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O ponto de partida – as condições de possibilidade do lixo e do catador

4 DAS AFIRMAÇÕES SOBRE O CATADOR ATÉ AS ESTRATÉGIAS E OS SEUS EFEITOS

4.1 O catador – definições

O termo catador, conforme Sicular (1991), é atribuído aos grupos engajados em várias atividades relacionadas à coleta de produtos no lixo, para consumo direto ou revenda, logo, àquelas pessoas que tratam o lixo como matéria-prima. Este autor, assim como Cointreau (1986[1982]), admitem, no entanto, que, de acordo com o local, muitas vezes é difícil definir a linha que separa um catador de um coletor de lixo ligado ao serviço público. De acordo com eles, em algumas cidades do mundo é difícil também estabelecer uma distinção entre os que ganham pelo serviço de remoção do lixo, aproveitando para aumentar seus ganhos ao vender o que é aproveitável, e aqueles que pagam pelos direitos de terem acesso ao lixo em meio ao qual se encontra aquilo que irão vender. Como exemplo disso estaria o caso do Cairo até o momento (FAHMI, 2005) e foi o caso da cidade de São Francisco do final do século XIX e início do XX (COINTREAU, 1986[1982]).

Na cidade do Rio de Janeiro, é bem definida esta distinção entre os que tratam lixo como lixo (coletor) e os que o tratam como matéria-prima (catador). Atualmente, parece fácil definir a linha que separa as pessoas que pagam para ter acesso ao material aproveitável em meio ao refugo daquelas que revendem o material obtido gratuitamente. Também é fácil estabelecer uma distinção entre as pessoas que subsistem apenas dos resíduos (catadores) daquelas que complementam suas rendas a partir dele (biscateiros). Birkbeck (1979), por sua vez, propõe uma definição distinta para os catadores, classificando-os como pessoas que estão na fronteira entre o emprego e o ócio.

Segundo um dos gestores municipal entrevistado, o catador é definido como uma pessoa que subsiste exclusivamente do lixo:

Você tem o catador de usina e de aterro sanitário, que separa o reciclado misturado da coleta domiciliar; [...] o catador predatório de rua, que se antecipa à frota da Comlurb e rasga os sacos, pega o que interessa e deixa o resto espalhado. O catador de rua, que tem uma disciplina e trabalha de forma mais organizada, é o socialmente mais aceito, porque tem uma referência, tem um crachá, vai nos condomínios, nas universidades, nos centros financeiros pegar material puro - o que o de aterro, o de usina e o predatório não conseguem fazer, os dois primeiros, porque estão no destino final, e o último, porque não tem acesso, pois a presença dele choca culturalmente, agride, porque ele é uma pessoa que mora na rua, que é suja, não tem documento. Isso já está relacionado com a cooperativa.

[...] Uma quarta categoria é o carroceiro, que faz entrega de material de construção; remoção de entulhos em áreas privadas; mudança (de sofá, colchão, geladeira, fogão, cama) e também coleta matéria reciclada. Uma coisa é o catador de rua que não tem emprego nenhum, outra coisa é a pessoa que vai lá vender alguma coisa, mas que não é um catador, é um empregado do prédio que separou e foi vender no intervalo do trabalho. Isso não é catador! É um biscateiro! Então é difícil incorporar todo mundo numa forma de organização.

Note que a classificação ou definição do catador é baseada em normas ou critérios, assim como a proposta de cooperativismo na década de 1990 idealizada pelo gestor que proferiu essas palavras. Ou seja, o termo catador é empregado para classificar aqueles que subsistem única e exclusivamente da tarefa de recolher e vender materiais do lixo. Pode-se notar ainda, diferenças quanto ao seu papel ou função social. Por exemplo, enquanto o gestor público municipal enfatiza o cooperativismo, assistentes sociais, ambientalistas e outros profissionais que apóiam esses trabalhadores tendem a defini-los como agentes ambientais. Ou seja, não usam a organização deles para o trabalho como critério para defini-los, mas sim a função que desempenham e a sua relevância para o meio ambiente.

A recuperação de material por esses atores costuma ocorrer numa geografia e em condições socioeconômicas e políticas distintas e adversas: a partir da coleta dos resíduos nas ruas, antes que eles sejam dispostos nos aterros ou depósitos, ou em containers de comerciantes ou condomínios e residências; mediante a compra de recicláveis dos residentes ou zeladores de condomínios; pela coleta em aterros legais ou ilegais, em canais e rios, que atravessam as áreas urbanas carregando materiais misturados a outros dejetos em sua superfície; em depósitos municipais, mediante a classificação do material coletado pelo serviço público.

Segundo Berthier (2003) e Medina (2007), de acordo com o local, aqueles que têm a cata do lixo como meio de subsistência recebem diferentes denominações: ‘packs and teugs’ em Dakar, ‘wahis’ e ‘zabbaleen’ no Cairo, ‘gallinazos’ na Colômbia, ‘chamberos’ no Equador, ‘buzos’ na Costa Rica, ‘cirujas’ na Argentina, ‘catadores’ no Brasil, ‘scavengers’ ou ‘garbage

pickers’ em países de língua inglesa, ‘pepenadores’ ou ‘resoqueadores’ no México. Para Sicular

(1991), porém, haveria diversas formas de agrupar os catadores, conforme o critério a ser utilizado: local em que operam (catam), tipos de materiais que procuram, tipo de moradia em que residem e, tipo de relação destes com os compradores.

No primeiro critério, baseado no local onde operam, poderiam ser citados aqueles que trabalham no lixão e aqueles que catam nas cidades. Os catadores que operam em lixões, normalmente vivem há muito no entorno onde costumam coletar, em geral apresentam proximidade com os membros da família e se considerariam como integrantes de uma comunidade. Os que catam na cidade, por outro lado, costumam ser migrantes de áreas rurais que vivem em casas temporárias, ou em dormitórios oferecidos pelos compradores, e se caracterizam pela falta de estabilidade e por problemas relacionados com a sua aceitação pela comunidade, sendo muitas vezes vistos como vadios, ao contrário do catadores dos lixões.

Segundo a definição de Li (2002), que realizou estudos na China, haveria uma diferença entre os catadores que coletam materiais descartados encontrados pelas ruas ou aterros e os junk-

buyers, que são pessoas que coletam de porta em porta e pagam para ter acesso ao material

separado e acumulado pelos geradores (lixo doméstico).

O lixo, para os catadores, pode ser representado conforme duas dimensões: valor de troca e lucro. Como valor de troca, gera renda, como lucro, satisfaria as necessidades pessoais - como sapatos, roupas, peças de metal e móveis, dentre outros objetos vendidos em lojas de segunda mão (GONÇALVES, 2006). Parece que as coisas sempre teriam sido dessa forma. O que parece ter se modificado é a proeminência que a temática ligada ao catador passou a adquirir, à medida que práticas discursivas passaram a dar conta da importância do catador no processo de reciclagem. Afora as definições dadas acima, baseadas em critérios próprios a cada um daqueles que se dedicam a falar desse tema e a classificá-los, a origem dos catadores também é algo que ajudaria a defini-los. A seguir é tratado sobre esse aspecto, mediante o que se afirma a respeito deles alguns textos acadêmicos o que eles mesmos falam de si (nas entrevistas).