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CAPÍTULO 5. A ARGUMENTAÇÃO

5.4 As contribuições de Amossy (2018) para um estudo da argumentação no discurso

5.4.3 O ethos

Outro aspecto explorado por Amossy (2018) – concernente às três provas do discurso, pelas quais se pode obter a adesão do auditório – diz respeito ao ethos, conceito oriundo da herança clássica229 , que se encontra no bojo de uma discussão em torno de sua natureza, a qual,

228 No que concerne à noção de face, Amossy (2018) considera as contribuições de Goffman (1967) para um estudo

da imagem em interações diversas.

229 Em meados do século XX, as Neo-Retóricas229 procederam ao resgate e à investigação de alguns conceitos

oriundos da herança aristotélica, dentre os quais estão os três tipos de argumentos ou provas do discurso cujo emprego, configura-se, segundo Aristóteles, nos meios mais importantes pelos quais se busca a adesão do auditório. No tocante às três provas, observam-se três mecanismos de convencimento, cujo uso produz efeitos de persuasão: o ethos – concernente ao caráter do orador – construído mediante o discurso; o logos, no caso, a argumentação propriamente dita, isto é, a organização dos argumentos no discurso; e o pathos, que diz respeito às paixões suscitadas no auditório.Para Aristóteles, o ethos, que se configura na imagem forjada pelo orador, constitui-se na prova mais importante engendrada mediante o discurso, no que diz respeito ao processo de persuasão. O pathos, voltado para a figura do interlocutor, configura um mecanismo deveras eficaz em se tratando

segundo diversos estudiosos230 acerca da imagem ou do caráter do orador no discurso, pode ser de procedência pré-discursiva ou discursiva, conforme ressalta a autora:

Em sua Retórica, Aristóteles denomina ethos [...] o caráter, a imagem de si, projetada pelo orador desejoso de agir por sua fala, pondo em destaque o fato de que essa imagem é produzida pelo discurso. Assim, ele inaugura um debate que vai se seguindo ao longo dos séculos e a respeito do qual até hoje há desdobramentos. Trata-se de saber se é preciso privilegiar a imagem de si que o orador projeta em sua fala ou, antes, a imagem que deriva de um conhecimento prévio de sua pessoa (AMOSSY, 2018, p 80).

Partindo de diferentes abordagens, apresentadas por teóricos distintos, relativas ao conceito de ethos,231Amossy (2018) assinala que a imagem do orador – designado, também, como locutor – é construída mediante a junção de elementos preexistentes, assim como a partir das marcas depreendidas da própria tessitura do discurso, no que tange à sua materialidade concreta:

O locutor que não pode se apoiar em uma autoridade institucional suficiente ou apropriada, aquele que se vê recoberto por uma imagem estereotipada ou apropriada, aquele que se vê recoberto por uma imagem estereotipada que vai contra os seus propósitos pode trabalhar para modificá-la em seu discurso. A encenação verbal do eu manifesta modalidades segundo as quais o orador se esforça para colocar em evidência, corrigir ou apagar os traços que, presumidamente, lhe são atribuídos. É a partir daí que se pode ver como a imagem prévia do locutor é remodelada por um discurso que ora a reforça, ora se dedica a transformá-la. Se a representação preexistente se revela favorável e apropriada à circunstância, o orador pode apoiar-se nela. Mas ele deve modulá-la ou reorientá-la se, ao contrário, ela lhe for desfavorável, ou se não convier aos objetivos persuasivos que almejou (AMOSSY, 2018, p. 92).

Nessa direção, para Amossy (2018), a noção de ethos pode ser explicada por meio de referências distintas232, a saber: as contribuições da herança clássica, as considerações das

de orientar o público-alvo a assumir determinadas condutas em virtude das emoções que lhes são suscitadas pelo orador.

