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O ponto de partida – as condições de possibilidade do lixo e do catador

3 A PROBLEMATIZAÇÃO DO LIXO E A PRODUÇÃO DO RECICLÁVEL

3.2 O lixo como uma produção discursiva

3.2.1 O lixo como questão sanitária

Enquanto o sol dava conta de eliminar aquilo que ameaçava a saúde nos excrementos e restos orgânicos dispostos pelas ruas, o lixo não apresentava perigo para a população. É com o superpovoamento, porém, que ele vira um problema de ordem sanitária (LEWIS, 1998). Portilho (1997) afirma que é a fixação do homem e a necessidade de acumular alimentos que leva à produção de dejetos. Essa autora afirma também que, já em 1297, Londres teria promulgado uma lei sobre os resíduos sólidos.

centros urbanos data de 1779 – época em que o lixo era praticamente orgânico. Somente no século XIX o trabalho de “lixeiro” surge na França, e o resíduo passa a ser considerado algo que demandava orçamento e cuidados próprios. Em cidade como Nova Iorque e Manchester, nessa mesma época, era comum a administração pública ter animais como seus aliados:

Sem o cão e o porco é de se duvidar que pudesse ter sobrevivido às suas infrações sanitárias a comunidade muito densa; na verdade, o porco serviu como um departamento auxiliar de limpeza pública até dentro do século XIX, em cidades supostamente progressistas, como Nova Iorque e Manchester. (LEWIS, 1998 p. 20)

Com a Revolução Industrial o resíduo deixa de ser produzido em pequena quantidade, praticamente pelas residências, e o seu acúmulo começa a gerar problemas nas áreas urbanas. Neste momento instaura-se a “era dos descartáveis”, em que a produção de dejetos é acelerada pela produção de “lixo inorgânico” – que não se degrada (vidro, plástico etc.) (RODRIGUES e GRAVINATTO, 2002).

Aliado a isso, há um aumento acelerado da população e uma mudança nos hábitos de consumo, que dificultam o controle da sua produção, tratamento e disposição. A partir de uma determinada época ele passa a exigir investimento de capital intensivo e soluções mecanizadas, como o uso de incineradores e a construção de aterros sanitários. Desta forma, cada região, procurou dar conta dessa questão de acordo com suas possibilidades.

Entre as principais dificuldades relacionadas ao lixo está a da escassez de espaços para a sua vazão. Entre os anos de 1940 e 1960, os aterros sanitários foram considerados como a principal solução para este problema não só nos E.U.A. como em muitos países da Europa. Os aterros foram, entretanto, a estratégia preferida numa época em que havia disponibilidade de espaço para sua construção. Nessa época, a preocupação com o gerenciamento de resíduos dirigia-se à eficiência em relação à maximização do descarte total e a otimização dos custos operacionais (BARTONE, 1990).

As tecnologias comumente voltadas ao tratamento do resíduo iriam desde o lixão até o aterro controlado e o sanitário. O lixão é o termo utilizado para as áreas de disposição final de resíduos em que o solo não sofre uma preparação prévia, o que favorece a contaminação pelo ‘chorume’ e a proliferação de vetores. O aterro controlado é o termo para definir áreas de

disposição que recebem tratamento diário. O aterro sanitário, por sua vez, é o termo utilizado para áreas previamente preparadas mediante cobertura com argila e mantas de PVC – Poli(cloreto de vinila) –, que impedem a contaminação pelo ‘chorume’ (COINTREAU, 1986[1982]; GONÇALVES, 2003).

Muitos países em desenvolvimento, entretanto, não chegam a adotar essas tecnologias para tratamento dos resíduos, seja pela falta de recursos, já que são exigidos equipamentos caros, seja pelo fato dos resíduos serem uma questão menos relevante para os gestores das cidades (BARTONE, 1990). A maior parte dos municípios brasileiros ainda se vale do descarte do lixo a céu aberto, ficando a disposição em aterros sanitários restrita a apenas 1% deles, sendo que em todo o Brasil já ocorreria políticas de encerramento dos lixões (GONÇALVES, 2003; PORTILHO, 1997).

Cointreau (1986[1982]) diz que a expectativa de vida da população nos países industrializados é maior do que a nos países pobres, principalmente por motivos sanitários. Segundo ela, a metade das crianças dos países pobres morreria antes de atingirem cinco anos de idade, um quarto delas por doenças adquiridas no contato com fezes. Entre a década de 1970 e 1980, o Banco Mundial teria lançado um projeto para resíduos sólidos nesses países, com os seguintes objetivos: melhorar a saúde pública e o bem-estar, reduzir a geração de resíduos e aumentar os recursos para recuperação e reuso e proteção do meio ambiente nessas regiões. Esses objetivos seriam alcançados mediante a disponibilidade de acesso a recursos e serviços, a construção de arranjos institucionais capazes de gerenciar os resíduos, de atender ao planejamento urbano e de suprir as instituições com equipamentos. É entre os anos de 1977 e 1980 que esse projeto teria dado maior atenção ao controle de vetores.

O tema “questão sanitária” como um discurso, pode ser visualizado na tabela 3.1 que expressa os elementos que ajudariam a compor a sua regularidade (unidade).

Tabela 3.1 Os elementos do discurso sanitário

Objeto Afirmações Conceitos Estratégias e teorias

Lixo Ameaça à saúde; abjeto (amorfo, repugnante); morte e doença; perigoso; proliferação de vetores.

Nocivo Expulsão das cidades com outros elementos (humanos e animais); coleta domiciliar mediante o uso de tração (animal e mecânica.); lixão; aterro (controlado/sanitário); investimento de capital intensivo; uso de incineradores; políticas de repressão aos catadores.

Apesar do aspecto sanitário, condições históricas de possibilidade vão permitir que outros discursos sobre o lixo ganhem destaque. Estes novos discursos são subsidiados pelas questões ambientais e pela valorização econômica dos resíduos. Mas a emergência desses outros discursos não significa que a questão sanitária embutida nos resíduos tenha sido suprimida em todas as partes do planeta. Essa questão ainda se apresenta como uma ameaça concreta, variando de acordo com a condição socioeconômica de cada país ou região e com a aptidão e interesse deles em superá-la. A estrutura de coleta do lixo nos países em desenvolvimento varia de país para país.

Enquanto alguns países se valem da coleta porta a porta, outros se utilizam de sistemas de coleta mecanizados. Em certas culturas, todavia, algumas pessoas, geralmente escolhidas pela origem social, são tradicionalmente encarregadas de cuidar dos resíduos. De acordo com Cointreau (1986[1982]) haveria cidades que, até a década de 1980, não teriam um sistema institucional de disposição – como em Tunis, na Tunísia. A coleta e disposição de resíduos sempre ficaram a cargo da administração das cidades juntamente com outras políticas voltadas para o bem-estar físico e social do homem. Doan (1998) constata após visitar as primeiras cidades do Oriente Médio que, mesmo depois de milhares de anos, ainda existem sítios nestas regiões que nunca teriam resolvido suas dificuldades com o lixo.

Até aqui, algumas afirmações e conceitos sobre o lixo puderam ser identificados, ambos associados à sua periculosidade para a saúde. As estratégias pensadas trabalhariam no sentido de amenizar esses riscos, sobretudo considerando o problema da sua vazão. A seguir, será possível constatar que, se inicialmente os riscos eram para a saúde, posteriormente eles se tornaram também ambientais (contaminação do solo).