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O ponto de chegada – arqueologia, genealogia e resistência nas organizações de catadores

5 CASO 1: A AFIRMAÇÃO DE QUE LIXO TEM VALOR

5.5 Práticas discursivas

5.5.1 Biscateiros e geradores – o lixo como questão econômica e ambiental

Foi preciso ouvir, ou melhor, notar a presença dos biscateiros, representados pelos garçons, donas de casa, empregadas domésticas, zeladores (que vão ao núcleo vender produtos recicláveis) para que fosse constatado um fato óbvio, mas que só teve essa obviedade quando a

problematização do lixo passou a conduzir a análise dos casos.

Conforme exposto pelo gestor da Comlurb no capítulo 4, o biscateiro seria a “pessoa que

vai lá vender alguma coisa, mas que [...], é um empregado do prédio que separou e foi vender no intervalo do trabalho”, ou seja, aquela pessoa que já tendo uma renda recorreria à catação como

forma de complementar o salário.

Os biscateiros, então, quando não eram moradores da favela próxima ao núcleo observado, trabalhavam nas adjacências e ali vendiam tudo o que conseguiam juntar, seja do trabalho, seja dos vizinhos e amigos. A partir da consideração desse segmento como um importante ator a freqüentar aquele núcleo, ficou claro a questão da valorização social do resíduo. Por valorização social do resíduo, então, esta tese define o fato de que, não apenas o catador, mas outros segmentos da sociedade passam, a partir de um determinado momento, a se interessar pelo “reciclável pós-consumo” (devido ao dinheiro dele proveniente). Nesse sentido, é um catador que comenta:

Tem muito faxineiro, porteiro que ganha um extra com latinha. [...] Antigamente ninguém ligava pra latinha, agora todo mundo liga. Tá difícil agora. [...] Eles roubam um do outro. Já vi neguinho roubando saco do outro. Às vezes aquelas mocinhas com corpinho bonitinho catando, aí vem o outro por trás e rouba. Se um quilo dá 1,80, com 3 quilos tenho quase 6 reais, dá pra comprar leite e pão pra um dia. Isso é dinheiro!

A latinha (de alumínio) a que ele se refere foi um objeto encontrado para vender somente nesse estudo. Nos dois casos seguintes, não foi possível identificá-la com tanta freqüência. Isso porque a fixação desse núcleo numa região de praticamente prédios residenciais e a não restrição quanto aos vendedores (catadores e não catadores) possibilita o surgimento de biscateiros. Eles seriam pessoas que trabalham em locais determinados e cujas relações sociais permitiriam o acesso a tais objetos. Daí que esse material (reciclável) não é mais descartado pela sociedade como outrora.

geradora passe a incorporar pessoas que não se identificam como catadores de lixo:

Hoje em dia, a pessoa tem uma visão melhor, mas em aspecto financeiro, não de ajudar o meio ambiente. [...] Trabalha-se, ganha-se, como em qualquer outro comércio. [...] Muita coisa que a gente acha se transforma. Essa transformação ajuda o lado econômico de quem trabalha diretamente com isso e o ambiental. [caso 1, biscateiro]

A fala desse biscateiro é bem articulada e se aproxima das afirmações das pessoas do poder público que procuram associar o resíduo à questão do reaproveitamento e de subsistência. Mas, diferentemente dos catadores, os biscateiros são atores que não se referem à “catação como subsistência” ou “renda” ou que se mostram motivados a catar pelas razões ambientais, apenas. Eles se referiam ao lixo como uma “fonte de renda extra” e não como a principal, ou um “complemento salarial”, quando não como um “meio de ajudar outra pessoa necessitada”, da família ou vizinhança:

Pego latinhas para ajudar a minha cunhada a comprar remédios há uns quatro meses. [...] É, mas eu não saio, assim, catando por aí. Eu vou andando e pego quando acho. Às vezes na calçada, ou dou uma olhada nos lixos de lá de onde eu moro [na rua ao lado].

Faço isso há 22 anos, mas tenho um trabalho também, como zelador num edifício. Trabalho lá à noite e aqui de dia. [...] Venho, tomo banho e vou para casa. Almoço, durmo e, oito da noite, estou de volta. O prédio em que eu trabalho fica logo ali. Tem que complementar a renda e o de lá não dá quase nada. Tenho mulher, família.

