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O COMISSARIADO DA PROVÍNCIA DE SANTO ANTÓNIO DE PORTUGAL NO MARANHÃO E PARÁ

3. A REGRA DA POBREZA E O PROBLEMA DA SUBSISTÊNCIA

Um dos aspectos fundamentais da orgânica interna da missão relacionava-se com o custeamento das actividades dos religiosos, o seu sustento e a manutenção do culto. Segundo as regras básicas da Ordem, alicerçadas nos rigores do asce- tismo e pobreza, não era permitida a posse de bens, nem a ligação a qualquer actividade lucrativa, de onde pudessem garantir as bases de financiamento, aspecto que era consagrado por todos os estatutos da Ordem – tanto os da Província de Santo António de Portugal, onde se incluem as missões do Grão–Pará e Maranhão, como os da Província de Santo António do Brasil e os da Província da Imaculada Conceição do Brasil197.

Qualquer actividade que tivesse alguma conotação com aspectos pecuniários ou de propriedade era da alçada do síndico do convento, pessoa secular com fun- ções de procurador do Sumo Pontífice, nomeado por autoridade apostólica. A ele competia receber as esmolas, viáticos e ordinárias, e proceder aos pagamentos inerentes às despesas do sustento e vestuário dos religiosos, deslocações dos mes- mos, obras nos conventos, hospícios e igrejas, bem como qualquer outra acção que implicasse o uso de dinheiro, tal como compra de livros, alfaias religiosas e paramentos litúrgicos.

O síndico tinha obrigação de fazer a contabilidade das casas franciscanas, e a nenhum religioso era permitido inquirir-lhe o resultado das contas, cabendo ape- nas ao guardião ou ao provincial essa função, de que resultava um registo, sob a forma de livro, onde se assinalavam todas as receitas e despesas, que era assinado

196Cf. Mathias Kiemen, Op. cit., p. 19; Id., Arthur Cezar Ferreira Reis, A Conquista Espiritual da Amazónia, Op. cit., p. 11.

197Para além dos mencionados estatutos gerais da província portuguesa, vejam-se Estatutos da Província de Santo António do Brasil, Lisboa, 1683; Estatutos da Província de Santo António do Brasil, Lisboa, 1709; Estatutos da Província da Imaculada Conceição do Brasil, Lisboa, 1717. Apesar de a maioria dos textos estatutários transcritos serem posteriores aos anos 1617-1622 são esclarecedores, dado que a legislação neste particular não foi alterada – até porque correspondia a um ponto fundamental da Regra Franciscana. Para o estudo deste corpus documental ver de Maria Adelina Amorim, “A Formação dos Franciscanos no Brasil-Colónia à Luz dos Textos Legais”, Separata de Lusitania Sacra, 2ª série (11), 1999, pp. 361-377.

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conjuntamente pelo guardião, discretos e síndico, e cujo balanço se apresentava periodicamente à comunidade.

“A esmola pecuniária que se oferecer dará ordem que se entregue ao sín- dico conforme as declarações apostólicas, porque, ou seja para remediar as necessidades comuns ou particulares, não pode ser posta em outras mãos, se não nas do síndico, ou substituto seu, nem dispender-se senão por eles. Pelo que o guardião que receber, ou dispender esmola alguma pecuniária, de outro modo, seja castigado como proprietário”198.

O síndico da missão do Pará era nomeado no Reino pelo Provincial, e deve- ria ter como condição ser um homem “abonado”. Para aquelas missões era esco- lhido também um procurador em Lisboa, a quem competia recolher as esmolas régias destinadas aos religiosos e respectivas missões: “Por conta do dito procura- dor correrão todos os despachos e embarques e desembarques das coisas que se enviarem para o Pará e do Pará para Lisboa”, de que tudo daria contas ao Ministros Provincial:

“Em todas as monções de navios que forem para o Pará, mandará ao guardião e presidente das missões os róis das coisas que para cada um deles embarcou e dos recibos que teve e despesas que fez”199.

O estatuto não permitia sequer a concessão de bens de raiz, que implicava uso de propriedade, podendo apenas haver doação de esmolas perpétuas, que obrigavam os herdeiros do testador a assegurar este pagamento, pelas gerações fora, o que acabava por não acontecer. Geralmente as famílias ficavam como donatárias de determinadas capelas, onde se incluía a capela-mor, pelo que as despesas a ela inerentes deveriam correr por sua conta. Estava neste caso o gasto da construção e dos ornamentos, por vezes luxuosos, que era necessário manter e constituíam muitas vezes sobrecargas aos parcos rendimentos das comunidades religiosas200.

