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Do Liceu Central de Gil Vicente

Enquanto que nas ruas, impulsionado pelo movimento anarquista que tinha acabado de criar a União Operária, subia a contestação popular à política social de Afonso Costa e, em S. Bento, o Congresso assumia, definitivamente e por unanimidade, a autorização ao Governo para participar na guerra ao lado da Inglaterra, num recôndito do antigo Paço Patriarcal de S. Vicente, no início do ano lectivo de 1914, juntava-se, em torno de uma cultura comum e de um projecto, um naipe muito especial de professores liceais.

Independentemente da instabilidade política, vinda do anarco-sindicalismo, da reacção monárquica ou germanófila, ou da digladiação partidário- parlamentar, a aposta da República na instrução pública dava os seus frutos, vendo-se Lisboa, como que de um momento para o outro, com um défice de 250 lugares para alunos, na oferta pública do ensino liceal.

O Governo decide criar por isso uma extensão ao Liceu Passos Manuel, assim se constituindo a Secção de S.Vicente, com o corpo docente tomando posse dos lugares de "professores provisórios" instituídos a 4.12.1914, reportados a Novembro, data do início do exercício lectivo .

Como que por efeito magnético, com a abertura das vagas, convergiu para a Secção, um corpo docente na maioria jovem, dinâmico e apostado na actualização científica e inovação pedagógica que deveriam decorrer das profundas alterações políticas dos últimos anos, mas que, em boa verdade, não tinham ocorrido nem a nível universitário nem liceal, controlados que se mantinham os dois níveis por uma certa continuidade conservadorista.

Ao cabo de um ano, com novas ideias, inteligência e muita dedicação, a avaliação foi a de um êxito retumbante, vindo a reconhecer-se, em documento de uns anos depois, "que esta nova Secção servia melhor do que

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muitos outros liceus, um importante sector da capital" .

329 Diário do Governo..24.11.1914., n° 275. 2a Série.

330 Ofício do Reitor de 28 de Fevereiro de 1931. In António Nóvoa e Ana Teresa Santa-Clara, coord. - Liceus de Portugal. Porto: ASA, 2003.

Por isso, por decisão governamental da República, foi ali constituído o novel Liceu Central Gil Vicente. O novo Reitor, que vai ser Gastão Randolfo Neves Correia Mendes, professor do 2o Grupo, até então delegado

do Governo, altamente prestigiado, tal como o Liceu, pelo sucesso pedagógico do empreendimento, mantém delegação do Governo mas agora "para a comissão encarregada de proceder à revisão dos programas para o ensino das disciplinas que constituem o curso de instrução secundária , tal como Luís Alfredo Pires Cardim (3o Grupo) é indicado para " a comissão

para o lançamento das bases para a organização de um novo plano do ensino secundário333. O prestígio pedagógico dos docentes do Gil Vicente subiu ao

ponto de passar a ser encarado como o farol reformador do ensino liceal. Há-de ser Leonardo Coimbra, por volta de 1918, que apresentará à penúltima comissão de programas o "Esboço dum Programa de Filosofia

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para os Liceus" publicado nesse mesmo ano, no Porto, em "A Águia" . Entre os nomes dos docentes gilvicentinos que se viriam a destacar como intelectuais de vulto, como Bernardo Pinto da Silva ou Luís da Câmara Reys335 surge, na Secção de Ciências, o nome de Lúcio Alberto Pinheiro dos

Santos, secretariando a primeira reunião do Conselho Escolar, presidida pelo então delegado do Governo, Gastão Correia Mendes.

Entre os nomes dos directores de classe nomeados pelo Reitor, para o primeiro ano lectivo do novo estabelecimento (1914/15), encontram-se,

331 Ofício de 16 de Junho de 1915. Idem, ibidem.

332 Luís Cardim, nasce em Cascais em 1904 ou em 1879, falece em 1958; Bibliografia: vasta em traduções e prefácios a obras de autores ingleses ou sobre autores ingleses; Iniciação ao estudo do Inglez no ensino secundário, 1911; Auto da natividade, para ser representado por alunas do Liceu Feminino do Porto, Renascença Portuguesa, Porto, 1923; Novos Documentos sobre as lettres Portugaises, 1927; Shakespeare e o drama inglês, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 1932; Aquele homem... diálogos, Separata da Seara Nova, Lisboa 1936; Em volta das lettres portugaises, 1936; Projecção de Camões nas letras inglesas, Inquérito, Lisboa, 1940; Os problemas do Hamlet e as suas dificuldades cénicas, Seara Nova, Lisboa, 1949; Horas de fuga, traduções de poesias, Porto, 1952. 333 Portaria de 17 de Dezembro 1915.