230 Amossy (2018) menciona diversos autores em sua apresentação e análise do ethos, dentre os quais estão:

Maingueneau (2008), Reboul (2004), dentre outros. Para Maingueneau (2008), a eficácia da adesão ao caráter, isto é, ao ethos que se apresenta ao auditório depende, dentre outros fatores, de um complexo processo de incorporação, conceito postulado pelo autor, a partir do qual se busca persuadir o auditório às teses que lhes são apresentadas. A incorporação consiste, segundo o autor, na “maneira pela qual o coenunciador se relaciona ao ethos de um discurso.” (2008, p.72). Assim, segundo o autor, a adesão se deve a relações de identificação: “O destinatário a

identifica apoiando-se num conjunto difuso de representações sociais avaliadas positiva ou negativamente, em estereótipos que a enunciação contribui para confrontar ou transformar [...] (MAINGUENEAU, 2008, p. 18)”.

O ethos configura um conjunto de elementos que atuam de modo a construir ou mobilizar determinadas emoções naqueles aos quais se dirige. Trata-se, segundo Maingueneau (2008), de dispositivos cujos desdobramentos são a aceitação ou não do caráter veiculado pela figura do orador.

231 Amossy (2018) aponta algumas teorias que se debruçam sobre a questão do ethos, como a retórica aristotélica,

as contribuições de Benveniste a Ducrot – que procedem à apresentação do ethos dentro de um esquema enunciativo – assim como as contribuições de Orecchioni (2006) e de Goffman (1967) acerca da construção de uma imagem e sua negociação ao longo da interação.

232 Em sua explicação acerca do ethos, Amossy (2018) evoca diversos teóricos, dentre os quais está Reboul (2004),

cuja definição de ethos julgamos importante mencionar aqui. De acordo com Reboul (2004), o ethos corresponde à figura do orador, ao passo que o pathos relaciona-se à figura do auditório. Cabe observar que, tanto o ethos,

ciências da linguagem – sobretudo, as de Benveniste (2008) e de Ducrot, que postulam haver um “dispositivo enunciativo” – bem como as considerações de Maingueneau (2008)233. Além disso, importa assinalar que Amossy (2018) leva em consideração aspectos apresentados pela Análise da Conversação em sua investigação no tocante à construção da imagem no discurso.

De acordo com Amossy (2018), os estudos de Benveniste (2008) acerca da enunciação levam em conta que o ethos se estabelece mediante um complexo processo de inscrição do locutor naquilo que diz. Trata-se da compreensão da enunciação enquanto situação de alocução, na qual um locutor se instaura no discurso e é percebido a partir das marcas subjetivas que deixa em seu discurso. Essa noção, expandida pela teoria de Maingueneau234 – para o qual o ethos se configura em uma instância inerente ao próprio ato de produzir enunciados, na medida em que se inscreve na enunciação e no enunciado – é, também, apresentada por Amossy (2018), a qual estabelece um conceito de ethos nomeadamente vinculado à enunciação: “Para conferir a si certo status suscetível de legitimar o seu dizer, o enunciador deve se inscrever em uma cena de enunciação” (AMOSSY, 2018, p 85).

Para a autora, a inscrição do ethos em uma cena de enunciação se dá por conta de seu papel desempenhado em um dado tipo de manifestação discursiva: “Ele faz isso mais facilmente, porque cada gênero de discurso comporta uma distribuição prévia dos papéis” (AMOSSY, 2018, p. 85). Nesse sentido, para Amossy (2018), faz-se necessário considerar, para a análise do ethos, o gênero que veicula uma determinada troca linguística235 onde, segundo a

quanto o pathos, emergem de relações intersubjetivas entre orador e auditório. Reboul (2004) define o ethos da seguinte forma: “O etos é o caráter que o orador deve assumir para inspirar confiança no auditório, pois, sejam quais forem seus argumentos lógicos, eles nada obtêm sem essa confiança” (REBOUL, 2004, p. 48).