A cláusula que regulava a doação das capelas previa castigos para o prelado que as concedesse a quem não assegurasse a sua manutenção, passando ao sín-

198Estatutos da Província de Santo António do Brasil, Op. cit., Cap. LV – “Do Síndico”, p. 122.

199Estatutos da Província de Santo António dos Capuchos do Reino de Portugal, Lisboa, 1737, Op. cit., Cap L “Do Comissário do Pará”, pp. 108-119.

200Estatutos da Província de Santo António dos Capuchos do Reino de Portugal, [Lisboa, Convento de Santo António, 1645], Cap. LI – “Das Capelas e do Ornato com que se hão-de festejar as festas e celebrar as solenidades da Igreja”, p. 29.

É um exemplar impresso existente na Biblioteca Nacional de Lisboa, sem capas nem folha de rosto, pelo que não foi possível saber qual a sua edição.

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dico, como procurador do Papa, a prerrogativa de a poder dar sem o consenti- mento da comunidade, exceptuando-se o caso da capela- mor que só seria doada em capítulo provincial.

Aos proprietários das capelas já cedidas, que não as tivessem provido conve- nientemente e faltassem à sua fábrica, se lhes faria um “humilde requerimento” para que custeassem os seus gastos ou as largassem definitivamente. Caso o não fizessem, accionar-se-iam todos os meios lícitos, através do síndico, para que as alienassem ou provessem do necessário, “porque é coisa mui escrupulosa e ainda contra toda a razão e justiça que andem os religiosos mendigando esmolas para ornarem e sustentarem as capelas alheias”201.

Aos missionários do Brasil não era permitida a remessa de qualquer produto ou encomenda para parentes ou particulares, bem assim como receberem-nos do Reino, sob pena de serem castigados. Logo aos 14 de Junho de 1610, em capítulo presidido por Frei Gaspar da Carnota, os “Estatutos para o Brasil” determinavam para os prevaricadores as seguintes penas:

“Que o tal religioso que se encarregou de negociar ou mandar negociar, seja castigado, sendo prelado em dois meses de suspensão de seu ofício, e sendo súbdito, nos mesmos dois meses de exclusão em casa; e em todas as sextas feiras do dito tempo fará disciplina de castigo na comunidade”202.

Nenhum religioso podia despachar coisa alguma do Brasil, com excepção de remessas para as enfermarias ou obras das casas da Província, “ou para os livros do Custódio que acabou, ou pregador que lá tiver servido à custódia”, no que parece ser uma alusão a documentos do cartório, memórias e outros escritos decorrentes da actividade missionária e literária nos seus múltiplos aspectos, necessários à composição de obras.

“Nenhum religioso do Brasil ouse mandar ao Reino presentes que tenham alguma valia. E o que o contrário fizer seja exemplarmente casti- gado”203.

Este espírito regulador da posse dos bens materiais, impedia qualquer activi- dade lucrativa, resultante da venda de produtos naturais, ou manufacturados, o que implicava formas de financiamento baseadas nas ordinárias destinadas pela Coroa, através da Fazenda Real, e de esmolas obtidas junto às populações e, por-

201Id., Ibid., p. 30.

202Estatutos para o Brasil, Feitos no Capítulo de Frei Gaspar da Carnota aos 14 de Junho de 1610, I.A.N./T.T., O.F.M., Província de Santo António, Província, Mç. 18, doc. nº15.

203Estatutos da Província de Santo António do Reino de Portugal, Op. cit., Cap. XX –“Dos Custódios do Brasil”, pp. 12-14.

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tanto, sujeitas ao nível económico destas. No caso específico do Maranhão, o estado financeiro da sociedade em geral denotava dificuldades, pelo que as con- tribuições dos devotos também se ressentiam. Ao longo de todo o tempo em que os religiosos Capuchos se encontraram no território, as dificuldades de sobrevi- vência foram notórias, com a falta de bens tão essenciais como o vestuário, o papel ou o azeite. Em toda a epistolografia e documentação oficial perpassa de forma constante essa realidade.