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A Águia. Porto: Renascença Portuguesa. Janeiro - Junho 1918, Vol.XIII-2a Série, p. 115-118.

335 Luís da Câmara Reys (1885- 1961) um dos fundadores da Seara Nova em 1921; viria a integrar, juntamente com José Magalhães Godinho, Teófilo Carvalho dos Santos, Gustavo Soromenho e Manuel Mendes, entre outros, a Comissão Central do MUD. Bibliografia: Paris!, 1907; Contos de Março, 1909; Cartas de Portugal, 1907; As Questões morais e sociais na Literatura, Lisboa, Seara Nova, 1941-43, V Volumes; Oliveira Martins, 1946; além de uma vasta intervenção como prefaciador, organizador e editor.

além do já citado Luís da Câmara Reys, os de Damião António Peres e o também já referido Luís Cardim. E para bibliotecário, o nome indicado será... Leonardo José Coimbra! Iniciava a "carreira" de filósofo, pois vinha de publicar "O Criacionismo: esboço de um sistema filosófico" , tese com que abandonara o concurso para professor na Faculdade de Letras de Lisboa, e "A Morte"338.

Mas Lúcio Pinheiro dos Santos, Damião Peres, Luís Cardim e Leonardo não são os únicos que virão a dar que falar, anos depois, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Entre o corpo docente do novo "Liceu Gil Vicente", em 1916, já constam os nomes de Urbano Canuto Soares Angelo Ribeiro e o de um jovem de vinte anos de nome... Francisco Romano Newton de Macedo341.

No mesmo ano em que no "Gil Vicente" se inscrevem as primeiras alunas, Maria Albertina do Couto e Maria de Magalhães Basto, efeméride a assinalar dado ser uma abertura significativa e contendendo com preconceitos enraizados; não sendo por acaso que, logo a seguir ao 28 de Maio de 1926, se levantam vozes pugnando pela separação de sexos, que o Governo vem a acolher através do Decreto n° 15 032 de 15 de Fevereiro de 1928, que a impõe em todas as localidades em que haja mais do que um

Damião Peres (1889-1976) nasceu em Lisboa, frequentou a Faculdade de Letras em Coimbra tornando-se professor do Ensino Secundário em 1912. Integrando o corpo docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto a partir de 1919, estagia nesse ano no estrangeiro. Entre 1925 e 1927 foi Chefe de Gabinete do Ministro da Educação. Académico, historiador e numismata foi convidado para professor pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 1929 e passou a integrar o seu corpo docente a partir de 1930.

337 Porto: Renascença Portuguesa, 1912. 338 Conferência, Porto, 1913.

9 Urbano Canuto Soares, nascido em 1984; a partir de Março de 1939, Canuto Soares, com Francisco Rebelo Gonçalves e Fidelino de Figueiredo, a convite de Teodoro Ramos por incumbência do governo do Estado de S.Paulo, integrará o corpo docente da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade de S. Paulo que havia sido fundada em 1934, regendo a cadeira de Língua e Literatura Latina e marcando uma geração de colaboradores donde haveriam de surtir os primeiros catedráticos brasileiros na disciplina; retorna à pátria em 1954; Bibliografia: Ensaios filológicos: um manuscrito português do século XVI e o problema guanche, Porto, 1920, Separata da Revista Faculdade de Letras da Universidade do Porto 1-2.

340 Ângelo Ribeiro, (1886-1936), nascido na Terceira; Bibliografia: Verbo antigo, 1919, com prefácio de Leonardo Coimbra; Curso de Iniciação filosófica- significado e valor da filosofia, Livraria Férin, Lisboa, 1919; A Maria Stuart de Schiller, 1925; Lesslng, conferência da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto 1931; História de Portugal, I e III, Lello & Irmão, Porto, 1946, reeditado por "Jornal de Notícias" em 2004.

341 Francisco Romano Newton de Macedo nasce em Lisboa a 06.11.1894 e falece em Lisboa a 17.08.1944.

estabelecimento de ensino, incidindo, pois, no "Gil Vicente", logo a partir da época de 29/30.