233 Pode-se afirmar que, para Maingueneau (2008), o ethos afigura-se como um conjunto de predicados, sejam eles

verbais ou paralinguísticos, tais como a maneira pela qual se convence – branda ou mais agressiva – os olhares, a disposição do corpo, a aparência e, sobretudo, as escolhas argumentativas. Há ethé que evocam a ideia de trabalhador, ao passo que alguns remetem ao homem forte ou capacitado, solidário ou erudito. Os diferentes ethé constituem-se a partir daquilo que se espera suscitar no auditório: trata-se de uma relação de “espelhamento”, por meio da qual o auditório se identifique com um complexo esquema de atributos apresentados pelo orador: “Vê-se que o ethos é distinto dos atributos “reais” do locutor. Embora seja associado ao locutor, na medida em que ele é a fonte da enunciação, é do exterior que o ethos caracteriza esse locutor.[...] Mais exatamente, não se trata de traços estritamente “intradiscursivos” porque, como vimos, também intervêm, em sua elaboração, dados exteriores à fala propriamente dita (mímicas, trajes...)” (MAINGUENEAU, 2008, p.14).

234 Para Maingueneau (2008), o ethos configura-se como uma instância inerente ao próprio ato de produzir

enunciados, na medida em que se inscreve na enunciação e no enunciado, por conseguinte. Trata-se, segundo o autor, de um elemento intrinsecamente ligado ao processo de enunciação: “O ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não se pode ignorar que o público constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale. Parece necessário, então, estabelecer uma distinção entre ethos discursivo e ethos pré- discursivo” (MAINGUENEAU, 2008, p. 15).

235 Segundo Fiorin (2016), importa observar alguns aspectos em se tratando do modo pelo qual é possível

determinar o ethos de um enunciador: o estabelecimento da totalidade da produção de um sujeito enunciativo. (2016, p. 71): “Onde se encontram, na materialidade discursiva da totalidade, as marcas do éthos do enunciador? Dentro dessa totalidade, procuram-se recorrências em qualquer elemento composicional do discurso ou do texto:

autora, o locutor desempenha um determinado papel, em virtude de ocupar uma posição previamente instituída que lhe permite adotar um dado comportamento verbal, tal como ocorre no debate político eleitoral, objeto de análise desta tese.

Assim, a inscrição do sujeito no discurso não se efetua somente por meio dos embreantes e dos traços de subjetividade na linguagem (modalizadores, verbos e adjetivos axiológicos etc.). Isso se faz também pela ativação de um tipo e de um gênero de discurso nos quais o locutor ocupa uma posição antecipadamente definida, e pela seleção de um roteiro familiar que serve como modelo para a relação com o alocutário (AMOSSY, 2018, p. 86).

Cumpre assinalar, ademais, que a análise do ethos circunscreve-se, conforme Amossy (2018), no âmbito das interações verbais. Desse modo, a autora destaca, ainda, a importância dos estudos de Goffman (1967) para a abordagem da inscrição da imagem do sujeito em diferentes tipos de manifestações discursivas.

Importa observar, assim, elementos relacionados à imagem enquanto “categoria social, profissional, étnica, nacional etc. do locutor” (AMOSSY, 2018, p. 92); assim como o que Amossy (2018) denomina como “imagem singular”, a qual se coloca em circulação à medida que se processa uma determinada troca comunicativa, sendo, pois, construída no próprio evento discursivo. Essas imagens podem, não obstante, modificar-se e apresentar-se até mesmo de modo antagônico, consoante o tipo de auditório a que se visa persuadir e os diferentes objetivos de imagem do orador. Isso significa que, conforme salienta a autora, podem-se observar, em um mesmo evento discursivo, diferentes imagens apresentadas por um mesmo orador.

Desse modo, o ethos emerge tanto do discurso, como salientamos, como de elementos pré-discursivos, depreendidos da posição social – da categoria social na qual os sujeitos se inscrevem – em um dado campo ou esfera social, sendo constituído, também, a partir do imaginário social e dos estereótipos, provenientes de “modelos culturais” , os quais perfazem o modo pelo qual se constrói a imagem do orador.