As duas falas acima partem de um biscateiro e do único cooperado que tem outra fonte de renda além dessa, respectivamente. Ambos tentam se esquivar desta atividade, um procurando mostrar que o dinheiro que obtém daí não é para seu sustento, o outro afirmando, sem o perceber, que a função que desempenha como zelador é um trabalho como se essa outra fonte de renda não fosse, também, uma fonte de renda.

Este tipo de postura é similar ao que retrata a “mídia” quando começa a divulgar as campanhas de coleta (de alumínio geralmente) nas escolas, cuja renda é sempre revertida para uma instituição de caridade ou para o Natal dos trabalhadores subalternos (serventes, porteiros, faxineiros). E para compra de material (computador, ar condicionado, máquina copiadora) para a própria escola (especialmente as escolas públicas).

Para o distanciamento dos biscateiros, uma pessoa próxima ao líder do núcleo, que passa boa parte do tempo no local e que pediu para não ser identificada, comenta:

Se o dinheiro não fosse nada, você não acha que ela deixaria o material para o porteiro? Por que ela não faz isso? Você precisa ver as madames que param aqui. Outro dia veio uma advogada. Tem condomínios que já estão proibindo os porteiros de juntarem. Esse aqui do lado, oh, é um deles.

De acordo com esse comentário, seria arrogância a declaração daquelas pessoas que dizem vender mas que o dinheiro ganho não seria para elas. Ela foi a única a fazer esse comentário porque, por estar o dia todo no local, pode perceber a movimentação das pessoas. Como a maioria dos trabalhadores passa todo o tempo nas ruas, não teria como perceber essa movimentação.

O fenômeno que leva a que haja biscateiros é quase o mesmo que leva a que haja catadores (baixo poder aquisitivo). Ocorre, porém, que é preciso ressaltar um aspecto interessante a respeito do biscateiro, em detrimento dos catadores, que é o fato de que esses se apropriam de um objeto, que antes gerava renda exclusivamente para o catador. Apropriação esta que ocorre mediante oportunidades privilegiadas de acesso ao mesmo, se comparado com as táticas desse último – que muitas vezes vai ao saco de lixo ou dá uma gorjeta para o zelador a fim de poder pegar parte do que iria para a coleta seletiva da Comlurb. Uma moradora da região explica sua tática:

Eu junto do meu uso mesmo e moro de portaria. Aí eu peço os vizinhos para deixarem na porta do elevador que eu pego. [...] Ajuda nas despesas, é um dinheirinho a mais que entra.

Meu irmão junta no prédio onde ele trabalha numa vasilha, depois eu passo lá e pego. [...] Eu não tenho vergonha. Vergonha, para mim, é pegar as coisas dos outros. [...] Às vezes eu falo para o meu marido que eu vou catar na praia e ele reclama. É melhor vender lata do que roubar. [...] É pouco, às vezes um real, dois reais, mas passo no mercado e compro um legume, um leite. Sempre ajuda.

Na Zona Sul geralmente são os zeladores de condomínios que se encarregam de colocar nas ruas os sacos com material separado pelos geradores (termo usado para se referir aos

consumidores que, por sua vez, produzem ou geram resíduo) nos dias de coleta. Eles se interpõem entre os geradores e os caminhões da coleta seletiva. Nessa posição intermediária, muitas vezes barganham com o catador de rua ou vendem para um sucateiro parcela do que deveria ir para a os classificadores separarem. Assim se compreende por que, apesar da coleta seletiva ocorrer em diversos pontos da cidade, ela não tenha ainda ameaçado a subsistência do catador de rua nas proximidades onde estão instaladas.

Segundo o presidente sempre teria sido assim: “conforme o poder de compra do zelador

cai, diminui, ele busca alternativas para se viver”. Segundo ele esse fenômeno não afetaria a

vida do catador porque, conforme diminui o material para o catador na rua, aumenta a demanda de funcionários internos para beneficiar o produto, de modo que este pode ser recrutado para trabalhar no interior cuidando do material que esse zelador passa a vender.

