• Nenhum resultado encontrado

A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra ao país, Tipografia França Amado, Coimbra,

A reacção coimbrã

66 A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra ao país, Tipografia França Amado, Coimbra,

do que vitimar-se ante uma injustificada sanha persecutória de um Governo que se deveria obrigar ao respeito escrupuloso da liberdade de opinar e, em particular, de defender os elevados e nobilíssimos interesses institucionais da Universidade de Coimbra.

Apoucando a motivação, mais fácil e logicamente se mostraria quão injustificadas eram as medidas tomadas.

No dia seguinte, a 24 de Maio, o Senado Universitário reitera as posições já tomadas pelo Conselho da Faculdade de Letras, defendendo a impertinência da nomeação dos novos professores e a pertinência pedagógica do protesto, considerando que só há Universidade bem organizada desde que exista uma faculdade de Letras "com a função de representar a alta cultura filológica, literária, histórica e filosófica, que é indispensável a um centro universitário" .

Mas que diria, neste caso, a Universidade do Porto?

Por isso mesmo o Senado, além de afirmar que a Faculdade de Letras coimbrã, como aliás todas as outras Faculdades e Escolas da U.C., estão perfeitamente actualizadas no movimento científico moderno, entende que os considerandos do Decreto n° 5770 justificam conclusões opostas ás tiradas, mormente a conservação da Faculdade de Letras em Coimbra, pois estas faculdades têm razão de ser fundamentalmente em meios universitários, ao contrário das faculdades técnicas pensadas para Coimbra que teriam lugar em meios essencialmente industriais e activos, ou seja no Porto.

A 25 de Maio, 45 professores da Universidade, onde se destacam nomes como os de Oliveira Salazar, Fezas Vital, Bissaya Barreto, Mendes dos Remédios ou Eugénio de Castro, e Alves dos Santos , apresentam uma representação "contra o Reitor", verberando o comportamento administrativo deste, a incapacidade para representar dignamente a universidade e a marginalidade a que o Senado, tal como o Conselho Académico e a Junta Administrativa, teriam sido votados no processo de extinção da Faculdade de Letras.

Mas o que mais indigna o Senado é o Reitor ter aceite ser portador do protesto da Faculdade a Lisboa, nomeadamente da proposta para

67 Ibidem, p.42.

68 Mais tarde, em declaração na Câmara dos Deputados, aquando da sua interpelação ao Ministro da Instrução, em Junho de 1919, Alves dos Santos viria a recusar ter assinado o documento.

preenchimento de duas vagas de professores ordinários por parte dos Doutores Joaquim de Carvalho e Gonçalves Cerejeira, comprometendo-se a ser portador das dissertações desses candidatos como comprovação do seu mérito científico, quando o Reitor teria feito exactamente o contrário. Até porque a referência, no considerando final do Decreto n° 5770, à "orientação tomista de forma escolástica" seria uma fórmula utilizada amiúde pelo Reitor, para invectivar tanto a Faculdade como os alunos laureados, donde não restariam dúvidas sobre a cooperação do Reitor com o Governo na redacção dos considerandos do citado Decreto.

No entanto, não se vê como poderia o Reitor Joaquim Coelho de Carvalho colaborar na nomeação dos novos professores para a Universidade de Coimbra. A indicação do Ministro da Instrução, resultava do conhecimento directo de Leonardo Coimbra tanto de Newton de Macedo como de Lúcio Pinheiro dos Santos, conhecimento advindo do convívio no Liceu de Gil Vicente e, pelo menos no caso de Newton de Macedo, da Escola Normal Superior de Lisboa onde Leonardo fora metodólogo.

A 2 de Junho, é a vez da Academia de Ciências, fazer eco da aprovação de uma proposta de Teófilo Braga pedindo ao Governo que restabeleça a Faculdade de Letras em Coimbra.

