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O ponto de partida – as condições de possibilidade do lixo e do catador

3 A PROBLEMATIZAÇÃO DO LIXO E A PRODUÇÃO DO RECICLÁVEL

3.2 O lixo como uma produção discursiva

3.2.3 O lixo como objeto de valor – a questão econômica

Segundo Velloso (2004), a valorização do lixo se dá a partir do momento em que é possível transformá-lo em algo útil (em matéria-prima). Mas esse caráter de utilidade depende de algumas circunstâncias, como a proximidade entre o lixo orgânico e o ambiente onde ele servirá como adubo, por exemplo. Ou a disponibilidade de pessoas para recolherem o lixo (seco) e lhe dar um destino adequado – seja em lojas que comercializam produtos de segunda mão, seja em intermediários de indústrias de reaproveitamento.

Os catadores são tradicionalmente reconhecidos como pessoas que teriam essa disposição, por motivos que serão colocados posteriormente. Por essa razão, o lixo sempre teria sido objeto de valor para eles. O que se modifica é o discurso que coloca o lixo como algo de valor para a sociedade em geral, à medida que práticas discursivas se dão em nossa sociedade. Embora os catadores tenham um capítulo à parte (cap. 4), eles serão mencionados aqui algumas vezes, devido à sua proximidade do comércio de recicláveis oriundos do lixo doméstico e institucional.

O que permite que o lixo se torne algo de valor é o desenvolvimento de tecnologias para o seu retorno ao ciclo de produção. Di Vita (2001) acredita que foram as dificuldades em encontrar uma área adequada para a disposição do lixo que instigaram as pesquisas sobre processos produtivos ligados à reutilização. De acordo com Birkbeck (1979) foi o desenvolvimento dessas tecnologias para o reaproveitamento que permitiram que o lixo passasse a reciclável, ou seja, que tivesse o seu retorno ao ciclo de produção viabilizado, como matéria-prima para outros produtos.

Apesar do reaproveitamento ter surgido como resposta economicamente viável ao problema do lixo acumulado a partir da Revolução Industrial, esta prática já havia sido implantada por empresários no século XVIII em Roma, que lucravam ao garantirem a limpeza das ruas e ao venderem os dejetos humanos e animais como adubo. Segundo Read et al. (1997), as origens primitivas do moderno gerenciamento de resíduos vêm de Roma e dos seus aterros abertos.

Após a Revolução Industrial o mercado para alguns tipos de materiais recicláveis cresce marcado por pequenas indústrias que, com o tempo, se tornaram de larga escala. De acordo com

Birkbeck (1979), o desenvolvimento industrial dos produtos recicláveis se deu após a Segunda Guerra Mundial devido ao aumento de problemas como o de suprimento de matéria bruta para as indústrias em franca expansão. Essa reciclagem, no entanto, era feita apenas a partir do lixo industrial e gerado comercialmente, raramente com o material doméstico e institucional – algo exclusivo do catador. Um exemplo disso é que, enquanto na Colômbia as companhias recolhiam o lixo industrial, os catadores seriam os principais recuperadores de material doméstico (BIRKBECK, 1979).

Essa exclusividade do catador sobre lixo doméstico devia-se até bem pouco tempo à sua natureza, marcada pela grande mistura de material orgânico e inorgânico. Essa mistura requereria uma tecnologia relativamente sofisticada e uma larga soma de capital para separar, o que teria impedido este material de ser submetido ao processo intensivo de recuperação, como acontece com o lixo industrial. Por essa razão, nem as companhias de reciclagem nem a municipalidade se tornaram diretamente envolvidas na sua recuperação, que permaneceu reservada aos catadores.

Logo, a existência de catadores só foi possível porque o material com que trabalham, apesar do valor agregado, era desinteressante para outros setores da sociedade. Com a coleta seletiva e a conscientização e percepção da sociedade sobre o valor embutido nos resíduos, isso muda. Essa conscientização se dá por dois motivos, pelo aspecto ambiental que passa a exigir uma atitude cidadã das pessoas, ao separarem o seu lixo para a coleta seletiva - encaminhada para usinas de separação - e pelo econômico, à medida que é disseminada socialmente uma noção de valor nos recicláveis (as gincanas escolares seria um exemplo embrionário disso). O primeiro objeto alvo dessa percepção foram as latinhas de alumínio. A tabela 3.3 abaixo procura sintetizar os elementos do discurso que permitem propor o lixo como uma questão econômica.

Tabela 3.3 Os elementos do discurso econômico

Objeto Afirmações Conceitos Estratégias

Reciclável Reciclagem (algo competitivo e que diminui custos com aterros e incineração); objeto de valor (lucro); recursos energéticos; de investimento sem retorno a algo sustentável; escassez de recursos naturais; mercado competitivo e promissor.

Objeto capaz de retornar ao ciclo; reciclagem clássica (uso de material secundário para produzir novos produtos em oposição à reutilização ou re-manufatura de produtos secundários); commodity (material que pode ser reutilizado, reciclado, processado);

compostagem;

redução de custos (sistema baseado na recuperação de commodities secundárias de modo eficiente); economia de escala (operação onde os benefícios por produção da unidade excedem o custo unitário).

