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O debate iniciado em Julho no Senado, prossegue, no entanto, no correr de Agosto, depois da sua Comissão de Instrução pretender a reprovação de alguns pontos essenciais do diploma saído da Câmara dos Deputados, ou seja da proposta de Lei n° 41 que, definindo o regime do concurso público para o recrutamento dos professores, admite a transferência de professores ordinários entre as universidades, permite o recrutamento de individualidades de reconhecido mérito por proposta do Reitor, e aceita a possibilidade de serem nomeados professores ordinários que tenham professado dois anos, sob proposta do Reitor, desde que com voto favorável da maioria do Conselho da Faculdade de posse de um relatório elaborado pela Secção sobre os seus méritos. A proposta faz entrar em vigor o Decreto n° 5491, que reforma a Filosofia, no ano lectivo seguinte, ao mesmo tempo que revoga o Decreto n° 5770 que desanexava a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra mas, no seu artigo 11°, cria na Universidade do Porto a Faculdade de Letras.

O papel do Reitor torna-se pois crucial nas nomeações de professores. Por isso o parágrafo Io da proposta vinda da Câmara dos Deputados define a

nomeação dos reitores como competência governamental. Não por acaso é este ponto que vai estar na mira da parte mais profunda do debate, com alinhamento sem surpresas: contra este ponto da proposta os senadores da minoria católica arvorando-se em paladinos da autonomia universitária e voltando à defesa da tese da tradição liberal e tolerante da Igreja Católica, da antiga Faculdade de Teologia e, em geral da Universidade; do lado republicano e democrático, os senadores erigindo o direito da República se defender e tornar a Universidade um órgão de educação das ideias modernas e da ciência, negando que as nomeações dos reitores ponha em causa a autonomia que os adversários, mais uma vez, confundiriam com soberania, reiterando a intolerância e a perseguição intelectuais como característica de largos períodos de actuação da Igreja Católica responsável, por isso, pelo obscurantismo na Europa em matéria científica.

O correr do debate revela mais uma vez não só os alinhamentos em confronto, como a profundidade de cada um deles, percebendo-se como as questões em tornos dos quais os argumentos se dirimem nem são meramente de fé nem muito menos com simples significado histórico. Pelos debates, estão em confronto forças poderosas ou que o pretendem ser, e se a dissimulação e a adaptação retórica amiúde mistificam as características de cada um dos campos, isso só serve para compreender a importância que cada dava aos resultados práticos do combate que parecia ser sentido como decisivo para o futuro político.

O relatório da Comissão de Instrução do Senado, votado, de resto, com inúmeras restrições e declarações dos seus dez membros, sendo negativo, entra no debate ideológico, afirmando ser " ilógica" a pretensão de as universidades deverem "dedicar o mais desvelado culto à República" "quanto mais não fosse por gratidão", "porquanto os benefícios que um Estado presta às universidades a si mesmo os presta, visto que as universidades são uma das partes mais nobres da sua consciência" .

Tão-pouco as universidades estariam em choque com o meio social e se, num sentido restrito de política, se mantiveram "em abstenção e expectativa", isso derivou da acrimónia inter-partidária; as universidades tinham vindo a desenvolver a sua acção orientadora do espírito público mas tal acção só poderia ser feita de forma muito lenta e segura.

A acção social directa da Universidade é necessária, mas quanto mais directa for necessária, mais carenciada estará de discrição e ponderação, citando-se a Alemanha cuja Universidade terá ajudado a precipitação na catástrofe da Ia Grande Guerra

Lima Duque , um ex-monárquico que aderiu à República, por via do Partido Evolucionista, depois do malogro da revolução monárquica de 27 de Abril de 1913, abriu as hostilidades ao projecto vindo da Câmara dos Deputados: o móbil de toda a questão universitária estava no Decreto n° 5491, portanto, a situação só poderia sanar-se com a sua revogação; Leonardo Coimbra nunca teria sido capaz de apresentar de forma cabal o motivo da mutilação da Universidade de Coimbra e da transferência da sua Faculdade de Letras para o Porto, repetindo-se à saciedade que sem

301 Diário do Senado, (18 Agosto de 1919), p.l 1.

302 Ibidem.

303 Júlio Ernesto de Lima Duque, nascido em Penacova, 1856-1927. Bacharel em medicina pela Universidade de Coimbra e oficial do exército, foi preso por alinhar na revolução monárquica de 1913. Aderindo em seguida à República, militou nos partidos Evolucionista Liberal e Nacionalista, vindo ainda a ser membro da Acção Republicana, senador, deputado e Ministro do Trabalho.