E a 11 de Junho, uma Comissão encimada por Angelo da Fonseca, professor de Clínica Cirúrgica, apresenta uma representação ao Congresso da República em que se repetem as preocupações e a argumentação inserta nos outros documentos:

Face às nomeações de novos professores sem audiência prévia das faculdades, nem curriculum vitœ, e portanto sem respeito pela sua autonomia pedagógica, quase no fim do ano lectivo, a Faculdade de Letras da Universidade do Porto representou o Governo nos termos mais correctos. Teria sido, porventura, por uma incorrecta tradução da expressão

"curriculum vitœ" que fora considerado haver ofensa aos professores

nomeados e ao Governo que os nomeou. No entanto a expressão, que teria sido entendida como "folha corrida", tinha um sentido preciso, consagrado na legislação e nunca poderia ter sido entendido como foi. Ora fora em resposta a tal ofensa que o Reitor Mendes dos Remédios, acusado da autoria, teria sido demitido.

No entanto, objectivamente, o que o Governo considera ofensivo é que se insinue a inexistência de curriculum no sentido dos professores nomeados não disporem de habilitações adequadas e a conivência do Governo por o fazer.

Mas o mais importante seria o absurdo do anátema de "orientação tomista de forma escolástica" incidir precisamente sobre "dois espírito avançados,

de arraigadas convicções republicanas" , ou seja Alves dos Santos e Joaquim de Carvalho.

Pior, o Decreto n° 5770 fere de morte a integridade universitária. O que caracteriza verdadeiramente uma universidade, não são as faculdades profissionais como as americanas, mas sim o haver, de uma forma ou de outra, a presença conjunta do ensino das Letras e das Ciências.

Donde a mutilação, amputando a própria reforma de 1911, que criou em Coimbra uma Faculdade de Letras.

Mas a representação vai concentrar no concreto o seu argumentário, não sobre o Governo em geral que pretende não considerar o principal responsável, mas sobre Coelho de Carvalho, que aponta "como o maior de quantos inimigos conta a universidade" e apoda dos piores defeitos, num rol que se estende da prepotência à corrupção, insistindo, como em numerosos outros documentos, no dado biográfico da sua disponibilidade do lugar de Cônsul de Portugal em Xangai, com perda de vencimento, por faltas graves e repetidas ao serviço, tal como reza um Decreto de 25 Novembro de 1986.

E não deixa de invectivar o Ministro da Instrução por, segundo eles, haver prometido o restabelecimento da Faculdade de Letras na Universidade de Coimbra a uma comissão de professores para, passados três dias, segundo os jornais, se referir à Universidade nos termos mais violentos e injustos. Mais uma vez se reiterando o passado liberal da Universidade, mormente da Faculdade de Teologia.

Só por má fé, ou pelo desconhecimento de quem nunca visitou a Universidade de Coimbra, se poderiam justificar tais ataques.

Mas o importante é que o documento termina reiterando a confiança particular no Parlamento onde espera que só venha a ter eco a" voz da

71 verdade", "a começar pela revogação do Decreto n° 5770 .

A 16 de Junho de 1919, mais um ofício da Academia de Ciências classifica a colocação de professores na disponibilidade como um princípio "verdadeiramente bolchevista" e solidariza-se com os colegas de Coimbra, Enquanto um outro ofício dá conta do apoio de Magalhães Lima à causa coimbrã, expelindo a doutrina de que não há professores monárquicos, nem republicanos, mas apenas competentes ou inábeis; nem reaccionários ou

A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra ao país. Coimbra: Tipografia França Amado, 1919, p. 51.

70 Ibidem, p. 52. 71 Ibidem, p. 54.

liberais, mas apenas científicos ou impróprios, sendo iníquo qualquer critério governamental que fuja a esta orientação.

