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O ponto de partida – as condições de possibilidade do lixo e do catador

4 DAS AFIRMAÇÕES SOBRE O CATADOR ATÉ AS ESTRATÉGIAS E OS SEUS EFEITOS

4.2 O trabalho de catador – origens

4.2.2 O catador – algumas afirmações

Em sua dissertação de mestrado Gonçalves (2006) faz uma breve revisão a respeito de alguns textos acadêmicos que privilegiam o tema catador de material reciclável no Brasil na década de 1990 e início do século XXI. De acordo com sua revisão, os trabalhos da década de 1990 costumam fazer menção às péssimas condições de trabalho, à questão da pobreza, à exclusão social, informalidade e desemprego. Da mesma forma que falam também sobre a necessidade da participação de diversos outros atores no gerenciamento dos resíduos, inclusive da população geradora.

Os trabalhos do presente século, porém, segundo a autora, apesar de ainda mencionarem o tema ligado à pobreza e exclusão dos catadores, dá ênfase à questão dos movimentos para a busca de identidade e cidadania.

Afora esses aspectos, a questão do impacto social sobre o fechamento de aterros (ADAMETES, 1997; BASTOS, 2007, dentre outros) e a da organização dos catadores em cooperativas (GONÇALVES, 2003; GONÇALVES, 2006; MAGERA; 2003; MOTA; 2005; NOGUEIRA, 1996, dentre outros) também teriam ganhado proeminência a partir da década de 1990. Esses trabalhos acadêmicos costumam ir ao encontro do que disseram os gestores públicos municipais entrevistados, bem como do que seriam as opiniões mais comuns a respeito dessa tarefa, conforme o que se ouviu dos catadores. O trabalho dos catadores, além de ser normalmente representado como um sinônimo de sobrevivência diante da escassez de trabalho formal, de marginalidade e de exploração (BERTHIER, 2003; GONÇALVES, 2003; MAGERA, 2003; MEDINA, 2000, 2001), é ainda retratado como tarefa estigmatizada (EIGENHEER, 2003; GONÇALVES, 2006; PORTILHO, 1997, dentre outros).

ligadas a ele receberam tratamento diferenciado por parte da sociedade (TEVERA, 1994). Cemitérios, asilos, manicômios sempre foram condenados à periferia das grandes cidades, e os que neles trabalhavam eram tratados como cidadãos de terceira categoria (EIGENHEER, 2003). O afastamento desses trabalhadores ou dessas tarefas é como se fosse um meio de fazer parecer que eles não existissem.

De acordo com Goffman (1980) o estigma refere-se às pessoas que não estão aptas a serem aceitas plenamente pela sociedade por portarem algum traço ou característica peculiar. Traços esses que as diferenciariam das demais de acordo com estereótipos que definem quais os atributos de uma pessoa seriam aceitáveis ou não, sendo que os critérios para essa definição são socialmente construídos. Mas, se são construídos socialmente, são passíveis de mudança. Assim como eles podem ser inaceitáveis em um grupo e aceitáveis em outro. Da mesma forma, podem variar conforme a época. Há, porém, atributos inaceitáveis em praticamente todos os grupos, sendo que essa não aceitação é o que levaria à evocação da normalidade daqueles livres de portar tal atributo. De modo que, quando um indivíduo é estigmatizado, aquele que o estigmatiza, na verdade, está a evocar a sua suposta normalidade.

O denominador comum entre os trabalhos geradores de estigma não são os atributos específicos da tarefa, mas a repugnância visceral das pessoas em relação a esses seus atributos. Segundo Hughes (1962), graças aos trabalhadores do dirty work – termo cunhado por ele para designar tarefas consideradas degradantes – é que outros membros da sociedade podem se considerar como limpos ou superiores. A sociedade não vê o dirty work como algo sem importância ou trivial. Ela o reconhece como um trabalho necessário para a manutenção da ordem, porém considera que a sua presença também ameaça essa ordem. A maneira de lidar com esse constrangimento, então, é mantendo distância do mesmo e daqueles que o executam.