E quando Mário Soares nas funções de Presidente da República, em 1991, considerou as "tão destacadas tradições democráticas" deste Liceu, era a esta plêiade de professores, bem como de alunos (entre os quais Vitorino Magalhães Godinho, Manuel Mendes, José Gomes Ferreira) que se referia342.

No plano pedagógico, o Liceu assume, conforme expresso nas reuniões do Conselho Escolar, articular, nos conhecimentos objectivos a dar aos alunos, o binómio teoria-prática, desenvolvendo em bases sólidas o ensino da língua materna com testes escritos semanais, de carácter formativo, em dia fixo, técnica que vai ser prolongada na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, pelo numeroso grupo de professores que para lá se transferirá, já que propiciava o exercício de criatividade pessoal do aluno, definida como o desiderato essencial do ensino; o outro pilar basilar é o das visitas de estudo, em quantidade profusa, do Jardim Zoológico ao Museu de Arte Antiga passando pela Fábrica de Gás e Electricidade de Sintra ou pela Manutenção militar conforme mostram os registos do Conselho Escolar, logo no

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primeiro ano .

Laranjeira tinha-se suicidado (1912), Aquilino já se tinha estreado com o "Jardim das Tormentas" (1913), Augusto Casimiro publicava "À Catalunha" (1914) e Proust iniciava a fixação literária da "duração" bergsoniana com o início da publicação do "A La Recherche du Temps Perdu" (1913- 1927).

Jaime Cortesão fazia o percurso inverso de Leonardo, o seu velho

compagnon de route, e abandonava a clínica, instalando-se no Porto a

leccionar história e literatura no "Rodrigues de Freitas".

Nas ruas, prosseguia a agitação social contra a carestia da vida, no correr deste 1915, que vê desaparecer Sampaio Bruno, amargurado com o rumo da República, apertada nas dificuldades acrescidas pelas despesas com os Corpos Expedicionários que defendiam o Império, longe de conseguir a estabilidade política mínima necessária à prossecução do ideário conclamado.

Ascensão, Alberto - Liceu Gil Vicente. In António Nóvoa e Ana Teresa Santa-Clara, coord. - Liceus de Portugal. Porto: ASA, 2003, p. 463 - 483.

No remanso do Mosteiro de S.Vicente de Fora, o jovem Newton , cuidado e elegantíssimo no trajar da silhueta esguia, estreava-se na carreira de professor, com a presença cândida, a fala cordata e sereníssima e o olhar penetrante como se quisesse à uma conhecer e afagar o íntimo de cada um e de todos. Um gentleman, no dizer do seu aluno Vitorino Magalhães Godinho, que não escondendo a nostalgia do contacto com o professor, também não hesita em afirmar-nos ter sido o melhor professor que alguma vez teve345. Atentíssimo ao sucesso da aprendizagem, Newton de Macedo,

segundo o relato oral que Magalhães Godinho nos propiciou, mudava rapidamente de estratégia didáctica sempre que intuía obstáculos intransponíveis no caminho que seguia, fosse em relação ao conjunto da turma ou a qualquer aluno individualmente, com a facilidade só ao dispor de quem está muito bem preparado e a dedicação de quem acertou na vocação profissional. Sem compêndios, nem "Remédios" nem "Alves dos Santos", as aulas fluíam no prazer de todos: ouvir o professor era um deleite; participar com a criatividade própria nos debates e nos exercícios, era sentir a personalidade intelectual a crescer e afirmar-se, fazendo cada um sentir valer mais do que pareceria e determinar-se a mostrá-lo; sentia ser uma pessoa e tinha o professor a ajudar a descobri-lo e a assumi-lo na plenitude. Com a serenidade necessária ao trabalho pedagógico assegurada, tal não queria dizer que os professores do Liceu Central de Gil Vicente se abstraíssem do que se passava no país. Estavam atentos à evolução da situação política e, nalguns casos, envolvidos. Afinal, o correr da situação seria decisivo para os seus objectivos profissionais, num sector considerado determinante como era o da instrução pública. Lúcio Pinheiro dos Santos, por exemplo, é um dos activistas do movimento de 14 de Maio de 1915 que derruba a ditadura de Pimenta de Castro e leva a República a ser de novo proclamada às janelas da Câmara Municipal de Lisboa346.