Para a 18 de Junho, o mesmo Ângelo da Fonseca, intervir de novo, desta vez em carta aberta ao Presidente da República, repetindo os argumentos anteriormente aduzidos, com incidência ampliada nos ataques ao Reitor nomeado Coelho de Carvalho, acusado de sistemáticos, arbitrários e imorais "perdões de actos"7 , feitos por um homem que "se imediatamente o não

relegarem", "envenenará uma geração "instada a negociar a sua honestidade por um perdão de acto"73, traficando "com os destinos da Pátria, pelo

tentame de compra das mais nobres gerações académicas" .

Ainda a 26 de Junho, de novo a Academia de Ciências informa que Teófilo Braga expediu um telegrama para o Presidente da Câmara dos deputados, reclamando o restabelecimento imediato da Faculdade e a reintegração dos professores e assistentes, reiterando o carácter meramente académico da questão.

"A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

ao País"

O documento base da resposta institucional, intitulado "A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra ao País"75, editado com um profuso

conjunto de anexos, tinha cujo objectivo essencial era fazer passar que:

Io Não houve qualquer consulta às faculdades de letras para a reforma da

Secção de Filosofia;

2o Dos nomeados ministeriais para os dois novos lugares de professores em

cada uma das faculdades de letras, nada se sabia, ou melhor, "nada constava aos vogais da Faculdade" que lhes desse crédito de "reconhecida competência científica"76, sobre que, aliás, também não tinha havido

qualquer consulta às faculdades de letras;

72 Ibidem, p. 57. 73 Ibidem, p. 59. 74 Ibidem, p. 60. 75 Ibidem. 76 Ibidem, p. 5.

3o Em conclusão, tudo não passaria de uma revancha do "génio

sanguinário" do Ministro da Instrução, possesso de uma "hipertensão nervosa movida pelo ódio" e desconhecedor completo do que seria a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Nem poderia ser de outro modo, aconselhado como estaria por Joaquim Coelho de Carvalho, a quem nomeara Reitor em substituição do demitido Mendes dos Remédios, alvo de particular sanha verberada pelo cardápio dos epítetos da vileza: da incompetência ao oportunismo, glosando em especial o de ressaibiado preterido na ambição de professor universitário tanto por Joaquim de Carvalho como por Gonçalves Cerejeira...

Só por informação manipulada se poderia crer que a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra fosse constituída por ex-membros da Faculdade de Teologia; na verdade, tal ferrete originário marcaria apenas quatro membros docentes da Faculdade de Letras. Quatro em dezanove!

Melhor do que ferrete, aliás, marca "gloriosa" de que só se poderiam orgulhar, pois a história da Faculdade de Teologia, sempre ao serviço da Pátria e da Religião, caracterizara-se em Coimbra pela "agudeza de espírito, de erudição e de saber" e simultaneamente pela permanente actualidade em matéria de inovação científica a nível mundial.

Ao contrário do que expeliam as vozes da "recriminação" e do "ódio", o estudante de teologia em Coimbra era dignificado como alguém a quem se concedia o livre exame das doutrinas.

Era pois uma escola de "tolerância" no sentido mais elevado da palavra, já que incluía "a mais sincera estima", não ficando esclarecido se o entendimento não iria no sentido da deriva paternalista susceptível de ser entendida como oposta à propalada liberdade afectiva...

Elevada aos píncaros da Escola onde "nos educávamos todos"79, a história

que a considera um antro de reaccionarismo obscurantista e dogmático estava totalmente errada.

Ibidem, p. 9. Ibidem, p. 13. Ibidem, p.14.

Reparasse-se de resto que se, com a República, essa faculdade onde se temperava a inteligência e o carácter foi suprimida, não foi por lhe ser hostil, ou sequer adversa, mas por, dada a diminuição progressiva da frequência, se ter tornado um "órgão sem função"80, situação derivada de

ganhar fama de ser demasiado secular aquando da polémica com o Vaticano conhecida por a "Questão da Faculdade de Teologia".

