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Joaquim de Carvalho em defesa da filosofia coimbrã

É, com efeito, o jovem assistente, com 26 anos, recém-formado e recém- doutorado com uma tese sobre "António de Gouveia e o Aristotelismo da Renascença", um dos primeiros a descer a terçar armas em defesa dos visados, ou seja da Secção de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Assumindo-se como visado, embora se reconheça como um simples assistente, insurge-se contra o Decreto prontificando-se a rebater, em particular, o último considerando. Como se o texto governamental se destinasse especialmente a zurzi-lo, baseado no facto do diploma apontar os "alunos laureados" e ele ser um deles, Joaquim de Carvalho toma-se das dores da instituição e assesta baterias contra o seu quase homónimo, Joaquim Coelho de Carvalho, Reitor interino nomeado a seguir à demissão de Mendes dos Remédios, que considera um dos "autores do decreto", e a quem apoda, entre vários mimos ad hominem, de um passado republicano que "se limita a ter sido indigitado Ministro dos Estrangeiros no movimento do 13 de Dezembro" , ou seja no Governo de Tamagnini Barbosa que se seguiu ao atentado do Rossio. Este agiria contra aquela instituição, em particular na acusação de que a filosofia revelada pela Faculdade de Letras era "tomista de forma escolástica", ressabiado por saber que o Conselho da Faculdade "não premiava ...o seu humanismo propondo-o professor de História Moderna e Contemporânea, nem sequer, ao menos, o contratava, recorrendo ao seu saber bíblico - tem umas traduções imperfeitas dos Salmos e do Cântico dos Cânticos, vertido este último dum hebreu que não sabe e odeia - para reger o curso de História das Religiões"

A diatribe, que se pretende simples depoimento, aliás, aparece introduzida com os denominativos subtis de "imbecilidade" e "perfídia" para os autores da expressão "tomista de forma escolástica", um dos quais se pretende que seja Joaquim Coelho de Carvalho, mas que, certo, certo, é ser do Governo e por isso publicado no respectivo "Diário".

Um testemunho arrevesado dos nossos propalados brandos costumes! ...

Carvalho, Joaquim de - A Minha resposta ao último considerando do decreto que desanexou a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. In Obra completa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992. Vol. VII, p.3.

85 Idem, ibidem, p. 4. Idem, ibidem, p. 7.

Em termos de substância argumentativa, o jovem Joaquim de Carvalho narra a sua experiência académica numa espécie de curriculum vitœ, onde demonstra o seu modernismo e abertura à modernidade. No entanto, quando deparou com a opção entre a via "impulsiva", ou a "contemplativa", optou

on

pela segunda, isolando-se no "quarto e trabalhando delirantemente" .

Lembra a meditação assídua sobre Kant, os cursos de Cohen e Natorp que seguiu na Universidade de Marburg, evolução frustrada com a guerra onde emergiu o seu "estreito nacionalismo, chauviniste" responsável por decidir mergulhar nos estudos portugueses. E quando, com Hegel, entendeu "o desenvolvimento da filosofia da história como criação da própria filosofia"89, iniciou o seu estudo dos filósofos portugueses.

Entende que o considerando invectiva o seu consequente trabalho de organização bibliográfica mais que justificado nesse âmbito.

O tom justificativo domina, aliás, todo o texto, como se as suas justificações pessoais precisassem e pudessem ser uma resposta às atoardas que lhe teriam sido dirigidas no diploma governamental.

Reconheceu a pobreza da herança filosófica portuguesa, mas considerou prematuros os juízos negativos de Bruno e Basílio Teles. Aliás o jovem investigador entendia, e muito bem, que, quanto aos portugueses, o importante era que se fizessem estudos sérios pois só deles poderiam decorrer conclusões igualmente sérias.

E foi por este caminho probo e nacional que escreveu as dissertações de doutoramento e concurso sobre António Gouveia e Leão Hebreu.

Defende aliás, tal como escreveu na Dissertação de doutoramento, que o "Génio Nacional, como unidade viva e livre, se deveria reflectir na Filosofia"90. Sendo uma "nacionalidade um produto espiritual" e sendo a

filosofia uma "exigência imperiosa do espírito"91, nada impede, pelo menos

em teoria, que um povo se afirme e reconheça na filosofia.

87 Idem, ibidem, P- 4. 88 Idem, ibidem, P- 5. 89 Idem, ibidem, P- 4. 90 Idem, ibidem, P- 5. 91 Idem, ibidem.

Mas para além da posição doutrinal, o novel assistente da Faculdade de Letras, com base nos factos, tem vindo a formar a convicção, esperando que um dia devenha em certeza científica, de que a História da Filosofia Portuguesa é tão real quanto a História da Filosofia Inglesa ou Alemã.

E assim se justifica face à acusação de "preferências eruditas".

Mas foi a já referida expressão "quase completa orientação tomista de forma escolástica" que Joaquim de Carvalho menos aceitou e mais espoletou o tom indignado da resposta.