O presidente da cooperativa acha natural esse fenômeno e mostra como isso funciona no núcleo que administra:

Aqui é um exemplo, há oito cooperados, só dois vieram direto trabalhar aqui, os outros quatro vieram da catação. Já tem um catador que trabalha meio expediente aqui dentro e meio catando.

Esse comentário, porém, parte de um gestor que não sofre alterações na sua produção por causa disso. Somente no estudo de caso 3 será possível ouvir depoimentos de catadores que são desfavoráveis à existência desses biscateiros. Sobre o universo desses biscateiros, a seguinte passagem ajuda a ilustrar o significado que a valorização dos resíduos parece representar para eles:

Quarta-feira, 14 de agosto de 2002

Três homens chegam de carro com uma boa quantidade de papel. Ao irem receber o equivalente em dinheiro percebi que não conseguiam conter a emoção, esboçada em seus sorrisos e pelo brilho nos olhos. Parecia que era a primeira vez que eles estavam se dando conta de que, tratado como resto, aquilo que venderam podia também se transformar em dinheiro. Um deles conta que trabalham num prédio próximo e que agora dividiriam os ganhos. “Vamos dividir em quatro: eu, ele, outro [que ficou do lado de fora] e mais outro.” Não contive e perguntei se faziam aquilo com freqüência: “Não, é a primeira vez!”. Mais tarde chega um rapaz de uniforme com latas de alumínio e conta que junta durante a semana no restaurante em que trabalha: “A gente vai juntando e quando dá traz aqui. [...] Um

dinheirinho extra, ia pro lixo, vai pro meu bolso [sorri]”.

Um sorriso difícil de ver nos rostos dos catadores, pessoas cujo semblante indica uma idade muito superior à verdadeira. Talvez em função do trabalho diário – peso excessivo, exposição ao sol e à chuva – e, por que não, do estigma. Sobre esse último aspecto, os biscateiros também procuravam produzir um discurso em que se empenhavam em ‘exorcizar’ a carga negativa que o manuseio do lixo representa, pois apesar de não se identificarem como tais, alguma coisa dessa marca os tangencia:

Eu vi uma moça falando um dia: ‘eu acho que quem cata lata pra vender é mendigagem’. Eu não acho. Quantas latas não tinham jogadas por aí, né? Eu não acho humilhante, acho que é um trabalho digno como outro qualquer e ajuda a gente com o dinheiro.

Tô nem aí. É demais! Mas eu ando, carrego meu saco e eles ficam olhando. Não ligo. [...] Ih falam! Tem gente que prefere passar fome a fazer isso. Olha só, se uma pessoa resolvesse todo dia catar lata mesmo, ela tirara uns 300 reais, 400 reais por mês.

Por fim, voltando aos atores que freqüentam o espaço, além dos catadores e dos biscateiros, há os moradores da área nobre do bairro e os moradores de rua também. Os primeiros, ou entram para vender ou para doar o jornal acumulado da semana, ou para procurar algo de que estão precisando: “É que eu estou de mudança e preciso de umas caixas, mas eles

não têm aqui o tamanho de que eu preciso.” Esse movimento mostrou que muitas pessoas do

bairro interagem com aquele espaço. Apesar das queixas dos jornais sobre o fato de os catadores tomarem as ruas e atrapalharem o trânsito próximo a essa cooperativa. Essas pessoas diziam ao observador que estavam imbuídas do papel social ao contribuírem para a reciclagem.

Os catadores, por seu turno, vendem em pequenas quantidades o que acharam no caminho e costumam afirmar: “Eu não tiro dinheiro daqui não, mas aqui [na cooperativa] eles tiram sim” acreditando que os catadores assíduos e o líder do estabelecimento ganham muito bem.

Interessante que, observando todos que freqüentam o local, é fácil identificar cada um pelo modo como se apresentam. Por exemplo, pela quantidade de material e o modo como se vestem, de catadores versus moradores de rua. Mas, do exterior, ambos são retratados como uma massa amorfa: catadores e moradores de rua são considerados, segundo os primeiros, como a

mesma coisa para a sociedade. Embora a iniciativa do poder público procure mostrar que não, até o momento parece que ela estaria contribuindo mais para fomentar a existência dos biscateiros.