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A reconfiguração da cortesia: tipos específicos de cortesia interpretada

CAPÍTULO 3. A CORTESIA VERBAL

3.4 Funções da cortesia

3.4.5. A reconfiguração da cortesia: tipos específicos de cortesia interpretada

Como vimos, a adequação dos atos de cortesia está atrelada à situação comunicativa, à relação interpessoal que se estabelece entre os interlocutores – que decorre, justamente, de um determinado tipo de interlocução – assim como das motivações culturais que subjazem ao evento comunicativo. De acordo com Spencer- Oatey (2008), a cortesia verbal configura um tipo de “julgamento social” – trata-se de um fenômeno intrinsecamente social e seus desdobramentos decorrem, sobretudo, da adequação ou não de um ato ao contrato interacional estabelecido.

Como Fraser e Nolan (1981: 96) apontam, a polidez é realmente um julgamento contextual: 'Nenhuma sentença é inerentemente educada ou indelicada. Muitas vezes consideramos indecorosas certas expressões, mas não são as expressões em si, mas as condições sob as quais são usadas que determinam o julgamento da polidez '. Em outras palavras, sentenças ou construções linguísticas não são ipso facto educadas ou rudes; antes, a polidez é um julgamento social, e os oradores são considerados educados ou rudes, dependendo do que dizem em que contexto. A polidez, nesse sentido, é uma questão de adequação (SPENCER-OATEY, 2008, p. 3).91

Nesse sentido, nenhum fato da língua é eminentemente cortês ou descortês, haja vista o fato de que sua configuração se dá à medida que a interação evolui – no decorrer das trocas verbais, em um dado evento comunicativo. Acerca desse aspecto, Haverkate (1994) apresenta algumas considerações: “[...] Insistimos que não há orações corteses, já que a cortesia de cada oração depende do contexto ou da situação na qual tal oração é emitida” (HAVERKATE, 1994, p. 78).92

De acordo com Culpeper (1996; 2011), há contextos comunicativos que, devido ao tipo de relação que se estabelece entre os interlocutores – no caso, de aproximação e de simetria – empregam-se atos que, aparentemente, afiguram-se como descorteses e que, todavia, revelam

comunicativa concreta[...] Precisamente, esta distinción permite explicar la existencia del fenómeno conocido como mock impoliteness (J. Culpeper, 1996, 2005), false impoliteness o pseudo-impoliteness (M> Albelda Marco, 2008b) o non- authentic impoliteness o non-genuine impoliteness (M.Bernal, 2008b) , esto es, la utilización de elementos que, si bien desde el punto de vista codificado provocan un efecto de descortesía, en el plano interpretado causan el efecto contrario: cortesía y afiliación entre los interlocutores (BRENES PEÑA, 2011, p. 47).

91 Tradução nossa da versão original em inglês: As Fraser and Nolan (1981: 96) point out, politeness is actually a

contextual judgement: 'No sentence is inherently polite or impolite. We often take certain expressions to be impolite, but it is not the expressions themselves but the conditions under which they are used that determine the judgement of politeness'. In other words, sentences or linguistic constructions are not ipso facto polite or rude; rather, politeness is a social judgement, and speakers are judged to be polite or rude, depending on what they say in what context. Politeness, in this sense, is a question of appropriateness (SPENCER-OATEY, 2008, p. 3).

92 Tradução nossa do original em espanhol: [...] Insistimos en que no hay oraciones corteses, ya que la cortesía de

aspectos da relação interpessoal firmada no evento comunicativo: relações de proximidade e de solidariedade. Ademais, cumpre observar que, em virtude do tipo de contrato conversacional estabelecido entre os interactantes, os atos que em um nível frasal apresentam-se como FTAs (atos de ameaça), podem cumprir outro papel na interação: o de estratégias ou mecanismos de afiliação ao grupo.

Os fatores que influenciam a ocorrência de falta de cortesia em relações iguais são complexos. Se a falta de cortesia se correlacionar com a intimidade, podemos supor que uma descortesia genuína, em oposição à falsa descortesia, será mais provável de ocorrer em um relacionamento extremamente íntimo? Há alguma evidência para isso (CULPEPER, 1996, p. 354).93

Não obstante esses atos apresentem, no âmbito linguístico, a forma de ataques, afiguram-se, efetivamente, como recursos de pertencimento a um grupo. Assim, por meio de uma análise atenta, sobretudo, do nível discursivo, observar-se-á que esses atos de falsa descortesia, (mock impoliteness) na definição de Culpeper (1996; 2011), na verdade, produzem efeitos corteses: “A falsa descortesia ou brincadeira é a descortesia que permanece na superfície, desde que se entenda que não se intenta causar ofensa” (CULPEPER, 1996, p.354)94.

Acerca da pseudocortesia, assim como no que diz respeito aos estudos relacionados a situações discursivas semelhantes, importa observar as considerações de Haverkate (1994):

Observa-se que os insultos podem desempenhar também um papel irônico ou jocoso. O exemplo mais conhecido desse tipo de interação não sincera é o que Labov (1972) descreve em seu estudo sobre os insultos rituais entre os adolescentes negros de Nova Iorque. Como as proposições expressas por esses insultos são claramente faladas, das quais todos os participantes são conscientes, Labov conclui que os intercâmbios ofensivos rituais funcionam como manifestação simbólica de solidariedade entre os membros do grupo (HAVERKATE, 1994, p.79).95

Zimmerman (2005) denomina esse fenômeno como anticortesia, procedendo à sua abordagem como estratégia de afiliação entre jovens. Nesses contextos específicos, observou-

93 Tradução nossa da versão original em inglês: The factors influencing the occurrence of impoliteness in equal

relationships are complex. If lack of politeness correlates with intimacy, can we assume that genuine impoliteness, as opposed to mock impoliteness, will be more likely to occur in an extremely intimate relationship? There is some evidence for this (CULPEPER, 1996, p. 354).

