• Nenhum resultado encontrado

O ponto de partida – as condições de possibilidade do lixo e do catador

4 DAS AFIRMAÇÕES SOBRE O CATADOR ATÉ AS ESTRATÉGIAS E OS SEUS EFEITOS

4.2 O trabalho de catador – origens

4.2.1 As verdades sobre o catador

Um gestor público municipal entrevistado, um representante dos catadores junto ao sindicato estadual e o presidente de uma das cooperativas montadas na década de 1990 na cidade do Rio de Janeiro com o apoio do poder público foram indagados sobre quem seriam os catadores. Algumas das colocações feitas por eles podem ser resumidas por esta afirmativa:

Os catadores são pessoas desempregadas, muitos não são do Rio de Janeiro. Tem os que moram na rua, sem documentação e que só vivem daquilo. Alguns até fazem pequenos roubos. Outros são organizados em cooperativas. Então, quem são os catadores? São pessoas desempregadas.

Se esse depoimento for comparado com o do presidente do sindicato, é possível perceber que ambos concordam quanto a uma mesma afirmação, que o “desemprego” explicaria a existência desse trabalhador:

Falta emprego, falta oportunidade; a maioria dos catadores não fez o primário e já é de rua há muito tempo. Antes de ser catador foi morador de rua, ou já eram da época da mãe, da avó, que trazia eles enquanto trabalhavam. Isso vem de geração. Hoje [...] está crescendo muito o perfil de catador, tem muito desempregado que vai catar lixo e nem sabe como cata, ou um amigo traz um colega que está sem fazer nada e que vem num final de semana, mas não volta no outro. Ou volta de vez em quando. Mas o perfil do catador é de pessoas da Baixada [Fluminense]1 que não têm muita oportunidade de emprego e descobriu a catação como renda.

Esse mesmo líder sindical, que foi catador um dia e que por isso soube falar bem sobre a inserção das pessoas nessa atividade afirma mais adiante, em sua entrevista, algo muito interessante e que vale a pena salientar:

num Congresso Nacional. São pessoas das épocas antigas mesmo. Começou por causa disso, pessoas que perdiam o emprego, não tinham como sobreviver, catavam uma latinha, um papelão...

Note que ele comenta sobre a história deles, só que agora contada a partir de outros que não ele(s) próprio(s), e não a partir da sua constatação como colocara anteriormente. Uma coisa é o fato de sua experiência permiti-lo constatar que as pessoas se tornaram catadoras devido à falta de outro trabalho, outra coisa é quando isso é passado para ele por meio de outros atores, de posições sociais distintas da sua, como sendo a sua verdade – a ‘verdade dos catadores’. Verdade essa construída não só pelo cientista social, no caso do gestor público municipal mentor do projeto, ou por um engenheiro sanitário ou outro especialista, por exemplo, mas também pelos agentes sociais e demais profissionais que os apóiam ou pelos congressos de que participam.

Um exemplo disso é o que afirma certa revista organizada pelo movimento dos catadores - a Catadores de Vida (2002) –, que dá conta de que eles, no Brasil, existiriam há mais de 50 anos, passando a ter destaque na sociedade na última década do século XX. As declarações contidas nessa revista, assim como outros documentos, ilustram algumas das afirmações a respeito do catador que dão conta da sua existência a partir de um momento determinado (seu marco existencial) e que se bem observado nota-se que a época coincide com o período em que o lixo passa a ser considerado como uma questão ambiental e econômica.

Outro exemplo foi obtido no II Encontro de Catadores de Materiais Recicláveis do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, ocorrido no dia 1º de outubro de 2005. Neste evento uma palestrante conta a história do catador para uma platéia atenta:

A cidade [do Rio de Janeiro] teria uma falta de talento para lidar com o seu resíduo que comumente era jogado em terrenos baldios. Por influência da Europa o lixo começaria a ser pensado. Só em 1800 quando o rei chega que se começa a pensar nele mais a sério. Antes disso ele era removido por pessoas que catavam garrafas de porta em porta, que não eram organizadas. É no garrafeiro do início do século passado que o catador tem sua origem. Com a Revolução Industrial, a crise de empregos, surge a figura do catador de lixo. É o indivíduo que ficou sem oportunidade de emprego. Com o grande desenvolvimento industrial surge o problema do lixo em excesso devido a uma falta de educação das pessoas. Ao longo do tempo o perfil e sua história vão surgindo, o reconhecimento como categoria profissional, que está em crescimento, cuja organização em cooperativas é fundamental.

