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ANTECEDENTES DA INSTALAÇÃO DO COMISSARIADO (1615-1617) “Não há naquelas partes, porto fechado Tudo são braços de mar, em que

O COMISSARIADO DA PROVÍNCIA DE SANTO ANTÓNIO DE PORTUGAL NO MARANHÃO E PARÁ

2. ANTECEDENTES DA INSTALAÇÃO DO COMISSARIADO (1615-1617) “Não há naquelas partes, porto fechado Tudo são braços de mar, em que

podem entrar e sair por onde quiserem, e assim, são de pouco efeito, fortale- zas. E a maior de todas é os grandes matos e o estar bem com os naturais, para o que importa muito irem religiosos a que eles têm muito respeito e pelo muito que fizeram nas almas e farão sempre”185.

Alexandre de Moura

No Relatório Sobre a Expedição à Ilha do Maranhão e Expulsão dos Franceses, enviado à Corte em 24 de Outubro de 1616, Alexandre de Moura depois de arti- cular algumas considerações de caracter economicista e relativas ao povoamento do território a ocupar, analisa a situação defensiva do Maranhão com base no bom relacionamento com os índios.

O reticulado das terras maranhenses, cortado por uma interminável quanti- dade de braços de rios, igarapés e canais fluviais apresentava-se para o estratega militar como um “mar coalhado de ilhas de número infinito”, sem qualquer pos- sibilidade de fortificação eficaz que prescindisse da boa relação com os índios. Estes eram as verdadeiras fortalezas, e para chegar ao seu entendimento eram necessários religiosos, a quem os índios respeitavam e ouviam.

184Jaboatão, Op. cit., p. 125.

185“Relatório de Alexandre de Moura Sobre a Expedição à Ilha do Maranhão e Expulsão dos Franceses”, Lisboa, 24 de Outubro de 1616, in A.B.N.R.J., Vol. XXVI, 1905, pp. 195 ss.

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“A ordem missionária também opunha padres a índios, mas, aos olhos dos próprios índios, o missionário participava da natureza supranatural dos xamãs e dos heróis culturais, mais do que dos homens comuns”186.

Carlos de Araújo Moreira Neto

A única defesa possível tinha que passar pelo estreitamento de relações de paz com os íncolas, processo que implicava a sua conversão e consequente aldea- mento, viabilizados pelo missionário. O enquadramento dos índios numa socie- dade do tipo da colonial estruturava-se, simultaneamente, em termos de vida política (a missão como “pólis”) e de vida cristã (a missão como doutrina). Evangelizar era conquistar almas; conquistar almas era criar vassalos de Sua Majestade. Evangelização e sociabilização andavam de mão dada nesta estratégia. Ao tornar-se cristãos, os índios tornavam-se participantes de um modus vivendi dito civilizado, em moldes europeus, com uma aparelhagem de valores culturais, religiosos e civilizacionais ao estilo do Velho Mundo. Necessidade política, estra- tégia militar e vontade de salvar pagãos formaram uma tríade a que se somava a necessidade do sistema produtivo, as razões economicistas, a avareza do colono. Em conjunto, determinaram uma forma de viver baseada nas células populacio- nais indígenas formadas pelos índios aldeados. Nelas eram considerados livres, porque já não poderiam ser comprados nem resgatados, sujeitando-se, no entanto a servir os moradores e as obras régias, em moldes que nem sempre os favoreciam. No entanto, face à orgânica dos adventícios, a missão ainda funcio- nava como um reduto protector:

“Ao criarem estes espaços de liberdade limitada e controlada, objectiva- ram civilizar os grupos étnicos locais, mas terminaram por oportunizar a sobrevivência de milhares de indivíduos em meio às raízes escravocratas”187.

Arno Alvarez Kern

A afirmação da soberania portuguesa em cada nova parcela de território era sustentada na “civilização” da gentilidade, de modo a integrar os índios no pro- cesso político-social de sentido urbano, conferindo-lhes um sistema de valores

186Carlos de Araújo Moreira Neto, Índios da Amazónia-De Maioria a Minoria (1750-1850), Petrópolis, 1988, p. 25.

187Arno Alvarez Kern, “Acções Evangelizadoras e Culturais de Missionários Portugueses e Espanhóis no Rio da Prata”, in Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, Vol. II, p. 473.

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culturais e religiosos de raiz cristã. Converter o “silvícola” era trazê-lo para um quadro de cidadania, onde o índio servia a Coroa, servindo a Deus, mas não sendo cidadão de facto. De qualquer modo, aproximando referências de concepção espi- ritual, era mais fácil chegar ao entendimento racional. A conversão era o acto de aproximação por excelência.

No antigo estado maranhense a realidade foi semelhante à de qualquer outra parcela do território brasílico. Colonizar, evangelizar e sociabilizar foram as três vertentes de uma mesma pirâmide.

