatividade parece ser algo inevitável. Mas talvez o seja pela não participação deles nos negócios da organização.

Sobre essa não participação nos negócios, eles não esconderam do observador que tinham certa dificuldade em compreender os cálculos que eram feitos para a determinação dos salários. Assim como não conheciam quem comprava a mercadoria deles e em que quantidade. Daí ter sido possível ouvir depoimentos como este:

Acho que alguém devia ir escondidinho no caminhão no dia que ele sai daqui com a mercadoria para saber para onde ele vai e quanto eles pagam. [...] O dinheiro já é descontado lá, chega aqui eles descontam de novo. (classificadora)

Os depoimentos sugerem que havia certa ausência de transparência nos negócios da organização. Essa ausência de transparência era o que talvez os impedisse de formular uma compreensão real do processo que levava àquele cálculo por parte dos gestores, já que a variação de preços ocorre, não só em função da sazonalidade do mercado de recicláveis mas também devido à qualidade e quantidade produzida por eles.

A impressão que se teve foi de que essa ausência de domínio sobre a complexidade do mercado de recicláveis leva a que a falta de transparência possa ser facilmente compreendida como falta de inteligência, o que nem a administração produtiva nem a executiva (cooperativa gestora) dariam conta de superar. Dos 21 cooperados ouvidos, nenhum conhecia o exato destino do produto de seu trabalho. Vale ressaltar que, numa cooperativa, todos são donos do negócio, cabendo uma igualdade de poder entre as partes. Talvez o fato de não terem entrado com capital para a formação dessa cooperativa justifique essa assimetria. A pergunta, então, seria por que o uso desse conceito (cooperativa) para designar esse modelo de organização e sua estrutura? Essa pergunta nunca foi feita entre eles, que sequer conhecem o significado deste conceito.