Este aspecto da regra franciscana impedia-os de criar a sua própria autono- mia financeira, e de ter uma independência em relação aos poderes régios, às autoridades locais e à boa vontade dos colonos. O facto de não poderem possuir bens de raiz ou de produzirem qualquer produto passível de ser comercializado não permitiu a expansão de actividades produtivas, quer agrárias, quer manufac- tureiras, pelo menos em escala considerada lucrativa.

Segundo os ”Estatutos para os Religiosos de Santo António da Capitania do Pará no Estado do Maranhão”, o dar ou receber qualquer coisa na forma referida é

acto de propriedade expressamente proibido na Regra dos Frades Menores, os quais nada podem ter nem são senhores de si204.

Esta orientação, pontuada com algumas excepções, teve efeitos normativos na actividade missionária, no sentido em que impedia o garante de recursos finan- ceiros necessários à sua expansão e à solidez dos empreendimentos. A própria constituição de aldeias ou doutrinas, implicava despesas e com elas a necessidade de fundos para as colmatar. Aos índios aldeados, eram fornecidas vestes e algumas alfaias agrícolas para as roças, de que se sustentavam os íncolas e também os padres, e nem sempre estes tinham o essencial para lhes dar205.

A questão dos meios de subsistência dos Franciscanos Capuchos foi crucial no desenvolvimento das missões e nas dificuldades com que a Ordem contou para conseguir assegurar a continuidade da sua tarefa evangélica. Sem outros recursos que não fossem os subsídios régios, sob a forma de ordinárias, ou a cobertura das despesas da viagem quando iam do Reino para as terras de missão, os Capuchos dependiam de esmolas aleatórias, numa região com grandes poten- cialidades, mas sem grandes recursos.

O simples envio de missionários, de Lisboa para o Maranhão, implicava a cobertura dos gastos por parte da Fazenda, o que obrigava a Província a recorrer sucessivamente à Corte para se obterem financiamentos. Encontra-se na Biblioteca da Ajuda em Lisboa um processo sobre a ida de catorze religiosos de Santo

204Estatutos para os Religiosos de Santo António da Capitania do Pará no Estado do Maranhão, I.A.N./T.T., O.F.M., Província de Santo António, Província, doc. s/nº.

205Em 1702 queixavam-se os Capuchos de Santo António das grandes dificuldades financeiras que tiveram para erigir duas aldeias novas na Ilha de Joanes, com índios do Cabo do Norte: “Tudo redimiu com os seus sermões e com uma esmola que de lá trouxe sem escândalo de seculares”, I.A.N./T.T., O.F.M., Província de Santo António, Província, doc. s/nº. datado de 5 de Agosto de 1702.

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António para aquele território, com a discriminação dos produtos necessários ao seu sustento, das despesas da viagem; dos gastos no vestuário; dos ornamentos, livros e alfaias do culto, e toda a espécie de apetrechos para o uso quotidiano.

Assim, diferenciam-se tecidos, bens alimentares, objectos de culto e utensí- lios vários. Na primeira categoria encontrava-se pano de linho e burel para a confecção dos hábitos e túnicas, mantos e agasalhos, camisas para os enfermos, panos para fazer toalhas, guardanapos e “serviço de mesa”. Nos produtos ali- mentares incluem-se biscoito, farinha, vinho, açafrão, pimenta, arroz, azeite, alhos, cebolas, vinagre, galinhas, carne, bacalhau, doces, grãos, lentilhas e amei- xas. Como objectos de culto e de actividade litúrgica, mencionam-se livros de moral, de bem morrer e cartilhas, hóstias e cera, generalizando em “ornamento e mais serviço de culto divino” todos os outros artefactos necessários ao seu labor religioso – e que constituía a parcela principal, a seguir ao burel para os hábitos. Entre os utensílios variados, vêem-se capoeiras, papel, facas, agulhas, alfinetes, anzóis, tachos, caldeiras e colheres de cobre, tinteiros, tesouras, canive- tes, lousa “para a viagem e outras miudezas para embarcar”. É uma lista com- pleta que fornece elementos interessantes para se aquilatar das necessidades essenciais dos missionários quando partiam, assim como compreender as difi- culdades decorrentes de uma tarefa tão complexa como era a do envio dos reli- giosos, em termos sistemáticos, sem meios financeiros próprios para assegurar os custos de tal empreendimento206.

