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A política segundo Leonardo

Foi neste momento histórico que Leonardo surgiu ministro em uma acção política onde, com interferência interior e exterior, se poderão conjugar diversos factores:

Um primeiro, de carácter político e ideológico, onde avulta a instabilidade do Governo para que foi convidado, o curtíssimo prazo de existência previsível, donde o pouco tempo disponível para fazer o muito que julgava necessário, o que implicava uma acção selectiva, determinada, incisiva e rápida; de notar que à desvantagem do curto período de existência, o carácter provisório e transitório do Governo, a par da suspensão constitucional, trazia a "vantagem", se assim se pode dizer, de deter poderes legislativos, ou ser, como alguns designam, um período de ditadura, legal embora; as reformas a concretizar não poderiam ser vagas, do tipo de reformas globais, nem a longo prazo, antes teriam de ser selectivas e bem definidas; donde, no ensino universitário, entre um rol de reformas nos diversos graus de ensino, incluindo as "escolas normais superiores", a opção pela reforma da filosofia, já que assim incidia no "de maior influência no carácter, de maior irradiação e fecundidade"290, ou seja, no mais susceptível

de provocar uma onda de sustentação e fundamentação dum pensamento republicano ausente dos quadros e de que cuja necessidade de implemento urgente Leonardo tinha consciência.

Idem, ibidem, p. 620. Idem, ibidem, p. 623.

Acresce que, na matéria, do ponto de vista da competência técnica, Leonardo sentia-se inteiramente à vontade para decretar; a prova estava no facto de não ter enfrentado nenhuma objecção científica ou pedagógica digna desse nome, nem no debate na Imprensa, nem nas representações institucionais, nem no debate parlamentar sendo que, praticamente, só Alves dos Santos, que tinha aquiescido, neste prisma, para com o essencial da reforma, o acompanhou. Por isso sublinhou no seu discurso, como derradeiro argumento em favor da bondade da sua reforma, um pretenso argumento, inusual para um espírito como o de Leonardo e que, não por acaso, fez sair em itálico na edição em brochura: "de resto, eu sei que está

bem "

Para Álvaro Ribeiro, o facto de poucos terem sido os deputados disponíveis para encetarem um debate com Leonardo expressando a elevação e a preparação que o tema implicava, resultava do tipo de deputados e senadores que preenchiam as câmaras parlamentares, inabilitados para falarem, argumentarem e raciocinarem, não só por míngua de provas orais, mas sobretudo porque eram apenas obrigados a votar disciplinadamente a vontade do partido em que estavam inscritos, limitando-se, no resto, a escutar os discursos dos oradores mais capazes292.

Anteontem como ontem, ontem como hoje, os focos de pressão sobre os representantes dos cidadãos e a propensão para a pusilanimidade conveniente para a carreira política da maioria eram decisivos. Tal como a navegação à vista, a análise limitada ao imediato, a incapacidade de mexer em questões de fundo ou o desinteresse por assuntos que não se traduzam imediatamente em votos. Este tipo de miopia que, em português popular, ficou superiormente estipulado na figura mesquinha do videirinho, é mais uma doença social de um determinado momento de um povo, do que uma característica intrínseca, por isso permanente, a uma actividade. Não é pois específica da política como parece indicar Ribeiro. Inclui a política mas, infelizmente, a avaliar pelos factos, não é só desse reino.

Por outro lado, é inevitável que haja representantes tecnicamente mais habilitados do que outros, ora por formação, ora por experiência profissional, se quisermos, mesmo por inteligência operativa ou dotes oratórios particularmente bafejados. Mas o representante, enquanto decisor político legislativo e portanto não-executivo, não tem de conhecer as especificidades dos temas, mas sim as expressões dos seus debates, no sentido de diagnosticar as sensibilidades e os interesses em confronto, as

291 Idem, ibidem.

causas dos males nas diversas análises e as consequências das medidas em debate. O resto, a informação específica, é trazida, pelos menos nas modernas câmaras de representantes, ora pelos serviços permanentes ora pelos especialistas que os representantes ouvem. O importante não seria tanto que os intervenientes se mostrassem culturalmente aptos a discutirem o novo currículo disciplinar proposto por Leonardo para a filosofia universitária, pois é natural que os mais especializados, por formação ou por adopção, estivessem habilitados a discorrer com maior profundidade, mas sim que se mostrassem fiéis aos compromissos com os seus eleitorados incluindo as expectativas criadas pelo perfil ideológico exibido nas campanhas de esclarecimento das suas posições.