Se houvesse a discernir um fio orientador no pensamento da Faculdade de Teologia nunca seria o do clericalismo, mas mais facilmente o seu oposto. Por isso mesmo, sem alunos, sentindo a inutilidade, terá sido ela própria a liquidar-se, pedindo a transformação em Faculdade de Letras.

Por outro lado, dos quatro vindos da malograda Faculdade, citam-se no protesto apenas três, a saber, António Vasconcelos, Mendes dos Remédios e Oliveira Guimarães.

Estranho num documento que se pretende paladino da mais diáfana clareza, sobretudo quando se verifica que a figura retirada só pode ser Alves dos Santos.

Ora António Augusto Alves dos Santos, formado entre Braga e Coimbra, licenciado e doutorado pela Faculdade de Teologia, autor de uma extensa obra teológica e litúrgica, chegando a tomar ordens embora não as mantivesse por muito tempo, experto em elogios fúnebres, tornou-se, com a República, não só o autor do catecismo positivista intitulado "Elementos de Filosofia Scientífica", no dizer de José Trindade dos Santos, uma demonstração de como " o Escolasticismo verbalista e superficial não é

Q 1

exclusivo dos defensores da "Philosophia Espiritualista" , obra que pontificou pelos liceus antes de preterida a favor da de Mendes dos Remédios, como logrou, perto de Teófilo Braga, adaptar-se inteiramente aos novos ventos vitoriosos.

Historial suficiente, quiçá, para firmar a desconfiança dos doutos contestatários que lhe recusam o certificado de existência, pois só lhe conhecendo as boas relações com sectores republicanos, não foram capazes de adivinhar que Alves dos Santos se viria a mostrar como o mais feroz opositor parlamentar às medidas preconizadas por Leonardo Coimbra.

0 Ibidem, p. 75.

Se no texto dos contestatários, a antiga Faculdade de Teologia surge esmagada entre o Estado e o Vaticano (de mal com o Estado por causa dos Bispos, de mal com os Bispos por causa do Estado) , Alves dos Santos parece ter herdado essa mesma tendência para, ao querer agradar a Deus e ao Diabo, acabar esmagado entre as duas forças.

Mas fica a questão: as referências críticas a Coimbra, constantes dos preâmbulos do diploma contestado, incidem sobre a globalidade dos professores da Faculdade de Letras, como pretende a generosidade conciliatória de Álvaro Ribeiro, sem conseguir ocultar o desideratum de ilibar, ou pelo menos proteger, Leonardo, ou visa sobretudo a Secção de Filosofia, como aliás Joaquim de Carvalho interpreta, com o exagero embora de se considerar o principal visado?

Se o Decreto governamental joga com certa ambiguidade utilizando a "escolástica" dos ex-teólogos como anátema abrangente de toda a Faculdade de Letras, o texto contestatário não o faz menos, na medida em que, falando de quatro para mostrar que, em dezanove, quinze não o são, escamoteia a origem "teológica" do professor do VI grupo, de Ciências Filosóficas, a saber, Alves dos Santos, coadjuvado por Joaquim de Carvalho como assistente.

De notar que o curriculum vitaœ de Augusto Joaquim Alves dos Santos aparece extirpado da sua vasta obra teológica e litúrgica, referindo apenas a publicação de "A Nossa escola primária", "o Ensino primário em Portugal", "O crescimento da criança portuguesa" e o manual "Elementos de filosofia scientífica".

Se Alves dos Santos viria a protagonizar no Parlamento a contestação aos decretos governamentais, viria do jovem Joaquim de Carvalho, o assistente acabado de ser proposto pelo próprio Alves dos Santos para professor ordinário, em documento de 7 de Maio de 1919 , uma das reacções mais ferinas, ao assumir como suas as dores coimbrãs.

Na versão que teria sido apresentada a António José de Almeida, "A Faculdade de Teologia como a quer Roma não a quer o Estado; e como a quer o Estado não convém a Roma", in A Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra ao país, p. 16.