Estamos em 1915, Pascoaes publica a "Arte de ser Português", Brandão prefacia e anota o "Cerco do Porto", Almada redige o seu anti-Dantas e Abel Salazar publica a tese "Ensaio de Psicologia Filosófica". Surge, de Leonardo, "O Pensamento Criacionista", versão das lições proferidas na Universidade Popular do Porto.

Francisco Romano Newton de Macedo nasce em Lisboa a 6 de Novembro de 1894.

345 Vitorino Magalhães Godinho foi aluno de Newton de Macedo aquando do retorno deste ao Liceu de Gil Vicente depois da dissolução da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

346 Domingues, Joaquim - Lúcio Pinheiro dos Santos, ensaio biográfico. In Teoremas de Filosofia, Porto, Outono de 2000.

A equipa docente do Liceu Central de Gil Vicente convergente no sentido da inovação e da concretização, na prática pedagógica dos liceus, da modernidade republicana, vai manter-se coesa até 1919, distinguindo-se em cada uma das secções e disciplinas.

Quando, nas funções de Ministro da Instrução, em 2 de Maio de 1919, Leonardo procede à tentativa de reformar o ensino universitário da filosofia, integrando novos professores na Universidade de Coimbra e na de Lisboa por diploma de 5 de Maio, para lhes inculcar uma nova e reformadora dinâmica, sabe onde ir buscá-los; tal como, em Setembro, quando começa a instalar a Faculdade de Letras da Universidade do Porto; não lhe faltava, entre os docentes que convergiam no "Gil Vicente", jovens e eivados de competência e modernidade, por onde escolher, para a liderança de todas as secções de uma futura faculdade de Letras.

Na mira especificamente filosófica de Leonardo Coimbra que, no "liceal", leccionava matemática, embora fosse metodólogo de filosofia da Escola Normal Superior, a atenção particular para a constituição do 6o Grupo

centra-se em dois jovens que conhecera e com quem convivera nos últimos anos:

Um, bracarense, em 1919 com 30 anos, Lúcio Alberto Pinheiro dos Santos, formado pela Escola Politécnica de Lisboa347, tendo estudado matemáticas

especiais na Faculdade de Engenharia de Mons, Bélgica, e frequentado cursos de filosofia na Sorbona , e um curso com Bergson no Colégio de França349, e que ensinava física e matemática, apaixonado por "A Alegria, A

Dor e a Graça" de Leonardo a quem expusera as suas concepções. Lúcio dos Santos considerava Leonardo "o primeiro a compreender, por volta de 1916, a significação filosófica dos primeiros trabalhos de Ritmanálise, que só vinte anos mais tarde haveriam de encontrar acolhida no pensamento de

Lúcio Pinheiro dos Santos, nascido a 19 de Abril de 1889, não era formado em Filosofia, tão-pouco exercera o magistério secundário no seu grupo. No entanto, Leonardo queria-o para o Grupo de Filosofia (o 6o) em Coimbra e depois na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, não para outro qualquer. Atentando no novo plano curricular das disciplinas constituintes do ensino universitário da Filosofia a partir do decreto n° 5491 de 2 de Maio de 1919, não há lugar a estranheza. Não só pelas disciplinas de Matemática, Física, Química e Biologia a leccionar, diferentes no entanto das disciplinas com o mesmo nome leccionadas nas faculdades de Ciências, tal como Leonardo explicitou nos debates parlamentares, em resposta à intervenção de Dias Pereira {Diário da Câmara dos Deputados. Sessão n° 13 em 25 de Junho de 1919, p. 18 ) como ainda pelo facto de Lúcio ter tido o privilégio de cruzar a formação científica com a filosofia e logo em espaços de trabalho como os da Sorbona e Colégio de França, e com nomes como os de Henri Bergson.

348 Domingues, Joaquim, ob.cit.

Bachelard, o filósofo do "novo espírito científico" e junto de alguns dos

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novos trabalhadores da moderna pesquisa filosófica"

O outro, lisboeta da Rua do Ouro, em 1919 com 25 anos, era Francisco Romano Newton de Macedo, formado pela Faculdade de Letras de Lisboa, que leccionava filosofia no Liceu Central de Gil Vicente desde os 21 anos e que apresentara, em Agosto de 1917, "A Crise Moral e a Acção Pedagógica", uma Dissertação na Escola Normal Superior da Universidade de Lisboa, onde Leonardo Coimbra era metodólogo.