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A EMERGÊNCIA DA CUSTÓDIA E A FIGURA DE FREI CRISTÓVÃO DE LISBOA (1622-1647)

A CUSTÓDIA DE SANTO ANTÓNIO DO MARANHÃO E GRÃO-PARÁ

1. A EMERGÊNCIA DA CUSTÓDIA E A FIGURA DE FREI CRISTÓVÃO DE LISBOA (1622-1647)

“Considerando quão importante é ao serviço de Deus e meu enviarem-se desse Reino religiosos àquelas partes para tratarem do aumento de nossa santa fé e da conservação do gentio nela e celebrarem os ofícios divinos, me pareceu que estes religiosos devem ser de São Francisco da Província de Santo António a que compete aquela comissão, os quais irão com o novo governa- dor em número que parecer necessário”230.

D. Filipe II A 20 de Junho de 1618 por ordem régia de D. Filipe II, o governo do Maranhão é separado do Brasil, pelo que se devia proceder à nomeação do novo governador – “pessoa que tenha conhecimento do gentio e daquelas terras” – e que, com ele, seguissem religiosos da Província de Santo António de Portugal.

As capitanias do Norte iriam começar a descrever um destino próprio, inde- pendente do Sul. Marcadas por um espaço geográfico pleno de complexidades físicas que tornavam difíceis as comunicações com Pernambuco, necessitadas de

230Carta Régia de Filipe II, ordenando que o Governo do Maranhão seja separado do Brasil; Nomeia governador que deverá ser Acompanhado por religiosos de São Francisco da Província de Santo António, pub. in Documentos Para a História do Brasil e Especialmente a do Ceará, Ceará, 1909, Vol. II, pp. 190-191. Ver Anexo Documental, doc. 2.

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recursos e auxílios eficazes, numa época em que os interesses estrangeiros não permitiam fraquezas, a ligação ao Reino impôs-se de forma natural.

E ao riscar-se o futuro do novo território político, colou-se, na certidão de nascimento, o curso da sua existência ao dos próprios Franciscanos. A simulta- neidade da nomeação governamental à dos religiosos Capuchos revela a impor- tância da organização das duas esferas de actividade, institucional e religiosa, esta, representada pelos frades de Santo António.

Pedia-se ao provincial que nomeasse missionários “de virtude exemplar, de experiência e letrados”, para acompanhar o primeiro governador do Maranhão. Recaíu a escolha em Frei Cristóvão de Lisboa, uma das mais notáveis figuras de Seiscentos, que deixou o seu nome e a sua obra irrevogavelmente ligadas à História do Maranhão e Grão-Pará.

Aos 30 de Abril de 1622, os Capuchos de Santo António de Portugal comuni- cam à Corte a sua escolha e pedem que lhes seja concedido o viático, no valor de 350$000 réis, para a viagem apostólica, respondendo o Conselho da Fazenda aos 4 de Maio seguintes:

“E assim se viu uma portaria de Sua Majestade por que ordenava se visse neste Conselho e se consultasse o que parecesse, advertindo que Vossa Majestade tem ordenado que desta Província, se mandem seis religiosos ao Maranhão e quatro ao Pará”231.

Frei Cristóvão de Lisboa foi eleito em capítulo provincial para o cargo de cus- tódio da Província de Santo António de Portugal no Maranhão e Grão-Pará.

Logo a 9 de Junho de 1622 é felicitado por D. Duarte, membro do Conselho de Estado, que, de Madrid, lhe augura grandes sucessos no desempenho do cargo, aumentos da Igreja naquelas partes “e grandes maravilhas na fundação da fé em elas”:

“Espero que Vossa Paternidade me avise assim de sua partida, como de tudo o mais que na jornada e na terra lhe suceder, com o mais que Vossa Paternidade julgar que eu posso desejar saber dela”232.

D. Duarte

231Religiosos da Província de Santo António que Vão ao Maranhão e Pará, 4 de Maio de 1622, A.H.U., Consultas das Partes, nº 34, f. 29 vº. Ver Anexo Documental, doc. 4.

