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A QUESTÃO DA LIBERDADE DO ÍNDIO NOS PRIMEIROS FRANCIS CANOS DO MARANHÃO

O COMISSARIADO DA PROVÍNCIA DE SANTO ANTÓNIO DE PORTUGAL NO MARANHÃO E PARÁ

5. A QUESTÃO DA LIBERDADE DO ÍNDIO NOS PRIMEIROS FRANCIS CANOS DO MARANHÃO

Encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo em Lisboa um docu- mento inédito intitulado: Memorial que apresentam os Religiosos Capuchos que ora

estão no Pará, os quais pedem a Sua Majestade lhes mande dar resolução de como se hão-de haver no Serviço de Deus e de Sua Majestade sobre algumas dúvidas que se lhes oferecem a respeito dos Índios224.

Trata-se do treslado de um documento sem data nem assinatura, que integra um copiador, sob a forma de códice, referente ao início do século XVII. Tem, no

222Id., Ibid., p. 356.

223Cf. Jaboatão, Op. cit., pp. 131-132; Frei Venâncio Willeke, Missões, Op. cit., p. 139; Frei Dagoberto Romag, O.F.M., História dos Franciscanos no Brasil (1500-1659), Curitiba, 1940, p. 89; Ernesto Cruz, História do Pará, Belém, 1963, p. 39.

224Memorial dos Capuchos do Pará a Respeito dos Índios [c. 1619-1621], I.A.N./T.T., Manuscritos da Livraria, Lº 1116, fls. 593 ss, publicado no Anexo Documental, doc. 3.

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alinhamento do próprio livro, o número 52, sendo o anterior datado de 1620 e o seguinte, de 4 de Fevereiro de 1623225.

O referido “Memorial dos Capuchos” contém um questionário composto por oito interrogações, relativas, essencialmente, ao cativeiro dos índios, a que se seguem as respectivas respostas. A partir do teor da quinta questão é possível ten- tar obter a datação do documento, entre os anos de 1619 e de 1621. Os Franciscanos interlocutores solicitam essas informações à Coroa, supostamente à Mesa da Consciência e Ordens, órgão que na época dirigia estes assuntos, antes da criação do Conselho Ultramarino por D. João IV226.

Na quinta pergunta, os solicitantes pedem que se mande declarar uma provi- são “que àquelas partes mandou o Governador do Brasil, Dom Luís de Sousa”, donde se pode inferir que se trata de um período anterior à separação dos dois estados e que, portanto, o Pará ainda se mantinha sob a alçada do Governo Geral do Brasil. Luís de Sousa esteve à frente da governação entre os anos de 1617 e 1621. No entanto, o sexto artigo refere a existência de casais como moradores (“havendo respeito a terem ido para ela tantos casais que Sua Majestade tem mandado e outros que lá havia”). Sabe-se que os primeiros povoadores a instalar- se em Belém foram açorianos, em 1621, embora o primeiro contingente de duzentos casais, levados por Jorge Bettencourt de Lemos, tenha ficado em São Luís no ano anterior, o que suscitou um pedido régio de esclarecimento227.

Tudo indica que o documento seja anterior à ida do primeiro custódio do Maranhão, Frei Cristóvão de Lisboa, nomeado em 1622, mas que só chegou ao Maranhão em 1624, e, portanto, ter sido produzido durante a vigência do Comissariado. O título do documento diz inequivocamente: “os missionários que ora estão no Pará”.

A confirmar-se a datação, este memorial torna-se num dos primeiros docu- mentos – se não, o primeiro – a tratar da questão do cativeiro dos índios no Pará. Para corroborar a sua antiguidade, basta analisar a terceira resposta, em que apenas se menciona a lei de D. Sebastião de 1570 (20 de Março) e as leis de Filipe I de 1587 e de 1595, e se atesta com clareza: “salvo se porventura, depois das duas leis, saiu alguma outra lei ou provisão de Sua Majestade, de que por ora

nos não consta”228.