As profissões estigmatizadas geram uma idéia de “contaminação” (ASFORTH & KREINER, 1999). Para Douglas (1976), a sociedade associa limpeza com bondade e sujeira com maldade, de modo que limpeza e sujeira assumem implicações morais. As pessoas que trabalham no manuseio de lixo, que é algo impuro, então, seriam alvo pelos demais membros da sociedade de um idêntico sentimento de repulsa. Como se o trabalho com essa matéria levasse a que os seus trabalhadores fossem pessoas contaminadas por ele, resultando na associação delas com sujeira e

doença (MEDINA, 2000; PORTILHO, 1997). Desta forma, a literatura tende a afirmar que os catadores seriam percebidos como um incômodo, um símbolo de atraso. Por estarem próximos a locais onde o lixo é depositado, e por sobreviverem num ambiente social e fisicamente hostil, seriam confundidos com mendigos ou criminosos.

Segundo Medina (2001), no esforço de maximizar seus ganhos, os catadores não só recuperariam apenas os recicláveis com preços mais elevados, como, em alguns casos, chegariam a roubar das construções e de redes elétricas os objetos vendáveis. Esse segundo fator contribuiria em muito para denegrir a imagem da categoria perante o poder público e a sociedade, reforçando o seu estigma.

Muitas outras tarefas são estigmatizadas, como, por exemplo, aquelas relacionadas ao trabalho ligado ao sexo (prostitutas) ou a cadáveres (coveiros) (ASHFORTH & KREINER, 1999). Com as tarefas associadas ao lixo não seria diferente. Neste último caso, não estariam livres nem mesmo os engenheiros sanitários, segundo Portilho (1997) e Cointreau (1986[1982]).

Fora essa questão do estigma, a informalidade é um outro aspecto muito abordado com relação a essa categoria. Os estudos sobre catadores contêm freqüentemente referências ao setor informal e à independência no trabalho (BERTHIER, 2003; FUREDY, 1984). Cointreau (1985) define como setor informal as atividades econômicas que ocorrem para além dos limites das atividades do setor formal. Esse setor estaria relacionado também ao sistema de gerenciamento de resíduos e incluiria a recuperação de material proveniente de espaços públicos7. Atividades em pequena escala, trabalho intensivo, não regulado e sem os benefícios da seguridade social são algumas das características do setor informal.

A independência colocada acima contribuiria para que mais atributos negativos sejam associados aos catadores, pois, devido a essa liberdade, eles são muitas vezes representados como figuras ociosas, sem motivação e preguiçosas (BERTHIER, 2003; GONÇALVES, 2006). Essa informalidade impediria que se soubesse ao certo sobre o impacto social, ambiental e econômico desse trabalho (MEDINA, 2001; MORENO-SANCHEZ & MALDONADO, 2006).

De acordo com Medina (2001) o fato de pouco se saber sobre tal impacto impediria o conhecimento ao certo do número não só de catadores como de intermediários envolvidos nesse setor. Buenrostro & Bocco (2003) afirmam que essa informalidade impede o Estado de monitorá-

los, a fim de evitar a exploração deles pelo comprador. As conseqüências disso é que a reciclagem de resíduo doméstico pós-consumo nos países em desenvolvimento, por estar nas mãos do setor informal, leva a que as autoridades ignorem a relevância dos catadores para a operação e gerenciamento de resíduos.