Faculdade de Letras uma Universidade não o é; portanto apoiava o parecer da Comissão do Senado que ia no sentido revogatório .

Na sua peugada, o padre Dias de Andrade : o cónego da Sé de Coimbra e senador eleito pela minoria católica por Leiria, invectivou as" infundadas inquirições que se fizeram aos professores da Faculdade de Letras de Coimbra", apenas por alguns terem vindo da extinta Faculdade de Teologia e, só por isso, pela condição de padres e de católicos, ter-se-lhes bloqueado o acesso aos altos problemas da ciência, bem como considerar-se que, "pela estrutura íntima dos seus próprios seres", seriam incompatíveis com o movimento pela democracia que se tornava um facto em todo o mundo

Quando o general Anrou conquistou o Egipto, teria mandado queimar, por sugestões ou ordens directas do califa Omar, a biblioteca de Alexandria, criada pelo Ptolomeus. História assim, não haveria semelhante na Igreja Católica. Pelo contrário, quando as hordas dos bárbaros germânicos entraram na Europa, a Igreja fora a principal guardiã das preciosidades documentais. E desde a instrução popular até às universidades medievais, no correr dos tempos, nada na matéria fora feito senão à sombra da Santa Madre.

Nem alguma vez a religião teria prejudicado a ciência, como se atestava pelas opiniões religiosas de 300 sábios, por acaso os mais ilustres nas ciências naturais. Ou como se não bastasse um sábio superior como Pasteur ter morrido com o crucifixo nas mãos!3 7.

Quanto a intervenção política, a Igreja não preconizava formas políticas, entendendo-as a todas como legítimas, pois a sua missão era antes desenvolver os valores morais e cívicos, moralizar os povos, fosse quais fossem as organizações sociais ou políticas. Ouvissem-se as palavras de Leão XIII para que aceitassem a República, a respeitassem e lhe obedecessem "como representante do poder que vem de Deus". Ou as do arcebispo de S.Paulo, ao garantir que a Igreja não teme a democracia, essa "eflorescência dos seus mais sagrados princípios de igualdade, de liberdade e de fraternidade de todos os homens no Cristo e pelo Cristo" princípios que se leriam em cada página do Evangelho

Diário do Senado, (18 Agosto de 1919) p. 18. José Duarte Dias de Andrade (1864-1957). Diário do Senado, (18 Agosto de 1919) p. 20. Ibidem, p. 21.

As considerações históricas, todas elas eivadas de um forte ideologismo na perspectiva, teriam de imediato o contraponto pela palavra de um outro senador, eleito também por Leiria, mas desta feita pelo Partido Democrático, professor e administrador escolar: António Maria da Silva Barreto309.

Todos os sistemas políticos, através dos tempos, têm procurado o monopólio do ensino no sentido de o colocar em conformidade com as instituições. Assim foi do Século IX ao XVI, tal como na antiguidade clássica; os grandes vultos da Grécia clássica são os representantes do espírito da razão e da ciência que não é mais do que o espírito universitário; aliás é esse o objectivo da universidade.

A Igreja (católica, apostólica, romana) tem prestado à civilização um alto serviço, sobretudo na Idade Média, em particular nos quatro primeiros séculos do cristianismo. Mas se no processo da sua constituição se revoltou contra a tirania e o despotismo, mal se institucionalizou passou também a déspota e tirana. Nem houve através dos tempos nada mais tirânico do que ela.

Duvidando, de resto, da realidade histórica da personagem de Cristo a que, entre os clássicos, apenas Flávio José se teria referido e de passagem, o perseguido do judaísmo ter-se-ia tornado tão perseguidor quanto o seu algoz de outrora, provocando o processo de excomunhão recíproca entre as igrejas com base na "unidade da fé", "a mais monstruosa afirmação que jamais se criou", "uma aberração do espírito humano" " semelhante à unidade política" , donde partiu a perseguição aos albigenses, primórdio do que viria a ser o fio da espada da Inquisição, a par dos jesuítas, a principal ferramenta institucional da Igreja Católica Apostólica Romana de que ali, através do Cónego da Sé, tinha sido feita a apologia.