Vencidos os franceses em São Luís, em 1614/15, e criado o núcleo de Santa Maria de Belém em 1616, dois novos pólos de feição luso-brasileira iniciavam o processo de urbanidade. Fixar moradores e autoridades governativas locais, lan- çar as bases da subsistência económica, impedir o ataque dos estrangeiros, foram preocupações imediatas dos governantes lusos. Servidos pela espada, necessita- vam do serviço da cruz. Brancos e índios constituíam uma seara promissora de grandes colheitas, a que os missionários não queriam faltar. Unidas as vontades, ora temporais, ora espirituais, políticos e missionários deram início ao estabeleci- mento efectivo dos seus representantes:

“Para todos estes bens se conseguirem e lograrem convém que Sua Majestade mande logo povoadores, soldados, gente casada, oficiais mecânicos de todos os ofícios, que quanto mais souberem de seu ofício, tanto melhor, lavradores estes que levem filhos e filhas, mulheres para os solteiros, com que casarão muito bem e eles povoarão melhor, que estão solteiros e são mais de duzentos homens. Devem de ir gados e alguns escravos da Guiné e religiosos, quais convém para coisa tamanha”188.

O autor, anónimo, desta Relação das cousas que há, se tem visto e achado nas

terras e suas ilhas do Pará e Rio Amazonas, datada de cerca de 1617, alguns meses

após a fixação dos portugueses em Belém, sintetiza, num parágrafo, as peças fun- damentais para o incremento do novo núcleo de ocupação amazónica: os mora- dores, os soldados, os artífices, as mulheres casadoiras, o gado, os escravos negros e os missionários. Dentro da mesma linha dos relatos da época, agora numa visão menos eufórica da realidade, com um sentido pragmático expresso, o redactor da “relação” enfatiza ainda a qualidade da terra (“a imensidão e grandeza das terras, das ilhas, dos rios, das fontes é tamanha”), das riquezas minerais (ouro, prata, pérolas... “disto há grandes novas e demonstrações de as haver”); dos habitantes (“o gentio se vai pacificando e folga com a comutação e vem com tudo o que se

188Relação das Cousas que há, se tem visto e achado nas terras e suas ilhas do Pará e Rio Amazonas de 19 meses a esta parte, c. 1617, B.A., MS. 50/V/3442.

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lhe diz”); da fauna e da flora das suas múltiplas espécies, nas variadas madeiras e nas sempre almejadas águas salutíferas e bons ares (“a largura da terra é grandís- sima e a das ilhas infinita e os ares, de maneira que por eles e pelas boas águas não se viu morrer homem de enfermidade”).

No relato sucinto, mas esclarecedor, das potencialidades da terra grã- paraense, o autor alude à conversão dos índios, sugerindo a ida de missionários e valorizando a tarefa evangélica:

“O que mais vale que tudo e não tem preço são as almas de tanta infini- dade de gente que mostram toda a facilidade e grande esperança de se bapti- zarem porque são pacíficos e se deixam comunicar e o procuram por si e entregam os filhos para lhos doutrinarem”189.

No mesmo sentido, Caldeira Castelo Branco, ao tomar posse do fortim do Presépio, primeiro marco do domínio lusitano na bacia amazónica, apercebeu-se de que a verdadeira conquista começava no trato com o “infinito gentio mui doméstico”190.

O governador prioriza a ida de missionários e sugere os Franciscanos: “Primeiramente religiosos para a conversão das almas de que há centenas de milhares. Mostram-se afeiçoados a Capuchos pelo que deles lhes dizem os índios do Maranhão”191.

Caldeira Castelo Branco Da mesma ideia de integrar o índio no vasto plano de colonização lusa atra- vés da catequese comungava Gaspar de Sousa (“há muito mister naquela con- quista mais religiosos para o acrescento dos índios aldeados”). O próprio gover- nador propôs ao Rei que se fundasse no território do Norte uma nova custódia franciscana, e sugeriu a subida da Custódia de Olinda à independência, em rela- ção à Província-mãe de Portugal.

Por seu lado, Jerónimo de Albuquerque habituado ao trato com os Capuchos, que desde Guaxenduba o acompanharam até se retirarem para Pernambuco, soli- cita ao Reino novos missionários para o Maranhão, pedido que é satisfeito com o envio de quatro religiosos da Província de Santo António de Lisboa, “operários de tão exemplar ordem”, como os baptizou o governador.

189Ibid.

190Carta Régia de 4 de Setembro de 1616, Studart, Documentos, Vol. IV, p. 9. 191A.H.U., Pará – Papéis Avulsos.

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“Fez esta representação ao católico monarca, do que ele bem informado, e atendendo benigno a esta súplica, encarregou aos Padres da província de Santo António de Lisboa mandassem religiosos para aquela missão”192.