Para se ter uma idéia do aparecimento dos catadores, ao se efetuar uma busca no “Periódico Capes” utilizando o termo ‘catador de lixo’ constata-se que entre os anos de 1983 e 2006 foram produzidas 96 teses e dissertações com alguma relação com o tema. No período anterior a esta época, não há registros de trabalhos brasileiros sobre este tema. Na década de 1980 teria sido produzida apenas uma dissertação com este tema, enquanto na de década de 1990 foram desenvolvidas 16 teses e,ou dissertações e na de 2000 um número significativamnete maior, 79. Estes diferentes trabalhos estão inseridos em diferentes áreas, economia, serviço social, psicologia, geografia, antropologia, engenharia (hidráulica, de produção), sociologia, ciências sociais, desenvolvimento, meio ambiente, planejamento de sistemas energéticos, educação, saúde pública, direito, epidemiologia e políticas públicas. Ou seja, aparentemente os acadêmicos começam a desenvolver trabalhos a respeito dos catadores à medida em estes aparecem na cena social.

Em um depoimento dado pelo presidente do sindicato dos catadores da cidade do Rio de Janeiro, durante sua palestra em um outro evento no ano de 2006, ele novamente afirma, só que de modo mais preciso, que o tema catador é algo recente:

A Scarlet [durante as observações do estudo de caso 3] fez um trabalho muito legal, era impossível imaginar a universidade indo na nossa cooperativa 10 anos atrás. O seu trabalho com a gente foi um dos mais sérios, porque as pessoas que costumam ir na cooperativa ignoram o ser humano que tá ali. Ela sentou e conversou com todo mundo, ela quis ouvir a história de cada um, um por um. Outro dia foi um rapaz lá que queria testar o carrinho de puxar lixo que ele tinha construído e nem queria saber quem era a gente. Ele tava preocupado em saber sobre o funcionamento do carrinho dele. É sempre assim.

Esta declaração acima coincide com os dados obtidos no levantamento feito nos “Periódicos Capes” que aponta o surgimento de trabalhos acadêmicos abordando o tema a partir da década de 1980. Pode-se afirmar que, em geral, assistentes, agentes sociais, psicólogos e áreas afins, geralmente ligados a alguma ONG, estão, entre os especialistas mais frequentemente envolvidos com esse tema e que diretamente têm contribuído para a produção da verdade do catador a partir do catador mesmo (do que ele produz como afirmações a seu próprio respeito). Essa produção da verdade do catador a partir de afirmações próprias tem ocorrido por meio dos eventos que esses especialistas promovem onde são dadas oportunidades para que os catadores

falem e levantem questões sobre suas mazelas sociais (ver o item 4.4).

O gestor público municipal mentor do projeto onde foi realizada esta pesquisa também tem a sua ‘versão de catador’ peculiar. Segundo o mesmo, ele utilizava esta ‘versão’ em ocasiões determinadas, quando dava palestras na década de 1990, para mostrar aos catadores como o trabalho de ‘catação’ pode se imbuir de significados importantes, dos quais eles ainda não teriam ainda se dado conta:

Eu dizia em muitas palestras para catadores: ‘vocês, se não são ainda, serão amanhã os operários das minas de carvão do início do século, que tinham um valor extraordinário. Quando se desenvolveu a indústria metalúrgica, os trabalhadores de carvão mineral passaram a ter valor, embora explorados. Então, vocês serão esses trabalhadores de minas do futuro. Hoje vocês não têm valor, mas vão passar a ter, porque vocês recuperam matéria-prima proveniente do lixo.’ Eles ficavam pensando.

O depoimento acima, embora dê um sentido nobre ao trabalho deles, apelando para um significado de forma um tanto delicada, não impede que a seguinte questão seja suscitada: por que os catadores não contam, eles mesmos, a sua própria história? Ou, quando o fazem, se valem de afirmações oriundas de outras pessoas?

A impressão que se tem, lendo as citações acima, é a de que os catadores estão sempre a se valerem da referência a algo dito por alguém ou a algum texto para produzirem afirmações sobre o próprio trabalho e sua origem. Até o momento suas histórias são contadas pelos outros. Há um depoimento interessante dado pelo presidente da cooperativa da Zona Sul (caso1), filho de português que foi catador e que hoje é um comprador.

A princípio era os imigrantes portugueses, né, antes de cooperativa, né. Aí com o desemprego começou a vir os nordestinos e tal e... depois disso passou a ser mesmo um problema social. Aí, todo mundo desempregado, bastante morador de rua e... aproveitam isso pra ganhar o pão do dia a dia.

Interessante que, na história contada sobre os catadores e para os catadores, eles surgem entre os anos 1970 e 1980, na mesma época em que também a literatura (acadêmica) estrangeira sobre o tema começa a despontar.

conforme os depoimentos apresentados tomaram essa afirmação como uma verdade. Mas tal como a afirmação sobre o desemprego, outras verdades são produzidas a respeito deles, conforme será demonstrado no tópico seguinte a partir de algumas dessas literaturas nacionais e estrangeiras sobre o tema.