94 Tradução nossa da versão original em inglês: Mock impoliteness, or banter, is impoliteness that remains on the

surface, since it is understood that it is not intended to cause offence.” (CULPEPER, 1996, p.354)

95 Tradução nossa da versão original em espanhol: Obsérvese que los insultos pueden desempeñar también un

papel irónico o jocoso. El ejemplo más conocido de este tipo de interacción no sincera es el que describe Labov (1972) en su estudio sobre los insultos rituales entre los adolescentes negros de Nueva York. Como las proposiciones expressadas por estos insultos son claramente falsas, de lo que son conscientes todos los participantes, Labov concluye que los intercambios ofensivos rituales funcionan como manifestación simbólica de solidariedad entre los miembros del grupo (HAVERKATE, 1994, p. 79).

se que, devido às contingências extralinguísticas, os atos de anticortesia perderam seus efeitos descorteses, neutralizando-se e ritualizando-se.

Trata-se de uma inversão provocada não somente pelo tipo discursivo, ou situação interativa, mas também por fatores socioculturais. Os jovens intentam criar uma identidade grupal distinta da comunidade de referência e, para isso, utilizam expressões que, nessa comunidade, consideram ofensivas. Eles desafiam a abordagem geral e criam seu próprio código. Nesse caso, para os participantes dessa interação, os termos perderam seu caráter ofensivo nesse contexto, embora se saiba (permanece em um plano virtual) o que prevalece no idioma.96 Por outro lado, no caso da falsa cortesia (mock politeness), observam-se atos cujo propósito não é o de reparar ou evitar danos à face alheia, necessariamente, mas sim atos de cortesia que se inscrevem num ambiente cuja norma é o conflito. Nesses casos, devido ao contexto, os atos de pseudocortesia – não marcados, isto é, inadequados, do ponto de vista do que é esperado – reconfiguram-se, assumindo a função de estratégias de ameaça encobertas, a partir das quais o falante abstém-se da responsabilidade por seu comportamento verbal (Culpeper, 1996; 2011).

Os atos de falsa cortesia que, no nível frasal, isto é, na esfera dos enunciados, aparentam apreço e altruísmo, por parte do locutor, configuram-se, no âmbito extralinguístico, em procedimentos de autoproteção da autoimagem e, concomitantemente, de ameaça à face alheia. A observação de diversos elementos, a partir dos quais se desvelam os verdadeiros efeitos que emergem de situações comunicativas concretas, tais como: os papeis desempenhados pelos participantes da interação, as intenções comunicativas, os conhecimentos de mundo acerca do evento comunicativo, assim como as características relativas gênero comunicativo, são de suma importância para a compreensão desse fenômeno linguístico-discursivo.

Importa observar que a falsa cortesia é concebida por alguns autores como uma forma de ironia. Para Haverkate (1994) há dois modos pelos quais a ironia é empreendida: por meio da negação ou da inversão da força ilocutória de um enunciado irônico, ou por meio da ironia cujos efeitos incidem sobre o conteúdo proposicional do enunciado.

Dentro do primeiro subtipo, a ironia consiste na mudança da força ilocutiva, e afeta, sobretudo, os atos expressivos. Somente assim pode-se explicar, por exemplo, que o

96 Tradução nossa da versão original em espanhol: Se trata de una inversión provocada no solo por el tipo

discursivo, o situación interactiva, sino también por factores socioculturales. Los jóvenes intentan crear una identidad grupal distinta a la comunidad de referencia, y para ello utilizan expresiones que en esta se consideran ofensivas. Retan, así, al enfoque general y crean su proprio código. En este caso, para los participantes en esta interacción los términos han perdido su carácter ofensivo en este contexto, aunque se conoce (queda en un plano virtual) el que tienen en la lengua (ZIMMERMAN, 2005, p. 86).

emissor utilize um elogio para transmitir um ato de fala que, formalmente, constitui seu antônimo: uma crítica (BRENES PEÑA, 2011, p. 237).97

Cabe assinalar, ademais, outro tipo de cortesia, deveras empregada em interações regidas pelo conflito: a hipercortesia ou a ultracortesia. A hipercortesia (ultracortesia) configura atos que, por figurarem no discurso de modo cortês em demasiado, passam a assumir a forma de atos irônicos, cujos efeitos são os de descortesia. Posto isso, importa observar que a ocorrência de padrões recorrentes se mostra pertinente afigurando-se, pois, como indícios ou marcas, por meio das quais os interlocutores passam a inferir acerca do que, de fato, cumpre fins corteses ou não. Assim, a interpretação dos fatos da língua é depreendida do que é, efetivamente, esperado e compreendido como apropriado às condições em que se processa a interação. É, pois, à medida que o processo interacional se instaura – no decorrer do evento comunicativo – que os padrões ou normas, intrínsecas à situação discursiva, são reconhecidos. A partir daí, verifica-se, então, de que modo os atos de fala operam e que sentidos ou efeitos – corteses ou descorteses - emergem nesse complexo processo interpretativo.

97 Tradução nossa da versão original em espanhol: Dentro del primer subtipo, la ironía consistente en el cambio de

la fuerza ilocutiva, afecta, principalmente, a los actos expresivos. Sólo así puede explicarse, por ejemplo, que el emisor utilice una alabanza para transmitir un acto de habla que, formalmente, constituye su antónimo: una crítica (BRENES PEÑA, 2011, p. 237).

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