Desenvolvimento de tecnologias e de políticas de reaproveitamento de recursos (a reciclagem como parte do gerenciamento de resíduos);

mecanismos institucionais para adesão da sociedade ao tratamento dos resíduos (coleta seletiva, por exemplo);

criação de usinas de reaproveitamento; políticas de reaproveitamento.

Não se trata de identificar se foi a questão econômica ou se foi a questão ambiental que surgiu primeiro, alguns termos incluídos entre os pertencentes à questão econômica poderiam integrar também a questão ambiental, tanto que alguns aspectos da tabela 3.2 e 3.3 se confundem. Esta tese sugere uma emergência concomitante desses dois discursos, em que o discurso ambiental seria uma prática social mais a serviço da econômica (noção de valor) do que o seu oposto – o aspecto econômico como algo que tenha propiciado práticas sociais ligadas ao aspecto ambiental. O que se pode dizer é que muitas vezes, por um interesse econômico, se afirme que se está a agir imbuído de uma preocupação ambiental. Daí a dificuldade ou a confusão que se pode estabelecer entre aquilo que tangencia as duas questões.

Para se ter uma idéia dessa dificuldade, a Europa do início do século XX usava incineradores para cuidar da disposição do resíduo doméstico, ao passo que os E.U. A., apesar das tentativas voltadas para o seu tratamento, até a década de 1950 ignoravam as questões de ordens higiênicas e focavam no seu caráter lucrativo. Essa cultura vai desde a alimentação de porcos até as vantagens da combustão (BERTHIER, 2003). Alguns autores afirmam que enquanto no Norte o aumento da reciclagem teria se dado pelos custos em disposição, no Sul a reciclagem se daria por motivos econômicos (BEUKERING e BOUMAN, 2001; COINTREAU,

1986[1982]). De modo que a questão ambiental não é mencionada, mas é por meio dela que a sociedade passa a falar em reciclagem.

Enquanto nos países desenvolvidos os governos teriam dado uma atenção maior ao aumento da reciclagem dos resíduos domésticos, os esforços em resolver os problemas do gerenciamento do resíduo sólido urbano nos países em desenvolvimento durante muito tempo privilegiaram aspectos técnicos, relativos à coleta e disposição final apenas (KASEVA et al., 2002). Nos países em desenvolvimento haveria um desconhecimento sobre a quantidade e o tipo de resíduo sólido coletado, reaproveitado e reciclado, bem como sobre sua seleção e disposição final – geralmente realizada de forma inadequada. Em geral, a organização e planejamento da coleta de lixo pública nos países em desenvolvimento são considerados rudimentares, inclusive no que tange à qualidade do lixo gerado. Buenrostro e Bocco (2003) afirmam que isso se deve a aspectos como a escassez, desorganização, informalidade e insuficiência do planejamento e do gerenciamento de resíduos sólidos, bem como a insuficiência de fundos públicos e privados e, quando não, a presença de um sistema de gerenciamento sanitário público corrupto.

Partindo desta premissa torna-se compreensível que a temática dos catadores seja algo exclusivo destes países, já que falar em recuperação de resíduo nos países industrializados implicaria a idéia de progresso tecnológico para um gerenciamento eficiente, enquanto que, nos países em desenvolvimento, falar desse tema exige a menção às centenas de milhares de pessoas que sobrevivem da sua coleta nas ruas e nos aterros.

Segundo Di Vita (2001), há uma diferença nos custos para produção de produtos secundários entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento, porque a reciclagem aumenta os ganhos e o bem-estar dos países que a levam em consideração. Segundo ele, os países desenvolvidos aumentam a recuperação de resíduos ao vendê-los para os países em desenvolvimento, capazes de produzirem material secundário, a baixo custo, porque possuem um excedente de mão-de-obra disposta a trabalhar na reciclagem.

Apesar de a reciclagem ser apoiada pelos ecologistas e demais atores preocupados com a questão de saúde pública, ambiental e, de acordo com o país, social também, ela se restringe ao reaproveitamento de material com potencial econômico. Vale citar o caso das pilhas que, de acordo com Portilho (1997), até bem pouco tempo atrás não eram objeto de interesse dos

recicladores, devido à ausência de uma tecnologia que permitisse o seu reaproveitamento de modo lucrativo.

Segundo Beukering e Bouman (2001), o setor de reciclagem teria crescido rapidamente pelo mundo. O comércio de reciclagem teria passado de 15% em 1970 para 48% em 1997 em função da demanda do mercado, do custo das commodities primárias e do aumento do preço da energia para a produção de novos produtos. De acordo com esses autores, o comércio internacional teria sido o fator preponderante para estimular a expansão da reciclagem em diversas partes do mundo, apesar das diferenças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento no que tange às motivações para isso. O ônus do tratamento de materiais sem valor econômico, ou que não seja demandado pelo mercado, contudo, recairia sobre o poder público e a sociedade. Para a indústria de reciclagem o produto passível de reutilização se restringiria apenas àqueles economicamente interessantes e tecnologicamente capazes de retornarem ao ciclo de produção (CALDERONI, 1998).