232Carta de D. Duarte a felicitar Frei Cristóvão de Lisboa pela escolha que seus confrades fizeram para exercer o lugar de Custódio do Maranhão, 9 de Junho de 1622, I.A.N./T.T., O.F.M., Província de Santo António, Província, Mç. 6. Ver Anexo Documental, doc. 6.

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Com o mesmo intuito, escreve-lhe, de Vila Viçosa, o Duque de Caminha, e Marquês de Vila Real, em que se congratula pela fundação da nova custódia e pelo serviço que a mesma fará no Maranhão233. Em atitude similar à de

D. Duarte, pede a Frei Cristóvão de Lisboa que lhe envie notícias sobre o desco- brimento do novo Estado e outras coisas de interesse:

“E porque sou afeiçoado às coisas daquela terra, estimarei muito escre- ver-me Vossa Reverência muitas vezes, dando-me novas do descobrimento dela e de suas curiosidades, que Vossa Reverência mui bem saberá notar e descobrir”234.

Duque de Caminha

233O Duque de Caminha era protector dos Franciscanos Reformados. Doara-lhes uma pequena ilha na foz do Rio Minho, barra da Vila de Caminha, para erigirem o Conventinho denominado “Casa da Ínsua”. 234Carta do Duque de Caminha para Frei Cristóvão de Lisboa sobre a fundação da Custódia do Maranhão, 7 de Maio de 1626 (?), I.A.N./T.T., O.F.M., Província de Santo António, Província, Maço 6.

A carta tem a data de 1626, devendo tratar-se de erro, uma vez que, nesse ano, Frei Cristóvão já se encontrava há cerca de dois anos no Maranhão.

18. Planta da Cidade de Belém do Grão Pará, representando-se a Igreja e Convento de Santo António.

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Estes dois documentos revelam-se de particular importância, pois clarificam os destinatários da correspondência enviada do Maranhão por Frei Cristóvão, conforme é também revelado nas cartas que escreveu ao irmão Manuel Severim de Faria, Chantre de Évora.

Em 14 de Setembro de 1622 é promulgado o alvará régio da nomeação dos padres Capuchos para o Estado do Maranhão e Pará, que se comunica ao gover- nador, prelados eclesiásticos, ministros, oficiais da Fazenda, da Justiça e da Guerra, às câmaras das vilas e lugares povoados e a povoar, a todos os seus oficiais presentes e futuros, assim como a todas as outras pessoas , fidalgos, cavaleiros, soldados, homens bons e do povo.

A todos se informa que foram escolhidos os Religiosos da Província de Santo António do Reino de Portugal, “que já na mesma conquista aonde foram, com aprovação d’El Rei meu senhor e pai que haja glória”, e a exemplo do que vinham fazendo nas mais partes do Estado do Brasil, se mostraram zelosos na salvação das almas desses povos, sendo certo que o seu hábito, religião e virtude fariam com que naquela missão cumprissem a dilatação da fé e conservação do gentio.

O instrumento legal regulava o trabalho dos missionários em vários itens: plantar a santa fé, introduzir bons costumes e doutrina cristã nos gentios e natu- rais da terra; encaminhar os moradores no cumprimento do culto divino para que servissem de exemplo aos recém-convertidos, a fim de abraçarem a religião católica romana, principal obrigação da Coroa, “pois foram o primeiro intento com que, a tanto custo de minha Fazenda, mandei fazer a conquista do dito Estado e povoá-lo e lançar fora os hereges que o iam inficionando”.

“Mando aos ditos governadores e mais ministros e pessoas eclesiásticas e seculares declarados no princípio deste alvará que ora são e ao diante forem, que hajam os ditos religiosos por enviados por mim às terras do dito governo para o dito efeito da conversão dos fieis e que os deixem à dita missão dando- -lhes toda a ajuda e favor”235.