225Os documentos posteriores têm, respectivamente, as datas de 4 de Fevereiro de 1623; 17 de Janeiro de 1624; 26 de Janeiro de 1625.

226Cf. Marcelo Caetano, Do Conselho Ultramarino ao Conselho do Império, Lisboa, 1943; Frei Mathias C. Kiemen, O.F.M., “The Conselho Ultramarino First Legislative Attempts to Solve The Indian Question in America”, in Actas do III C.I.E.L.B., Vol. II, Lisboa, 1960, pp. 226-239.

227Carta Régia de 5 de Março de 1619, A.H.U., Maranhão, Cx. 1. Cf. Carta Régia de Filipe II a Jorge de Lemos de Bettencourt, pub. in Documentos Para a História do Brasil e Especialmente do Ceará: 1608 – 1625, Fortaleza, 1909, Vol. 2, pp. 181-182. Ver Arthur Cezar Ferreira Reis, Aspectos Económicos da Dominação Lusitana na América, Rio de Janeiro, [s.d.].

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O título do “Memorial” serve logo de referência ao modo como era entendida a actuação dos missionários e o seu papel enquanto representantes da Igreja e, simultaneamente, súbditos régios: “os quais pedem a Sua Majestade que lhes mande dar resolução de como se hão-de haver no serviço de Deus e de Sua Majestade.” Esta asserção demonstra as duas dimensões da função dos religiosos: a espiritual e a temporal. Servir a Deus e servir o Rei eram uma só realidade no quadro mental da época.

Os Capuchos dividem o problema do cativeiro em seis partes. Na primeira pretende-se saber se os índios-de-corda, quando são resgatados, se tornam cativos perpetuamente ou durante um determinado tempo. A segunda levanta a questão de se respeitar a lei dos índios, em que é cativo o filho de pai cativo, mesmo que a mãe seja livre. A terceira pergunta respeita aos índios tomados em guerra e àqueles que participam com os brancos contra os índios inimigos. A quarta questão menciona a guerra injusta contra os índios e demanda o estatuto dos que são encontrados como seus prisioneiros. A quinta parte do formulário solicita que se clarifique a provisão de Luís de Sousa, onde se deter- mina que os índios que descerem do sertão voluntariamente com um branco ficam sob sua administração durante dez anos. No sexto item pedem ao monarca que lance uma provisão para que não se possa cativar, sob a forma de resgate, a mulher dos índios forros, “porque a estas comummente não convém, mas forçosamente lhas resgatam, e é causa de muitas inquietações entre os índios e soldados”.

O quinto artigo do formulário solicita o envio de um clérigo com funções de administrador eclesiástico, uma vez que este se encontra distante e é difícil recor- rer a ele.

A última questão propõe a organização de repúblicas nas povoações, devido à existência de muitos moradores novos, numa referência à organização das administrações locais.

As respostas dadas a cada um dos artigos constituem uma fonte de informa- ção sobre o assunto do cativeiro e o seu enquadramento jurídico-legal.

À primeira parte sobre o resgate dos índios-de-corda, atesta-se a sua conde- nação ao cativeiro perpétuo, uma vez que foram libertados da morte (“estando condenados à morte e presos em corda para se engordarem, matarem e come- rem”), conforme teorizam Navarro, Molina e Sairo. Do mesmo modo ficavam cativos os índios que se vendessem a si próprios, mas quando o preço fosse baixo, devia o comprador usar o seu serviço pelo tempo proporcional ao valor da com- pra “e não querer maior serviço do índio”.

Ao segundo item, que respeita ao direito (não positivado) em vigor entre os índios, responde-se que o mesmo deve ser seguido pelos portugueses, ainda que o direito comum estipule não poder ser tomado como cativo o filho de mãe livre, mesmo que o pai seja escravo. Aos índios não se aplica o direito

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cesareio (positivo), “mas podem fazer suas leis próprias”. A lei, conforme à dos índios, pode ser aplicada quando o seu fim for benéfico.