Como objeto de valor o lixo passa a incorporar aspectos como a flutuação de preços de acordo com as condições do mercado (MEDINA, 2001; RODRIGUES, 2005). E passa a demandar políticas de reaproveitamento que facilitem o retorno do produto à cadeia produtiva (reciclagem):

É muito importante também que essa atividade garanta às indústrias que usam material reciclável o suprimento [de material]. Porque hoje a indústria não cresce mais porque não tem a garantia do suprimento do material reciclável. [...] a garantia de que eles vão poder dispor em tempo real do material reciclável para eles produzirem os produtos que fabricam, [...] Então, os empresários, os empreendedores vão ter o estímulo necessário para investir nesse tipo de atividade. (Fonte: http://comlurb.rio.rj.gov.br/entrevista.htm)

Esse depoimento faz referência ao projeto da Central de Separação de Recicláveis (CSR), implantado pela Comlurb na cidade do Rio de Janeiro no início do século XXI e indica uma relação entre a política municipal de reaproveitamento (ou de estimulação) recente e a questão econômica que a envolve. Ele nos sugere que os objetivos das políticas de reaproveitamento do poder público não se restringiam apenas à redução dos custos de transporte para vazão do lixo e à questão da geração de renda para pessoas socialmente excluídas, conforme afirmações transcritas

mais adiante. Elas estariam também em sintonia com a demanda por matéria-prima por parte das indústrias da reciclagem.

Em síntese, sobre o reciclável doméstico pós-consumo, nos países desenvolvidos uma estrutura de retorno desse material ao ciclo de produção teria sido criada sem a participação de catadores. Neles estratégias teriam sido montadas a fim de garantir esse retorno mediante a adesão da sociedade e o estabelecimento de mecanismos de punição aos que não cumprem o estabelecido. Nos países em desenvolvimento, por outro lado, uma grande quantidade de pessoas se dedicaria ao empreendimento de coleta e venda. É a partir disso que é possível conceber a questão do lixo como valor econômico para a sociedade em geral. Com isso se quer dizer que problematizar o lixo tal como se procura nesta tese talvez não fizesse sentido naqueles países, que embora sirvam muitas vezes de parâmetro para a implementação de políticas ligadas à gestão dos resíduos, as semelhanças param por aí. Há sempre que se fazer menção aos catadores neste último caso, ao contrário daqueles, e, no que diz respeito à reciclagem, é preciso pensá-la enquanto prática discursiva que incide de um modo peculiar sobre esses atores, se comparado aos geradores/consumidores. As subjetividades que emergem quando o lixo passa a ser tratado como reciclável (formação discursiva) incide de modo diferente nesses dois atores, conforme procura ilustrar a tabela 3.4 no final deste capítulo. Para se ter uma idéia, com a proposta de administração dos aterros pela iniciativa privada arcar com os negociantes de recicláveis presentes nos aterros é algo que só ocorre nesses países pobres.

Apresentar a questão do lixo, de acordo com o país em que ela é discutida, leva à evocação do termo catador. O catador seria evocado seja porque implantar projetos em gerenciamento de resíduos alude à necessidade de se prestar atenção ao enorme contingente de pessoas que vivem no entorno de aterros; seja porque ele tem sua vida alterada, conforme os

discursos sobre o reciclável passam a se referir não somente ao dejeto industrial, mas também ao

material de que subsistem. Esta tese se volta mais para essa última colocação, pois tendo o gerenciamento de resíduos recicláveis nesses países se desenvolvido tardiamente, isso permitiu que um enorme contingente se estruturasse em torno do seu comércio: industriários, compradores e catadores. Na maioria das vezes informalmente. Esse fato leva a que o Estado nesses países seja levado a estabelecer políticas para catadores, que serão comentadas no capítulo 4 desta tese.

Pelo exposto acima, foram problemas de vazão que inicialmente levaram ao estabelecimento por parte da administração pública de estratégias de reaproveitamento do resíduo doméstico pós-consumo. Essas estratégias, contudo, acabaram por atender também ao escoamento de matéria-prima para as indústrias. Por fim, a confusão comentada anteriormente entre os dados inseridos nas tabelas 3.2 e 3.3, talvez ocorra porque, a tática de reaproveitamento, embora atenda a ambas as questões, marca a entrada do interesse privado em questões (do lixo) antes restritas à gestão pública (municipalidades). De acordo com Stern (1997), na América Latina o lixo durante muito tempo foi de responsabilidade exclusiva dos departamentos municipais, que administrariam os aterros da mesma forma que cuidam de cemitérios e parques.

Após apontar alguns aspectos que permitem apresentar o lixo como um tema que pode ser pensado a partir de unidades discursivas distintas e antes de se propor a sua problematização, uma breve explanação sobre a questão da gestão do lixo no Brasil e na cidade do Rio de Janeiro será realizada. Esta explanação é útil na medida em que ajudará a compreender, no capítulo seguinte, no que teriam consistido as políticas de estimulação ou de reaproveitamento e geração de renda para catadores nesta cidade no início das duas últimas décadas.