Segue um segundo factor, que caracterizaríamos como moral, decorrente da concepção leonardina de acção política como"técnica de realização social". Na acção política faz-se o que deve ser feito, independentemente da periculosidade ou dificuldades, mesmo que isso tenha como preço a perda de posições pessoais; é que esta "realização social" não existe para outra coisa. Nos antípodas dos que consideram o objectivo principal da acção política a própria manutenção do poder e por isso erigem o "tacto profissional" de conservação das posições políticas pessoais acima de tudo. No primeiro caso a motivação é social, no segundo é pessoal.

Pôde-se e pode-se apontar a Leonardo Coimbra a falta de tacto para lidar com a situação, consideração rejeitada premonitoriamente pelo próprio Leonardo no discurso parlamentar, ao afirmar que "deve acima de tudo interessar o valor intrínseco do que fiz e menos o muito ou pouco tacto diplomático com que o fiz" .

Objectar-se-á que o "tacto" pode ser colocado ao serviço da eficácia da causa de "realização social" e que pouco ganhará o social se a frontalidade dos seus projectos se aliar com a inabilidade da sua concretização e por isso se frustrarem.

Assim será. No entanto, os aspectos falhados da acção leonardina são mais resultado do arrojo dos projectos e da capacidade adversária de resistir a partir de tradições ancestrais, do que de inabilidade diplomática, ou seja "táctil", de que Leonardo não dá mostras no debate parlamentar. Pelo contrário, pelo correr do debate cujos passos essenciais forem sendo relatados, verifica-se que tanto as suas intervenções cirúrgicas esclarecem pontos essenciais da acção política como colocam a questão nos termos que considera adequados, tal como o seu silêncio é de oiro face a discursos

infindáveis que repetiam o argumentário pró e contra há muito definido. O mesmo quanto ao tratamento individual: as questões pessoais são demarcadas das questões políticas sendo a cortesia uma regra das intervenções leonardinas, sem embargo de dizerem o que deve ser dito e de pôr os nomes às coisas quando elas o solicitavam. Basta lembrar a superioridade com que reage ao desarrazoado em que Alves dos Santos o insulta. Ou o tom do discurso final.

A concepção de política de Leonardo afirma-se na oportunidade de ser governo. Só valerá a pena o cargo político na medida em que sirva para a realização social. Como tal para fazer a reforma. É esse o entendimento do

seu republicanismo e também do seu cristianismo.

Álvaro Ribeiro, ao concluir o seu depoimento para o "Leonardo Coimbra- Testemunhos dos seus contemporâneos", afirma que "na ordem da eticidade, todos os actos políticos de Leonardo Coimbra exprimem a mais elevada intenção do filósofo, sem quebra de coerência, nem mancha de oportunismos, embora numa linha de públicos insucessos e de privados desgostos"294.

No entanto, não se poderá retirar da acção política leonardina qualquer perspectiva quixotesca como uma que procurasse o insucesso, pois a finalidade da acção é a "realização social" e portanto o sucesso público. A sua conferência na Sociedade de Geografia de 25 de Maio de 1919, nas vésperas do debate parlamentar, de que, no entanto, só temos notas de reportagem , e sintomática: o cristianismo como alternativa ao quixotismo, a realização como alternativa a uma mera perseguição de ideal, contemplativa, satisfatória de algumas subjectividades, mas inócuo socialmente.

A prática da realização medeia na historicidade e na sociedade o percurso gizado metafisicamente do ideal para o real.

Leonardo não ladeia os desafios nem escolhe os caminhos fáceis ao assumir os desideratos: é por isso, sobretudo por isso, que arrisca o insucesso muito mais do que os que optam por "não fazer ondas" ou "fazerem-se de mortos".