Proclamando não ser nem tomista nem escolástico, embora sê-lo não fosse um crime, habilita, conforme um trabalho que apresentou em Granada dois anos antes, o escolástico Francisco Suárez como o último grande Doctor, onde vive e perdura toda a Escola, não sendo por acaso que tenha sido objecto de tanta atenção, tanto por parte de Descartes como de Leibniz, não deixando, no entanto, deixar passar o ensejo de referir, citando Menéndez Y Pelayo, o ouro que o mesmo Leibniz reconhecia na escolástica. Tal como o faz com Leão Hebreu, na tese de concurso apresentada no ano anterior, identificando uma "escolástica semítica" depois de acentuar o seu platonismo florentino. Deplorando que também aí, onde entende que o propalado autor do Decreto se baseou para o famigerado considerando, tenha vislumbrado uma "orientação tomista de forma escolástica".

No entanto, também o antepenúltimo considerando, referindo que " a cidade de Coimbra é um meio essencialmente universitário, vivendo o professorado e corpo docente da Universidade como que insulados no seu trabalho especulativo, literário ou científico" merece o protesto veemente de Joaquim de Carvalho.

Embora o considerando preceda a um outro, o penúltimo, que considera serem as condições sociais da cidade do Porto mais activas que as de Coimbra, convindo por isso que aí haja uma Faculdade de Letras, na medida em que, conforme a abertura e o primeiro considerando, das faculdades de letras é que saem os diplomados para o ensino liceal, devendo ser formados em escolas superiores insertas num meio social em que haja intensas e diversas actividades, já que, só pode formar o carácter dos alunos e ser um bom educador, aquele que disponha dum conhecimento prático da vida. No entanto, para Joaquim de Carvalho, pela sua resposta, só ele está em causa enquanto vítima e o seu "especialmente estimado" Joaquim Coelho de Carvalho enquanto algoz...

Pois, para o assistente coimbrão, o considerando não é mais que a tentativa de instrumentalização partidária, transformando as "universidades em organismos políticos, no correntio e jornalístico sentido da palavra", "uma monstruosidade pedagógica", "um crime nacional e um atentado à razão" . "Sob essa aparência calma de convergência de opiniões esconder-se-á o cancro que corroerá a cultura" . E continua-se pelo caminho que pareceria difícil, o de dramatizar ainda mais: o Decreto governamental equipara-se à bula de 23 de Maio de 1536 que autorizou a instalação da Inquisição entre nós! Sem tirar nem pôr! Pois a purificação é a pior das estruturas mentais e o inimigo mais visceral da República que deve defender-se, mas sem estrangular o espírito. Que a Alemanha Imperial o fizesse seria coerente, mas que um governo da República assalte os fundamentos da democracia, eis um crime e uma ignomínia .

E a contestação termina apensando o texto do Decreto classificado de "linda partitura"95.

No entanto, o valor da veemente contestação de Joaquim de Carvalho acaba por ser, no mínimo, redutora do âmbito do diploma e da própria questão: em primeiro lugar, ao tornar-se o principal visado, não sendo mais que um mero assistente; em segundo, na mesma óptica, ao tornar, por focalização permanente, o adversário académico e Reitor interino Joaquim Coelho de Carvalho, o principal autor ou o seu pérfido mentor.

Pelo texto do protesto, pareceria que o jovem assistente seria não só o paradigma da Secção coimbrã, como o inimigo principal a abater pelo Governo, se tudo não se reduzisse, no essencial, do ponto de vista expresso pelo contestatário, a uma maquinação ciumenta de um colega preterido. Não surgindo, aliás, qualquer referência ao Governo e aparecendo uma única ao Ministro da Instrução (para o apodar de "traidor" em relação ao passado e referir a sua "obra miseravelmente sectária de hoje") numa nota de pé de

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pagina .

E também o ponto de vista expresso por Álvaro Ribeiro quando afirma, depois de discorrer longamente sobre a escolástica em Portugal, que a

Idem, ibidem, p. 10. Idem, ibidem. Idem, ibidem. Idem, ibidem, p. 11. Idem, ibidem, p. 11.

condenação do espírito escolástico de inspiração tomista, referida no Decreto n° 5770, "não era dirigida contra aqueles dois professores republicanos" (Alves dos Santos e Joaquim de Carvalho que eram os professores na Secção de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra) "mas contra professores e alunos de outras secções universitárias .

No entanto, dir-se-ia que o espírito de defesa corporativa, no caso fundido com a defesa localista, foram muito mais fortes, do que quaisquer identidade ideológica ou político-partidária de tipo republicano, termo vaguíssimo até à inocuidade, mesmo porque Alves dos Santos era deputado por uma minoria oposicionista (evolucionista) ao Governo de que Leonardo Coimbra fazia parte.

Viria a ter, aliás, ocasião de enfrentar a reforma e o ministro, a partir das bancadas parlamentares onde detinha assento.