O alvará régio atesta, de forma inequívoca, a pretensão de serem os Capuchos de Santo António a tomarem em mãos a tarefa de evangelizar e converter os índios do Estado maranhense, exigindo-se das autoridades municipais, governa- tiva, e de todas as pessoas com cargos no Estado e na Igreja que facultassem os meios e as condições necessárias ao desenvolvimento da missão.

Apesar da clareza da política oficial em apoio dos Capuchos, o primeiro cus- tódio quis assegurar-se do êxito das tarefas apostólicas, sobretudo, perante o pro- blema dos índios, sobre quem pesavam graves atentados aos direitos humanos.

235Alvará de nomeação dos Padres de Santo António para o Maranhão, 14 de Setembro de 1622, I.A.N./T.T., Chancelaria de Filipe III, Livro XI, fl. 35 vº-36. Ver Anexo Documental, doc. 7.



Antes de partir para o Maranhão, na companhia de Francisco Coelho de Carvalho, nomeado por patente de 23 de Setembro de 1623236, Frei Cristóvão de

Lisboa deu início às suas funções de superior da Missão Franciscana, ainda no Reino, requerendo à Coroa que regulamentasse as condições de administração temporal dos índios, ao mesmo tempo que denuncia a situação de mau trata- mento a que estavam sujeitos sob o jugo dos portugueses.

Cerca de 17 de Outubro de 1623, envia um requerimento a Filipe II, em que apresenta queixas contra os capitães que maltratam os índios, explorando-os, alu- gando-os, fazendo-os trabalhar sem pagamento e roubando-lhes as mulheres e os filhos.

Pela datação deste pedido oficial feito por Frei Cristóvão à Coroa, numa acu- tilante denúncia dos seculares pelo modo como tratam os índios, esse documento é, no seguimento do “Memorial dos Capuchos do Pará”, anteriormente tratado, um dos mais antigos testemunhos da História do Estado do Maranhão e Pará, da luta em prol dos direitos humanos e da liberdade dos índios237.

Os religiosos, pela voz do custódio, informam o monarca que os portugueses “alcançaram as capitanias das aldeias dos gentios daquelas partes”, ou seja, a sua administração temporal, o que é lesivo do serviço de Deus e do Rei, porque os tais capitães, movidos pelo lucro, oprimem os índios, alugando o seu trabalho, e fazem-nos trabalhar excessivamente, ficando com os seus pagamentos. Aos índios tiram-lhes as mulheres e as filhas – possivelmente para as práticas de amancebia – e impedem-nos de fazer as suas roças, de que se mantêm.

Relativamente ao plano catequético, não lhes dão tempo para irem à dou- trina, no que concorrem, os capitães, contra o serviço da Coroa, que tem como principal intuito introduzir os gentios na fé cristã.

Como reacção a estas violências, os índios têm fugido para o interior dos ser- tões, onde transmitem aos outros as condições em que vivem junto aos portu- gueses, a quem tomam como inimigos mortais, pelo que a terra fica sem cultivo, o que provoca fomes, uma vez que também não há quem vá à caça ou à pesca. Sem índios, a colónia fica sujeita aos invasores estrangeiros, dado que aqueles são imprescindíveis na sua defesa, por conhecerem a floresta onde só eles podem pelejar por terem essa prática, sendo as armas dos portugueses de pouco efeito. A conquista da terra só tinha sido possível porque os brancos tinham usufruído do apoio e colaboração dos índios “amigos”:

236Nomeação de Francisco Coelho de Carvalho, primeiro Governador do Estado do Maranhão, 23 de Setembro de 1623, I.A.N./T.T., Chancelaria de Filipe III, Livro 18, pp. 154 vº. – 155.

237Requerimento do Custódio e mais religiosos do Maranhão a Filipe II, queixando-se dos capitães que exploram os Índios, alugando-os, fazendo-os trabalhar e chegando a tomar-lhes mulheres e filhos, s.d. [ant. A 17 de Outubro de 1623], A.H.U., Maranhão, Cx. 1. Ver Anexo Documental, doc. 8.