Gonçalves (2006), no entanto, afirma que o fato de os catadores não serem uma categoria que se constitui como profissional impede que a sua mensuração seja algo interessante. Assim, o que se tem acesso é sempre a estimativas quanto ao número deles. No Brasil, por exemplo, haveria cerca de 150 mil pelo país, sendo que 20 mil deles na cidade de São Paulo, 10 mil na cidade do Rio de Janeiro (BOLETIM DO CEMPRE, 2000; FREIRE, 2002; GONÇALVES, 2003). Enquanto isso, em cidades da Ásia e da América Latina mais de 2% da população sobreviveria da catação (MEDINA, 2000). Talvez daí o fato de que uma das principais iniciativas quando se pensa em políticas relacionadas a esses atores é a de cadastramento.

Segundo informe de 2004 da Aleris Latasa, mais de 160 mil brasileiros viveriam de reciclar só latinhas, recebendo de dois a quatro salários mínimos por mês, e, cerca de 16 mil ONGs e outras instituições participariam do seu processo de coleta e venda. Calcula-se que exista cerca de 2.100 empresas envolvidas com a reciclagem no país.

Na cidade do Rio de Janeiro há cerca de 430 pequenos e médios produtores de reciclados (cooperativas, pequenos depósitos e sucateiros de papel, papelão, plástico e metais), 12 grandes intermediários que compram reciclados e cerca de 18 indústrias e três usinas. Em contrapartida, haveria cerca de 2.500 pessoas organizadas em cooperativas, sendo que, por tipos, ou áreas de trabalho, os catadores estariam assim distribuídos: cooperativas (46%); aterros (40%); usinas (14%) (BRITO, 2001). Levantamento realizado em dezembro de 2000 mostra que o ganho de produtividade por catador, nessas cooperativas, varia de R$312,00 a R$4.999,00.

Apesar dessa informalidade, não há impedimento para que a literatura também faça menção à capacidade de recuperação de resíduos por esses trabalhadores (BARTONE, 1990). Birkbek (1978), por exemplo, afirmava que este trabalho, do mesmo modo que pode ser definido como desorganizado, possui um modo de organização muito complexo chegando a recuperar e reciclar uma quantidade de material superior à recuperada nos países desenvolvidos. Esse fato, de acordo com Buenrostro & Bocco (2003), seria considerado como suficiente para demonstrar a

necessidade de inclusão desses trabalhadores nos processos decisórios relacionados ao tratamento e ao gerenciamento de resíduos.

Não obstante essas afirmações, a catação receberia comentários negativos pelo fato de as condições do tratamento do resíduo sólido impedir esses profissionais de melhorarem economicamente. Isso porque os catadores estariam próximos de serem vítimas de exploração por outros setores mais articulados da cadeia da reciclagem. Esse fato é comumente descrito em vários textos (BUENROSTRO & BOCCO, 2003; GONCALVES, 2003; KASEVA & GUPTA, 1996; MAGERA, 2003). De acordo com Gonçalves (2003) e Medina (2001), isso ocorre devido à localização deles no elo mais frágil da cadeia da reciclagem, o que levaria a que operassem dentro dos limites de preço estabelecidos pelo comprador.

Quanto à determinação do preço do material vendido pelos catadores, segundo o presidente da cooperativa da Zona Sul da cidade, eles vendem o material onde há compradores que paguem melhor. Ele acredita que é a indústria que manipula o (determina) preço.

A indústria depende do mercado, se a população compra pouca geladeira, por exemplo, ela vai sofrer as oscilações do mercado. [...] No Natal há mais papel, mas em contrapartida, o mercado já sabe disso, aí a indústria em setembro, outubro, novembro já compra todo o material que acha que vai precisar em novembro e dezembro, pois sabe que vai ter muita saída. E a indústria diminui a produção porque a loja diminui os pedidos. Aí o atravessador tem um pedido menor e o valor que ele compra da gente é baixo porque ele não vende em seguida.