Governava a província franciscana em Lisboa, Frei Leonardo de Jesus, que exercera o cargo de custódio em Olinda. Este provincial nomeou para a nova mis- são, como comissário, Frei António de Merceana; com o título de vice-comissá- rio, Frei Cristóvão de São José; como confessores, Frei Sebastião do Rosário e Frei Filipe de São Boaventura.

Os quatro missionários partiram de Lisboa aos 22 de Junho de 1617, capita- neados por Manuel de Sousa d’Eça, que participara da expedição de Albuquerque em 1614. Aos 28 de Julho do mesmo ano desembarcam em Santa Maria de Belém, onde governava Francisco Caldeira Castelo Branco, e instalaram-se provi- soriamente no Forte do Presépio, de onde passaram para Una, local afastado do povoamento cerca de meia légua de distância. Aí edificaram “para seu decente recolhimento” a sua casa e ermida, onde cresceria o futuro convento, que veio a constituir uma das extremas da cidade193.

Nesse meio tempo deram início aos trabalhos de assistência aos brancos e catequese dos índios, de que conseguiram “um grande fruto na conversão de muitas daquelas almas”. Aos 16 de Junho de 1618 é-lhes concedida, por alvará régio, a costumeira ordinária de sustentação, constituída por uma pipa de vinho das Canárias ou da Ilha da Madeira, um quarto de vinho e outro de azeite do Reino, duas arrobas de cera lavrada (uma sob a forma de velas e outra em rolos), oito varas de burel para cada religioso e trinta alqueires de sal. Esta esmola régia era concedida por um prazo de cinco anos apenas, “visto não haver, por hora, rendimento na dita conquista donde o possam haver”194:

192Jaboatão, Op. cit., p. 126.

193Augusto Meira Filho analisa a disposição dos conventos na cidade de Belém, que pela sua situação estratégica lhe conferiram o sentido de urbe. Em 1706 via-se num extremo da colónia o Convento de Santo António dos Capuchos (“nos confins da cidade” no bairro da Campina); diametralmente oposto, o Hospício de São Boaventura dos frades da Conceição; em pontos intermédios os Carmelitas na Rua do Norte, os Jesuítas junto ao Forte e, cerca da Matriz, os Mercedários.

“Sente-se na formação desses núcleos religiosos o sentido de protecção material e espiritual que eles representavam na face da cidade, afastados, fortalecidos e em posição de garantir a penetração para a floresta e irradiar a planificação, a abertura de vias de acesso, os caminhos primitivos marcando o traçado inicial de Belém que ainda hoje perdura”. Cf. Evolução Histórica da Cidade de Belém, II Vol., Belém, 1976, p. 453. Sobre a sua instalação no Forte e posterior passagem para o hospício de Una, ver, Berredo, Op. cit., § 443; Jaboatão, Op. cit., p. 126; Manuel Barata, Op. cit., p. 40; Ernesto da Cruz, “Os Capuchos de Santo António do Pará”, in Revista de Cultura do Pará, Vol. I, Belém, nº 4, p. 85.

194Convento dos Capuchos do Pará. Alvará da sua Fundação, I.A.N./T.T., Chancelaria de Filipe II, Lº. 43, fl. 103 vº, Ver Anexo Documental, doc. 1.

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“Eu El Rei faço saber aos que este alvará virem, que havendo respeito aos religiosos Capuchos que residem na conquista do Grão-Pará, para irem a ela por meu mandado, aos serviços que satisfaçam a Deus e a mim, na conversão do gentio e aumento de nossa santa fé católica, que é o que mais me move a sustentar e em servir a dita conquista, e convir terem casa em que rendam ordinária, para celebrar os ofícios divinos e ajuda de sua sustentação, e serem naquelas partes necessários para o dito efeito, hei por bem e me praz de lhe fazer mercê por esmola, que por conta de minha Fazenda, se lhe ordene na dita conquista, uma casa e igreja de madeira em que vivam e celebrem os ditos ofícios”195.

D. Filipe II A 20 de Julho do mesmo ano receberam autorização oficial para catequizar os ameríndios, conforme atesta Mathias Kiemen no seu estudo sobre a política

195Ibid.

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indianista na Amazónia Colonial de Seiscentos, The Indian Policy of Portugal in

Amazon Region 1614-1693196.

Em 1617, com a chegada destes missionários Franciscanos, deu-se início à etapa da fixação definitiva da Ordem dos Menores nas terras maranhenses e do Grão-Pará. Estava instalado o Comissariado da Província de Santo António de Portugal no Maranhão, cujo labor, com maior ou menor intensidade, duraria até à independência do Brasil, à sombra da província-mãe de Lisboa.