In Monteiro, A. Casais; Ribeiro, Álvaro; Marinho, José; Dionísio, Sant'anna, org. - Leonardo Coimbra: testemunhos dos seus contemporâneos. Porto: Livraria Tavares Martins, 1950, p. 150.

filosóficas, a transição administrativa da Teologia para as Letras não tinha propulsionado o progresso ideológico que se esperaria do regime republicano quase uma década depois de se proclamar.

Para a reforma da filosofia, para arrancar as faculdades de Letras ao conservadorismo, para introduzir elementos de uma nova dinâmica capazes de concretizarem as mudanças e para dotar o Porto de uma faculdade, era agora ou nunca!

E possível que não estivesse nos planos imediatos de Leonardo a criação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, mas conseguindo juntar o útil ao agradável, ou seja, aparecendo como uma solução para fazer fogo certeiro sobre a reacção coimbrã, não iria enjeitar a oportunidade, até porque uma faculdade no Porto dava garantias, por motivos objectivos e subjectivos, de progressividade e abertura ao cosmopolitismo e à modernidade. Mas também é possível que Leonardo ponderasse seriamente a possibilidade de o fazer e tenha feito muitas contas de cabeça e no papel para ver como conseguiria, com o magro orçamento de uma situação financeira deficitária, instalar e alimentar uma faculdade nova.

No entanto, a desanexação da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra estava perdida já antes da abertura do parlamento, como se pode ver pela própria Imprensa afecta à reforma leonardina, tal era a quantidade de fissuras que Leonardo tinha coleccionado, não por inabilidade, mas porque a Universidade coimbrã se adaptara e reforçara nos 9 anos de República, aumentado o peso e desenvolvendo as suas relações entre as diversas forças republicanas, raramente dispostas a consensos unitários. De resto a mesma concepção que detinha para si, tinha-a a para a Universidade: como podia uma universidade declarar-se "estranha à política" sendo precisamente a política "a técnica das realizações sociais?" . A Universidade não era uma torre de marfim, nem estava numa redoma, tão-pouco se limitava a transmissões de saberes por uma formação repetitiva, mas tinha um lugar destacado enquanto inteligência da sociedade e da nação, lugar sem o qual para pouco ou nada serviria. Como poderia abstrair-se da sociedade? E da nação? Como se poderia abstrair da política? Resta um terceiro factor, de carácter financeiro, já que as dificuldades nessa vertente do Governo de Leonardo, e genericamente do Estado português,

saído da guerra e das sumptuosidades sidonistas, poderão ajudar a explicar a opção pela desanexação, em detrimento de uma salomónica manutenção de Coimbra e criação de uma novel portuense, solução mais fácil e politicamente mais "correcta" que não traria ao ministro as oposições que granjeou297. Embora a motivação da desanexação não fosse apenas

financeira, mas se tratasse de quebrar um centro considerado negativo para o ensino da filosofia e das humanidades em geral. A fácil solução para onde se dirigiu a maior parte da opinião parlamentar, de manter Coimbra como estava, sem embargo de inquéritos de âmbito disciplinar, e criar no Porto uma nova Faculdade de Letras, sendo politicamente correcta e susceptível de agradar a gregos e troianos, tanto no vector territorial como no político- ideológico, custava dinheiro, argumento que nunca chegou a ser aduzido no debate na Câmara dos Deputados, porque a imagem do vil metal é sempre repugnante para quem dele não necessita ou dele não depende, mas foi referido por Leonardo no remate do seu discurso final, ao fazer o balanço da actividade, quando refere o que fez "dentro do pouco dinheiro" que lhe davam . Foi apenas colocado, posteriormente, no Senado, para obstar a criação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e depois, em toda a curta vida da Faculdade, que será atribulada pela falta de verbas. Compete, aliás, por diversas vezes, a Newton de Macedo, como professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a tarefa de, em incursões à sede do poder político, resolver os problemas de financiamento da Faculdade, a mor das vezes conjuntamente com a boa-vontade dos professores e mesmo a disponibilidade comparticipativa de alguns.