O terceiro artigo é uma clara alusão ao problema da guerra justa e alicerça a resposta nas leis sobre o cativeiro, promulgadas por D. Sebastião e D. Filipe I.

“El Rei D. Sebastião que está em glória, no ano de 1570 fez lei que os bra- sis não pudessem ser cativos, senão em guerra justa feita com autoridade sua, a qual lei depois no ano de 87 confirmou e estendeu um pouco mais El Rei D. Filipe I, mandando que nenhum brasil pudesse ser cativo, senão tomado em guerra justa”229.

O cativeiro dos índios era lícito quando estes eram tomados em guerra justa e, do mesmo modo, os índios que participavam ao lado dos portugueses nessas guerras, podiam tomar índios contrários como cativos. Mas, perante as leis apre- sentadas, “em favor da fé e conversão da gentilidade do Brasil”, não podiam “os brasis” ser feitos cativos, ainda que tomados em guerra justa, feita por rebelião deles.

À inquirição sobre o cativeiro dos índios, cativos de outros, tomados em guerra injusta, não podiam passar para outro dono, mas restituídos ao primeiro: “a razão é porque o tal seria furto manifesto, pois se tomava injustamente peça alheia”. No caso de não poder ser devolvido, ficava automaticamente forro.

À quinta questão, informam ter sido anulada a provisão de Luís de Sousa, por ser injusta e contrária às provisões reais. Os índios descidos do sertão na compa- nhia de algum branco não deveriam ficar na sua posse nem ao seu serviço, pois este não tinha quaisquer direitos sobre eles.

A sexta resposta confirma a premência de se promulgar uma petição para proibir a compra de qualquer índia cativa quando casada ou amigada com índio livre. Mesmo em caso de ser índia-de-corda, pela união matrimonial com um índio forro, ficava livre da morte e não podia ser vendida nem adquirida. Se isso se verificasse, o marido podia revoltar-se e matar o vendedor e o comprador, o que geraria uma onda de reacção e violência.

Relativamente à necessidade de se prover a colónia com um administrador eclesiástico, aconselham o monarca a ordenar ao que desempenhava o cargo (pre- lado de Pernambuco), que escolha um clérigo de sua confiança, subordinado ao seu governo, por ser prejudicial “haver muitas cabeças independentes”.

Por fim, acatam a sugestão dos Capuchos, para que se façam repúblicas nas povoações que se erigirem, “conforme a grandeza de cada uma delas e todas subordinadas a uma mesma cabeça”.

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O envio deste memorial ao Reino pelos Capuchos demonstra que o papel dos missionários no Pará não era de passividade face aos problemas da sociedade e, especialmente, do índio. As questões que levantaram sobre o cativeiro lícito e ilí- cito, a “guerra justa” e injusta e o alerta para determinadas situações, ainda mais desumanas, como era, por exemplo, o caso do cativeiro da mulher dos índios for- ros, revela que os Franciscanos intervinham junto do poder central em questões de natureza político-social, numa atitude que se pode considerar precursora.

As respostas dadas fazem supor uma certa relação de causa-efeito, ao reverem as posições legais e jurídicas estabelecidas, chegando-se a propor ao monarca a promulgação de novas provisões e a anulação de outras consideradas injustas.

Os Capuchos de Santo António, instalados oficialmente no Pará desde o esta- belecimento do comissariado, em 1617, mantiveram-se junto dos órgãos do poder, actuando nos vários sectores da vida pública, aspecto que não é difícil de entender nos primeiros tempos da colónia, dada a escassez de homens letrados e de pensamento.

A importância deste documento para a história dos Capuchos no Grão-Pará e Maranhão é a possibilidade de um maior entendimento sobre esse período ini- cial da sua vida missionária. Ainda antes da chegada daquele a quem chamaram “o Hércules da Capucha”, Frei Cristóvão de Lisboa, os Franciscanos foram actuantes e protagonistas privilegiados do processo histórico naquelas paragens.

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A CUSTÓDIA DE SANTO ANTÓNIO DO MARANHÃO