Mas não se fica pela história: que a instrução deva ser reservada às classes dirigentes é quase um dogma católico, orientação expressa no ensino monástico, conventual e abacial tal como pela Inquisição e pela "Ordem de Loiola" ; a estes, o senador professor contrapõe Ferdinand Buisson, o

António Maria da Silva Barreto (1865-1943) foi professor na Escola Normal de Leiria e na Escola Primária Superior do Porto, deputado à Assembleia Constituinte e senador em vários mandatos, sempre eleito por Leiria e pelas listas do Partido Democrático.

310 Diário do Senado, (18 Agosto de 1919), p. 25. 311 Ibidem, p. 26.

académico, pedagogo e pastor protestante francês, politicamente socialista e pacifista, a quem viria a ser atribuído o Prémio Nobel da Paz em 1927, e a tradição iniciada com a influência da Universidade de Paris.

A questão é tanto mais decisiva quanto "um cérebro dum povo não se modifica senão pela educação" .

Por isso os jesuítas fizeram tudo para serem eles a educarem os dirigentes e a burguesia, sem nunca se ocuparem do povo. Além de ser uma via muito mais fácil, controlando os dirigentes estava feito o monopólio da educação. Se alguém fez monopólio foi a Igreja.

E incidindo no ponto mais quente, apoiava a proposta vinda dos deputados de ser o Governo a nomear os reitores, dado os antecedentes de desmandos e de o prestígio do regime não poder estar sujeito " a apreciações feitas na cátedra"313

Embora as palavras finais sejam laterais ao tema em apreço, uma vez que o debate se generalizou a toda a instrução pública, pois também os diplomas convulsionantes de Leonardo para a "primária" foram polemizados, pelo seu significado ideológico, político, histórico e mesmo filosófico, valem a transcrição:

"A República ainda não cuidou da criança, tal como deve ser feito, segundo os princípios democráticos. Se porém um dia isto se fizer eu não receio da sorte da República"314.

A discussão da proposta de lei não prosseguiu sem ser entrecortada mais uma vez pelas sequelas da guerra ainda omnipresente, tanto nas avassaladoras dificuldades orçamentais, como nas feridas políticas e morais não cicatrizadas, com a Universidade Portuguesa, acusada, mais uma vez, de se esconder no alheamento total, quando estavam em causa valores como os da honra e o futuro do país. Passado o confronto entre dois médicos e maçons, ainda por cima iniciados na mesma loja, Celestino de Almeida, senador evolucionista crítico da Universidade, e Henrique de Vilhena a quem competiu tentar desenrolar factos demonstrativos dum propalado esforço de guerra da Universidade portuguesa, foi a vez do substituto de Leonardo, Joaquim José de Oliveira, intervir opondo-se peremptoriamente às revogações propostas pela Comissão do Senado dos principais artigos da proposta de Lei n° 41.

Ibidem, p. 27. Ibidem. Ibidem, p. 28.

Os artigos contestados justificavam-se plenamente, pois respondem a atitudes censuráveis tomadas pela Universidade e precavem-nas.

A missão da Universidade não é só investigação e criação, mas também a de intérprete dos sentimentos colectivos e a de orientadora da juventude académica.

Em Coimbra, as individualidades notabilíssimas encerram-se nas torres de marfim do estudo e do ensino da ciência pura, podendo neste terreno, no entanto, em virtude da autonomia que lhes deu a República, ombrear com o que de melhor se faz na Europa e nos EUA.

Mas ao contrário do que noutros países ocorre, assim não acontece, entre nós, no que diz respeito à interpretação da alma nacional e à orientação das gerações.

E o ministro encosta a espada, tantas vezes apontada a Leonardo Coimbra pela nomeação de Newton de Macedo e Pinheiro dos Santos, referindo os poucos escrúpulos que a Universidade tem mostrado na selecção de professores, bastando "atentar que bastas vezes são escolhidos professores estruturalmente monárquicos, embora competentes, e postos de parte indivíduos essencialmente republicanos e de competência igual ou superior" referindo o que se tinha acabado de passar na faculdade de Direito da Universidade de Coimbra .

