Naquele início de Outono de 1919, enquanto Lúcio, agastado, se prepararia para demandar os terrenos vimaranenses da Fundação, à conquista dos votos necessários para se fazer eleger pelo Partido Democrático, Newton subia os Clérigos e as Carmelitas, mirava com curiosidade a fronte, as montras e o interior monumental da Lello mas, por essa primeira vez, não entrou a enredar-se na tertúlia cuja existência provavelmente desconheceria.
Ou talvez tivesse feito esse percurso, vindo da estação de S. Bento, acompanhado pelo próprio Leonardo Coimbra que, no cais, o esperara com o abraço do seu perfil monumental: depois do almoço, ali mesmo na Rua da Madeira, tomaram café na Praça Nova, a um canto do escuro Camanho,
Macedo, Francisco Newton de - Aspectos do problema psicológico. Lisboa: Livraria Férin, 1919, p.89.
"durante anos refugio dos literatos" , onde Leonardo glosou, esclarecendo Newton que, no tripeiro burgo, sua nova pátria adoptiva, bicas era só nas fontes, e onde apresentou o jovem crânio à tertúlia que, naquele período de arribação à cidade de tantas avis raris, para aquele miradouro, com boa visibilidade sobre S.Bento, se tinha deslocado.
Nesse caso, após subirem de braço dado as Carmelitas, Leonardo, em grandes gestos e palavras incisivas, fazendo agitar-se o laço à lavallière, apresentara-o na Chardron, rebaptizada, nem há meia dúzia de meses, em Lello & Irmão, onde Brandão e Pascoaes, chegados no eléctrico da Foz - Raul, já instalado na Nespereira, prolongara a temporada de visita à mãe - entabulavam um estranho diálogo feito de silêncios e monólogos ensimesmados. Sem se conseguir conter, acabou por congregar a atenção de todos - dir-se-ia que lá ao fundo, ao lado das escadas, era nada mais nada menos Basílio Teles que levantava o olhar - ao debitar um improviso, com formato misto de conferência e declamação, sobre os méritos filosóficos do jovem Newton, deixando no final, em remoque galhofeiro, que o único
"senão" era o de nascituro na Rua do Ouro , mas que não se deveria dar demasiada importância a tais filonomias363'. Este, a princípio intimidado, não
só com as palavras do mestre como pela presença naquele sacrário editorial que chancelava o que de mais cintilante se publicava do pensamento português desde há anos, espreitando com especial apetência a secção de estrangeiros, com fama de actualíssima, para onde crepitava a sua curiosidade cosmopolita e modernista, alisou a gravata, olhou a assistência e agradeceu com elegância circunspecta as palavras exageradas de Leonardo, na "sua voz parda e levemente anasalada"364 estimando a honra que era
entrar no Porto e logo por uma porta grande como a daquele templo monumental, ou talvez oficina, ou laboratório, da beleza e da verdade sempre a construir, em que se encontravam.
Remate que implicou um outro de boas vindas por parte do proprietário Sousa Lello, agradecendo as palavras de Leonardo e de Newton, reiterando não ser preciso artes de devinhação para perceber, face às sapientes palavras pronunciadas, estar-se perante um vulto destacado da cultura nacional, mais um a honrar com a sua chegada a cidade do Porto. Quanto à livraria que pretendia dar continuidade não só à glória da Chardron, como à da More, da
1 Brandão, Raul -Vale de Josafat. Lisboa: Seara Nova. 1933, p. 169.
2 Dionísio, Sant'Anna - Discreto Mestre de Filosofia, O Diabo (7 Outubro 1980). 3 De Theodor Zielinsky.
Cruz Coutinho e da Lemos, estivesse o novel filósofo certo da disposição total para ajudar no que fosse preciso. Ou não fossem esses mesmos, os valores apontados por Newton, a Arte e a Ciência, os símbolos pintados por José Bielman que a casa orgulhosamente ostentava nas próprias vitrinas . Sozinho, acompanhado por Leonardo, com algum novo professor lisboeta que consigo viajara, ou ainda integrando um séquito que entretanto se juntara na Lello, certo é que atravessou a rua e entrou na Faculdade de Ciências, à Praça Gomes Teixeira, subindo a longa escadaria de madeira que serpenteava até ao último andar onde a Faculdade de Letras se instalava provisoriamente .