É preciso, portanto, ter em conta a imagem que se atribui, em momento preciso, à pessoa do locutor ou à categoria da qual ele participa. É preciso ter acesso ao estoque de imagens de uma dada sociedade ou ainda conhecer a imagem pública de uma

personalidade política ou midiática (AMOSSY, 2018, p. 92, grifos nossos).

A respeito do ethos pré-discursivo, Amossy (2008) faz as seguintes considerações: “A estereotipagem [...] é a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado” (AMOSSY, 2008, p.125).

na escolha do assunto, na construção das personagens, nos gêneros escolhidos, no nível de linguagem usado, no ritmo, na figurativização, na escolha dos temas, nas isotopias, etc” (FIORIN, 2016, p. 71).

Desse modo, pode-se considerar que o estabelecimento de um discurso calcado em uma argumentação eficaz, credível, emerge de um tipo de contrato firmado entre orador e auditório, já que a argumentação opera à medida que o auditório comunga as mesmas ideologias ou visões de mundo veiculadas pelo discurso do orador, mas, sobretudo, pela imagem que se instaura mediante suas práticas. Acerca do processo de estereotipagem que perfaz as relações entre orador e auditório, Mosca (2004) assinala que a concepção prévia que se atribui ao orador não é, com efeito, singular, na medida em que depende de ideias consensuais, relativas a representações coletivas, isto é, à doxa:

A estereotipagem, lembremos, é a operação que consiste em pensar o real por meio de uma representação cultural preexistente, um esquema coletivo cristalizado. Assim, a comunidade avalia e percebe o indivíduo segundo um modelo pré-construído da categoria por ela difundida [...] se se tratar de uma personalidade conhecida, ele será percebido por meio da imagem pública forjada pelas mídias (MOSCA, 2004, p.126,

grifos nossos).

Diante do exposto, segundo Amossy (2018), faz-se necessário proceder ao exame dos componentes que constituem a situação comunicativa na qual se insere um determinado status institucional – o de professor ou de um político, por exemplo – bem como da representação prévia que dele se obtém – a de um professor progressista ou do político autoritário – que pode ou não autorizar determinadas posturas, concernentes a um campo do qual o locutor participa, seja ele político, literário, intelectual, social, dentre outros (AMOSSY, 2018, p. 91).

As noções de campo e de gênero são, também, exploradas por Amossy (2018) na última parte de sua obra, intitulada “Quadros formais e institucionais”, na qual a autora ressalta a necessidade de se situar a argumentação em um quadro discursivo a partir do qual o trabalho de persuasão se articula. A argumentação encontra-se, desse modo, em uma relação de interdependência com o âmbito discursivo em que se desenvolve, o qual influencia, sobremaneira, as práticas argumentativo-discursivas empreendidas pelos participantes de um dado evento comunicativo.

A argumentação depende diretamente do quadro discursivo no qual ela se desenvolve. A análise dos exemplos demonstrou muito bem: o bom desenvolvimento da troca verbal é tributário do domínio do qual ela depende e do gênero no qual se insere. Não se pode estudar o ethos de Jaurés sem levar em conta o fato de que ele emite um discurso parlamentar, nem o entinema em uma réplica de Primo Levi sem ver que ele o utiliza no quadro de uma entrevista. É preciso lembrar que a retórica antiga, distinguindo o judiciário, o deliberativo e o epidíctico, ligava estritamente o uso da fala persuasiva a um lugar socioinstitucional. Ampliando o quadro da interação, as ciências da linguagem contemporâneas multiplicaram as situações e os gêneros nos quais a argumentação pode ser examinada (AMOSSY, 2018, p. 245).

No caso do debate político eleitoral, importa observar que o tipo de quadro participativo presente nesse tipo de evento comunicativo colabora com a manipulação deliberada do status ou do papel de cada interactante, fato que será explorado nesta tese, de modo mais aprofundado posteriormente.

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