Da mesma forma utilizou as manifestações de protesto contra o Decreto que reforma o ensino da filosofia na Universidade, para defender a pertinência do articulado legal, assumindo que à República não é indiferente que as universidades se transformem em centros de actividade monárquica, competindo-lhe garantir que as novéis gerações sejam educadas no amor pela liberdade e no respeito pelas instituições republicanas.

Não se confundirá autonomia com soberania, pois mesmo na Alemanha, que passa pelo máximo da autonomia, há um representante do Governo nomeado, tal como na França os júris mistos correspondem grosso modo ao articulado em discussão, donde ninguém, tão-pouco os professores universitários, se devem melindrar pela passagem da proposta a lei.

Terminada a parte política e pedagógica, se assim se o puder referir, a única que hoje ocuparia um ministro, Joaquim José Oliveira não quis deixar de alvitrar sobre o debate ideológico de fundo, demonstração da importância

que as bases ideológicas em confronto tinham na condução política de cada uma das forças.

Fê-lo discordando frontalmente do Cónego Andrade, por este ter afirmado a modernidade da Igreja em matéria científica reivindicando-lhe a última palavra, bem como da sua capacidade adaptativa a qualquer regime.

Quanto ao primeiro aspecto, o ministro Oliveira verberou o que chamou a "velha metafísica religiosa" que só tem servido para desnortear o espírito dos jovens, citando o geocentrismo e Galileu, tal como o dogma e a Bíblia só têm servido para "desviar a inteligência na indagação da verdade, citando a criação do mundo em seis dias ou a fixidez das espécies"316.

Quanto aos notáveis da ciência citados pelo Cónego que pertenceram ao grémio da Igreja, eles só se distinguiram nas ciências em que a liberdade de pensamento não é condição do progresso, como na álgebra e na física. E os citados da biologia e sociologia, foram meros catalogadores de fauna e flora e isso não era ciência mas curiosidade317.

Arrumadas as taxinomias para a gaveta das curiosidades, entendidas as ciências classificativas como não ciências, ao gosto positivista, Oliveira avança em que o que caracteriza uma ciência são as leis sendo o seu

T I O

"critério" "a previsão para o aproveitamento de utilidades" .

Reconhece à Igreja Católica, entre outros, o mérito de ter trazido para a Renascença quatrocentista, mesmo que inconscientemente, os monumentos greco-romanos, mal-grado a sua mutilação, em particular dos que contradiziam os princípios religiosos ou filosóficos adoptados; aliás, quanto a destruição de bibliotecas "donde pudesse sair um germe de liberdade" " tão intolerantes eram os católicos como os bárbaros"319.

Cita a narração de Diogo Couto sobre as bibliotecas indianas e chinesas destruídas em nome fé católica, tal como as dos judeus e árabes de Espanha, para não falar dos autos-de-fé onde tantas obras de ciência e filosofia alimentaram as flamas ditas purificadoras mas que melhor se poderiam chamar infernais.

Ibidem, p. 11. Ibidem.

Se os últimos epítetos sobre as labaredas não constam do registo do "Diário", nem terão provavelmente chegado a ser proferidos pelo ministro, é certo que Sua Excelência, bacharel em Teologia e em Direito, livre- pensador maçon com o nome simbólico de Renan, os pensou tal e qual senão pior...

Não fosse Gutemberg, desconheceríamos Kepler, G. Bruno, Descartes ou Bacon, os motores do oitocentismo, onde, sob o livre-pensamento, a ciência "progrediu muito mais do que em oito séculos cultivada pelos católicos" . Quanto à adaptação a todos os regimes, propalada pelo Cónego, a propósito da sua Igreja, os católicos portugueses têm movido contra a República "uma guerra implacável, tenebrosa e deslealíssima", bastando atentar na atitude para com a Lei da Separação do Estado das Igrejas, do registo civil obrigatório e do divórcio, ou das manifestações de júbilo dos clérigos face

, . 321

aos ataques monárquicos .

Ao contrário da dita imparcialidade e neutralidade, a Igreja, em política, "só costuma ceder quando se sente vencida" .

Mas que numa hora grave para o país como a que se vive, que o amor pátrio se sobreponha às paixões e aos ódios, se juntem esforços para que se volte ao esplendor e grandeza de outrora.

Com este epílogo republicanamente correcto se encerrou o debate no Senado sobre a "Questão universitária, prosseguindo com o mesmo ministro, a propósito da Instrução Primária.