Um comprador certa vez declarou que quem ganha mais no mercado é o atravessador, que armazena, pois ele não tem gasto energético nenhum, só com o caminhão. Por atravessador se define aos empresários dedicados a comprar material em quantidades médias ou grandes (em escala), conforme a dimensão do seu negócio. Eles foram também referidos pelos catadores como (donos de) depósito ou atravessadores. O pequeno comprador, por sua vez, é um termo que aqui se usa para se referir àqueles que compram dos catadores, seja em pontos fixos ou móveis (caminhões) – que, como já colocado, recebem também a denominação de sucateiro ou garrafeiro, respectivamente.

assim como dos atores que a dominam, representados pela grande indústria e pelos intermediários. Rodriguez (2003) afirma que a economia moderna depende da mão-de-obra barata dos catadores. Beukering & Bouman (2001) parecem confirmar essa idéia ao declararem que os países em desenvolvimento teriam se especializado na reciclagem. De acordo com Birkbeck (1978), o preço pago ao catador pelo papel que ele vende é um terço do custo da polpa para a indústria. A explicação para isso estaria no fato de que ela passa por diversos intermediários. Daí a diferença entre o preço pago pela indústria de papel e o preço pago ao catador. É comum a formação de oligopsônios informais que levam a um controle do preço pago pelo material. Segundo Birkbeck (1978), embora essa seja uma forma de exploração que muitos catadores admitem existir, a dependência dos compradores acaba por ser incorporada às suas leis/regras de trabalho. O gestor público, no entanto, faz uma colocação interessante:

O lixo pós-consumo tem um custo muito elevado, então, só sobrevivem os que têm o controle. Isso alimenta uma cadeia de intermediários à custa do sacrifício dos catadores. A reciclagem é um mercado promissor. Se você tiver o investimento dos governos, for subsidiado, se fortalecer as cooperativas de catadores elas serão uma atividade auto- sustentável.

Apesar de admitir que a reciclagem é um mercado promissor, ele sabe que não é o catador que se beneficia desse aspecto. Mesmo assim admite a importância dos compradores, sem os quais o comércio de recicláveis não seria possível, logo, não haveria condições para a subsistência desses catadores:

A questão da intermediação vem da época dos fenícios – os maiores comerciantes da antiguidade – que iam de porto em porto comprando e revendendo, sem produzir nada. [...] Se eu tenho grande produção, excelente qualidade, fluxo de fornecimento, mas o meu preço não é competitivo, então eu vou comprar de quem quer vender. [...] Muitos não conseguem agregar valor, então, o intermediário articula uma linha produtora de recicláveis e leva para oito, nove, dez grandes depósitos, que agregam valor do ponto de vista da economia de escala, do fluxo de fornecimento e do preço. [...] Ninguém vende na indústria. Todo mundo passa por uma tremenda cadeia, o que faz com que o preço do produto vá lá para cima e alimente esses intermediários.

A essa tremenda cadeia de pequenos compradores que antecede àqueles (intermediários ou donos de depósito) que repassam o material para a indústria Birkbeck (1979) denomina de armazéns satélites. Os catadores não têm condições de vender o material direto para a indústria e

na maioria das vezes não o têm também condições de vender para esses intermediários de médio e grande porte. Isso leva a que a intermediação realizada por esses compradores (satélites) seja uma etapa fundamental para a existência dos catadores e para a reciclagem. De acordo com Birkbeck (1978), são eles que conseguem material em quantidade suficiente para torná-la lucrável, principalmente no caso dos atravessadores. Para tornar o material lucrável, os catadores precisariam de capital e de penetração no mercado, o que significa competir efetivamente com outros compradores. Competição essa que fica acirrada à medida que o número de compradores aumenta, de modo que, segundo este autor, nunca pode haver mais compradores do que coletores. Assim, a mobilidade de poucos (compradores, sejam pequenos ou de médio e grande porte) estaria condicionada à estagnação de muitos (catadores).

Seria o desejo de romper com a dependência dos compradores pequenos e de fazer os catadores negociarem o produto com os intermediários de médio e grande porte uma das principais bandeiras usadas pelo poder público ao se propor a fornecer apoio a essa população. Mas que apoio, afinal, seria esse?