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O ponto de chegada – arqueologia, genealogia e resistência nas organizações de catadores

5 CASO 1: A AFIRMAÇÃO DE QUE LIXO TEM VALOR

5.4 Afirmações sobre a tarefa – a cooperativa disseminou uma técnica

As afirmações aqui apresentadas são oriundas dos catadores. São elas que ajudaram a compreender o modo como funciona e se estrutura essa cooperativa. Além deles, o afilhado do líder também ajudou a tecer esse quadro.

O afilhado conta que voltou a trabalhar na catação após a interrupção de alguns anos a convite do padrinho imigrante, mas também porque a renda ali era superior ao trabalho anterior em uma “multinacional” – “Apesar de ser [o atual] um trabalho meio assim”, comenta. Esse comentário nitidamente deu a impressão de que trabalhar na multinacional lhe dava um status que não tinha agora. Certa vez uma catadora de outra cooperativa disse algo similar para uma platéia em determinado Encontro de Catadores, quando ao contar que trabalhava também para uma ONG, disse que agora estava no mercado de trabalho, como se sendo apenas catadora nunca o estivesse. Mas o afilhado tenta mais adiante explicar:

O que vale hoje para o mundo? É o dinheiro. Então, você tem que dar valor ali onde você está ganhando. [...] Aqui é um trabalho e não tem como ser uma pessoa devagar, preguiçosa. Aqui a pessoa tem que vir para trabalhar, ter vontade de trabalho, se você for devagar, não ganha. Você ficar esperando como gente, nessas empresas, vai lá, bater ponto e só. Se você não botar o teu suor, o teu trabalho, você não ganha. Se você vier pra cá pra ficar parado. Você vai passar o dia sem ganhar nada.

Entre os catadores há desde pessoas que recusam essa atividade como pessoas que a aceitam sob o argumento de que ela oferece melhores condições de vida. Uma recusa veemente a este trabalho, porém, foi algo raro de se ouvir entre eles. Talvez porque a observação de campo ocorreu num contexto institucional, o que impediu que esse tipo de declaração pudesse aflorar. Talvez se observados no exterior da cooperativa, os depoimentos pudessem ser outros, conforme

o daquela catadora acima, que só pôde ser ouvido quando de sua fala em um encontro de catadores na Baixada Fluminense, pois das vezes em que ela e observador conversaram nunca houvera tal recusa. Desta forma, as declarações podem algumas vezes não representar de fato as

afirmações produzidas por esses atores – uma das limitações desse método de coleta dos dados.

Apesar dessa limitação, algumas declarações dão margem a dúvidas sobre a catação ser considerada por alguns como uma condição provisória. Eles mais de uma vez procuraram mostrar que preferiam catar porque esse era um modo honesto de se ganhar dinheiro sem a necessidade de se ter patrão. Talvez daí que eles preferiam não serem cooperados, porém, para esse fato, justificavam o desinteresse quanto ao pagamento de tributos, conforme ocorria com aqueles que o eram – como o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e o seguro em caso de acidentes.

Mas essa necessidade de não ter patrão ou recolher tributos nada tinha a ver com indisciplina. Muitos eram os catadores que se encaixavam nessa descrição e que trabalhavam assiduamente, todos os dias. Assim como havia também aqueles que iam lá esporadicamente para vender: Aqui [...] tem catador que trabalha todo dia, tem catador que trabalha três dias,

trabalhador que trabalha de dia e vão embora à tarde, outros que só vêm à noite. Essa

inconstância, contudo, em nada afeta a organização, pois ela prescinde da assiduidade deles para se manter, já que se sustenta pelo excesso de catadores que existem nas ruas (assíduos ou não) e pela própria noção de valor que o reciclável adquire socialmente. Essa noção de valor estimula o aparecimento de mais catadores (a instalação de pontos fixos, tal como este núcleo, facilita a venda do material), e estimula que outros atores passem a vender reciclável, conforme será colocado no tópico seguinte.

Cabe salientar que o material reciclável é a única fonte de renda dessas pessoas. Isso é tão óbvio que outro fenômeno poderia ter passado despercebido pelo observador, fenômeno que mais tarde se tornou de extrema importância para a pesquisa: a valorização social do resíduo. É o gestor público da Comlurb quem comenta:

Eu te diria que 70% do lixo reciclado pós-consumo passa por pessoas ligadas aos próprios condomínios, aos clubes, aos escritórios de serviços, que fazem uma pré-seleção e vendem

[ou seja, os próprios geradores]. Mas todas têm uma atividade, um vínculo empregatício, [...] diferentemente dos catadores. Elas não são catadoras, usam aquilo como um

dois ou três empregos. O garçom, o porteiro ou zelador de um condomínio junta [o material

pós-consumo, que inclui papel, latinhas etc.] e vende depois.

Sem se dar conta, o gestor parece admitir que a catação é atividade inerente a pessoa desempregada, como algo que pudesse ser exercido por qualquer um – como trabalho de ninguém (experiente) ou como algo que se desempenha desde que se esteja disposto a isso. Mas até que ponto qualquer um pode desempenhá-lo mesmo?

Mas essa afirmação do gestor parece que só é possível porque ficou fácil vender recicláveis a partir do momento em que são criados pontos fixos como esse para a sua compra. E, conseqüentemente, a partir da disseminação dessa técnica, as pessoas (em geral e não só catadores) passaram a poder ganhar um “dinheirinho extra” (que antes ia para o lixo). Pontos esses que são acessíveis a qualquer um, à medida que é disseminada (popularizada) uma técnica (de ganhar dinheiro). Daí o êxito das políticas de estimulação parece ser do reciclável – do seu comércio – e não do catador.

As afirmações passíveis de serem extraídas deste caso parecem fugir àquelas mais comuns quando o tema é evocado pela literatura, como marginalidade, estigma e exploração que, embora presentes, não fazem parte daquilo que pode ser considerado como as afirmações que os catadores fazem. Obviamente que, ao realizar este estudo, o observador produz uma determinada

afirmação a respeito do catador. A afirmação, no caso, é a de que o lixo tem valor. Vejamos no

tópico seguinte os aspectos que ajudam a propor essa afirmação.