Com Newton de Macedo, Leonardo Coimbra não trouxe o "Gil Vicente" em peso, mas pouco menos. Dos dezassete professores convidados, logo em
1919, de que temos registo, Luís Cardim (atribuída Filologia Germânica,
Língua e Literatura Inglesa e Curso Prático de Inglês), Damião Peres (História de Portugal e Curso de Propedêutica Histórica), Newton de
Macedo (História da Civilização), Angelo Ribeiro, Canuto Soares (Línguas
e Literatura Latinas e Curso Elementar de Grego), Lúcio Pinheiro dos
Santos, Fidelino Figueiredo, Hernâni Cidade (Filologia Românica,
Filologia Portuguesa, Língua e Literatura Francesas e Literatura Portuguesa) Augusto Nobre (História Antiga), Paul Querette (Curso prático de Francês), Basílio Teles, José Teixeira Rego (Filologia Românica),
António Luís Gomes (Literatura Portuguesa), Aarão de Lacerda, Mendes Correia (Ciências históricas e Geográficas, Geografia Geral), Homem Cristo (História Universal) , já que Basílio Teles declinou o convite, os primeiros sete são "gilvicentistas", com Leonardo, oito, metade!
Pareceria que estavam todos a aguardar Newton, pois logo na Ia sessão do
Conselho Escolar da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em 29 de Outubro, foi nomeado secretário , e na 3a sessão do mesmo Conselho,
em 7 de Novembro, nomeado para os exames de admissão ao curso do
JM Livraria Lello & Irmão, Porto, 2003.
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Conjectura ficcional baseada nos dados obtidos em: Santos, Alfredo Ribeiro dos - Perfil de Leonardo Coimbra; Conversa com Vitorino Magalhães Godinho; Sant'Anna Dionísio - O Filósofo e o tribuno; - Diabo, (7 de Outubro de 1980); - Diário Popular (29 de Junho 1967); Joaquim Domingues, De Ourique ao quinto império; Albano Martins, O Porto de Raul Brandão, Porto: Campo das Letras, 2000. 367 Os nomes dos professores: cf. Dionísio, Sant'Anna, O Filósofo e o tribuno, INCM, p. 115 e os Livros de Actas do Conselho Escolar da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, de 1919 a 1923 e de 1923 a 1931, transcritas in Luís de Pina, Faculdade de Letras, Breve História, p. 28/29; as atribuições das disciplinas: cf. Luís de Pina, Faculdade de Letras, Breve História, Porto, 1968, p. 28/29.
Magistério Primário Superior, em companhia de Damião Peres, Mendes Correia e Canuto Soares; na 4a sessão, a 21 de Novembro, pela primeira vez
com a presença de Leonardo no Conselho, votado que fora para professor provisório, é definida a atribuição das cadeiras, sendo atribuída a Newton a cadeira de História da Civilização ficando para Leonardo a de Psicologia Geral369; afinal, com a ausência de Lúcio, já deputado, Leonardo José e
Francisco Newton eram, na prática, os constituintes únicos do Grupo de Ciências Filosóficas que se haveria de erigir oficialmente em 6a Grupo a
partir de 1925 e de que Lúcio faria parte; na 5a sessão, a 29 de Novembro,
Newton de Macedo é eleito bibliotecário sendo, para o lugar de secretário, eleito Hernâni Cidade; na ausência de Leonardo, é Newton que preside à sessão n° 7, já em 27 de Janeiro de 1920 ; finalmente, a 7 de Junho de 1920, o Director foi autorizado "a alugar a casa do n° 833 da R. Oliveira Monteiro"371, tratando-se na verdade do n° 83 da Rua Oliveira Monteiro,
discrepância que deverá ser atribuída a mais uma das muitas gralhas de que o trabalho de Luís de Pina, infelizmente, foi vítima; e a 25 do mesmo mês autoriza-se a aquisição do mobiliário e a construção do que for preciso
A instalação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto em lugar próprio, não demoraria. Instalava-se na "Quinta Amarela".