Não é por acaso que Leonardo termina o seu discurso reiterando a distância entre o ideal e o real, ou seja entre o pensamento e a obra, onde também Ribeiro vê, e bem, a "disjunção platónica entre o real e o ideal"299. A obra

não é o pensamento da obra, afirma Leonardo! De resto, a imortal liberdade, "a própria vida criadora" haveria de se instalar na Universidade. Mas "talvez por chegar atrasada", viesse a chegar "mais brusca e severamente"300.

O défice público saltara, nas Contas da gerência de 1918-19, para a exorbitância nunca vista de 114 584 contos, (Marques, A.H. Oliveira, coord. - Nova história de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 1991. Vol. XI, p. 246); devendo contar-se, no entanto, com a distorção introduzida pela louca inflação da guerra e com a incidência no aumento da receita pela animação económica de 1918/19, resultante do investimento público no esforço de guerra; acompanhá-los-á a depreciação da divisa nacional em relação à libra e, dada a incerteza do valor do dinheiro, o esvaimento em gasto ou o depósito no estrangeiro (Mattoso, José, dir. - História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa. Vol. 6, p.597.)

298 Idem, ibidem, p. 623.

299 Ribeiro, Álvaro - Memórias de um letrado. Lisboa: Guimarães Editores, 1977, Vol I, p. 20. Coimbra, Leonardo, ob. cit., p. 624.

Cruzando as intervenções na Imprensa com as do Congresso, e excluindo algumas movimentações orientadas por meros interesses de poderes pessoais institucionais, conclui-se que os factores que envolvem a decisão de Leonardo (reforma, desanexação e Faculdade de Letras da Universidade do Porto) articulam-se argumentativamente em torno de três eixos em todo o processo.

Um, que formulava a contradição territorial entre Coimbra e o Porto, com dramatismo tanto maior quanto mais o factor financeiro espartilhava uma solução salomónica, aumentando espaço para o implemento de um mero sectarismo bairrista:

De um lado a reivindicação portuense, acrescida para mais do título de Capital do Norte, tanto no respeitante à formação de professores para o ensino liceal como na criação de um pólo de espiritualização das actividades económicas, rejeitado como era o epíteto de capital do trabalho no sentido duma escravização da região ao sentido mais restrito do conceito; reivindicação particularmente animada pelas hostes republicanas locais na expectativa criada pela chegada de Leonardo Coimbra ao ministério;

De outro a defesa da tradição institucional que tinha feito de Coimbra o que era e, embora não se pudesse reduzir a actividade citadina ao apoio à Universidade, havia a noção de que o seu enfraquecimento significaria uma grave perda no peso nacional; além de que, no coração da Universidade pontificavam efectivamente, de forma mais visível ou encapotada, como acontecia mais amiúde, os vultos que haveriam de ser os lanceiros mentais do esmagamento da República democrática a partir de 1926, que não deixam de, em conjunto com outras personalidades académicas, apostilhar os seus nomes às representações coimbrãs de protesto pela reforma da filosofia e pela nomeação dos novos professores e muito mais, claro, no referente à desanexação das letras coimbrãs.

O que saindo do âmbito da miticidade territorial, faz já parte de um outro eixo, o que formulava a contradição ideológica entre certa reacção académica tendo atrás de si as organizações monárquicas e católicas com um modus faciendi onde era vista a marca jesuítica, e a modernidade republicana de uma segunda geração intelectual, temente pela evolução da instabilidade da situação política e determinada a um renascimento republicano que retomasse as suas virtudes, mas também superante, no plano filosófico, como já referimos em outro lugar, do positivismo

situacionista, lida que era tanto de Nietzsche, como de Guyau, Fouillée, Boutroux, Bergson ou Henri Poincaré;

Finalmente, um terceiro eixo, no seguimento das decisões tomadas, opondo jovens professores liceais formados na mentalidade republicana onde o "Gil

Vicente" deteve um lugar de destaque, lidos (e mesmo viajados) no novo espírito científico europeu (que implicava já uma assunção crítica e superante do positivismo) com alguns trabalhos de tese publicados, à corporação dos professores universitários de Coimbra em defesa dos pergaminhos simbólicos da Academia, da sua integralidade material e das prerrogativas administrativas ora ameaçadas entre as que avultava a da capacidade para controlarem as renovações ou seja os júris dos concursos.