Enformados por uma doutrina rígida de penitência e pobreza, assente no pri- mado da ausência de bens de raiz ou qualquer tipo de actividade lucrativa, os Capuchos de Santo António sempre se debateram com grandes dificuldades para assegurar o custeamento do labor missionário. A sua estratégia no espaço onde “conquistavam” almas não implicava a conquista da terra, nem a implantação de sistemas economicistas de tipo mercantil, o que teve a vantagem de não necessi- tarem de grandes contingentes de braços e mão-de-obra servil, apesar de terem índios aplicados ao trabalho doméstico, lavouras e pescarias, em pequena escala relativamente a outras ordens religiosas207.

A questão económica embasada em princípios reguladores rígidos – embora a prática mostre alguma flexibilidade de adaptação às novas condições de vida e ao meio, como o recurso ao braço índio – foi fundamental no modo como os Capuchos moldaram a sua implantação no território.

206Relação dos gastos que fazem os religiosos da Província de Santo António que vão para o Maranhão, S.D[1670], S.l., B.A., 44-XIV-184. Ver Anexo Documental, doc. 28.

207Ao contrário dos Franciscanos, a Companhia de Jesus recorreu a métodos completamente diferentes para garantir o financiamento das suas actividades. Ver por exemplo, Maria Laura Mariani da Silva Teles, “A Conquista da Terra e a Conquista das Almas”, in Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, Vol. II, Braga 1993, pp. 647-673; Jorge Couto, A Construção do Brasil, Cap. VIII. 4: “O financiamento das Actividades Missionárias”, pp. 320-324.

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Fragilizados financeiramente, tiveram as suas acções manietadas pela impos- sibilidade de custeamento. Basta pensar-se no problema da edição livreira, activi- dade dispendiosa, para a qual os Capuchos não dispunham de meios. Já em pleno século XVIII, para a impressão da crónica da Província de Santo António de Portugal foi necessário recorrer também aos síndicos dos conventos ultramari- nos, onde se incluíam o Maranhão e o Pará. Para além do custeamento dos gas- tos de impressão, editar uma obra era tarefa complexa, definida estatutariamente, em termos rigorosos, o que pode explicar como se perdeu a maior parte da pro- dução literária, cujos testemunhos dormem perdidos nos arquivos conventuais, a demonstrar uma realidade bem diferente daquela que perpassa:

“Se algum pregador, ou outro religioso de habilidade quiser compor algum livro, ou tratado, que se haja de imprimir, será na forma que dispõem o Sagrado Concílio Tridentino e uso da religião. A saber, que seja com o nome do próprio autor, aprovado do ordinário, da Santa Inquisição, do Conselho Real, antes das quais irá proceder a do Reverendíssimo ou do Provincial, que não concederão sem aprovação de um ou dois frades doutos da religião”208.

Já se viu como as normas reguladoras dos Capuchos antoninos no Grão-Pará e Maranhão eram definidas pelos estatutos da Província de Santo António do Reino de Portugal, que incluíam um capítulo dedicado ao custódio – e, poste- riormente, comissário – daquele território brasílico. Como não chegaram a cons- tituir uma custódia independente, mas foram uma espécie de ramo da província, os estatutos e regras saídos das congregações intermédias e capítulos provinciais no Reino – regulavam juridicamente as atribuições e a actuações desses religiosos. Pese, embora, alguma discrepância entre os modelos teóricos das regras e sua prática no decurso da acção, não se pode abstrair deste esquema modelar que condicionava a sua actuação.

Os estatutos consignavam as normas que se mantinham num tempo longo e iam absorvendo as alterações lentas movidas pelo processo histórico. Estudar este movimento é perceber a própria dinâmica da sua história.

“Em todas as monções de navios para o Reino, mandará o irmão comis- sário, individual notícia de todas as coisas da missão que houver dignas de memória, e de se mandarem a capítulo-geral, tendo o primeiro lugar as mis-

208Estatutos da Terceira Ordem da Penitência da Regular Observância de Nosso Padre São Francisco Neste Reino de Portugal, Lisboa, 1646, Cap. IV – “Dos Pregadores e Estudantes”. Apesar deste texto legal não pertencer à Primeira Ordem Franciscana, reflecte a complexidade da questão editorial.

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sões, que de novo se erigirem, e os descimentos de índios que para as nossas aldeias se fizerem”209.

São essas “individuais notícias das coisas da missão, dignas de memória” que aos poucos se vão encontrando, até permitir uma reformulação de hipóteses, con- ducente a respostas menos simplistas sobre a actividade dos Franciscanos do Maranhão.