O documento é anterior à data mencionada, pois esta refere-se ao despacho lançado à margem pelo Conselho da Fazenda. Ver Anexo Documental, doc. 8.

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“Porque os tais capitães como a experiência o tem mostrado, assim em toda a costa do Brasil como nas Índias de Castela, tendo supostos os olhos no proveito temporal, por cujo respeito pretendem as sobreditas capitanias sem ordenado algum, vexam os índios por diversos modos, alugando-os e fazendo-os trabalhar com excesso e demasia e tomando-lhes o preço e jornal de seu trabalho, e chegam a tomar-lhes as mulheres e filhas, tratando a todos com aspereza e rigor imoderado”238.

Para atalhar a esta situação calamitosa, o custódio pede que cesse a adminis- tração dos capitães sobre os índios, por ser em detrimento do serviço de Deus e de Sua Majestade.

Atendendo ao teor do requerimento de Frei Cristóvão de Lisboa e à sua anti- guidade como instrumento legal relativo ao Estado do Maranhão, revela-se uma das facetas do custódio que mais pautou a sua actividade enquanto missionário: a do lutador incansável em prol da liberdade dos índios.

Logo nos primórdios do seu mandato, Cristóvão marca uma posição em favor dos direitos humanos dos naturais do Maranhão, definida pela denúncia das violações cometidas pelas autoridades governativas dos novos núcleos colo- niais recém-formados, numa atitude corajosa para a época.

Ao mesmo tempo que delatava os inescrupulosos capitães, Frei Cristóvão de Lisboa valorizava a pessoa do índio, ao relembrar ao monarca a sua importância na economia, na sociedade e na defesa da colónia. Em termos concretos, o custó- dio acusa a exploração feita ao trabalho dos índios, a quem se sonegavam os pagamentos dos serviços, e se alugavam como se fossem mera propriedade, para além de se aproveitarem das mulheres e das filhas, em total desrespeito pela con- dição humana.

Aos maus tratos seguia-se a fome pelo impedimento de cultivarem as roças. À fome e à exploração respondia-se com a fuga, a inimizade aos portugueses e à generalização da desconfiança. Com a ausência do braço indígena, onde toda a economia repousava, a sociedade fragilizava-se, para além de ficar exposta aos índios não pacificados, a quem não se podia combater sem os “mansos”.

Frei Cristóvão de Lisboa, ao denunciar estas arbitrariedades feitas aos ame- ríndios, ainda no Reino, cunha o seu percurso como missionário, de forma inde- lével, numa atitude que irá manter até ao fim dos seus dias.

Este requerimento feito ao Conselho da Fazenda pelo custódio, baseia-se nas informações dos outros confrades no Pará, sobretudo Frei António da Merceana, primeiro comissário.

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239Ver Anexo Documental, doc. 9.

19. Mapa do Maranhão com a planta da Cidade de São Luís, c. 1817.

O ex-governador, Gaspar de Sousa, aprova a petição239, e da corte chega o

alvará régio a conceder a administração temporal dos índios aos Capuchos de Santo António.

Aos 15 de Março de 1624, Filipe II ordena que se retire aos seculares a admi- nistração das aldeias de índios e se a entregue aos Franciscanos, para o que se dis- põe, lhes sejam concedidas as ordinárias competentes. No texto do documento, transcreve-se literalmente o conteúdo do requerimento do custódio, tornando direito positivado, em forma de lei, as sugestões dos missionários Capuchos, no que revela, ainda mais, o relevo da Ordem junto da Corte e a interacção entre a vontade dos religiosos e a deliberação política:

“Fui informado que as pessoas a que fiz mercê das capitanias de algumas aldeias nas partes do Maranhão, vexam os índios por diversos modos, obri-

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gando-os a trabalhar com excesso e demasia, não lhe pagando o preço e o jor- nal do seu trabalho, tomando-lhe mulheres e filhos (...)”240.

D. Filipe II Ordena que se retirem as administrações aos capitães e se entreguem aos clé- rigos. É uma profunda alteração no campo administrativo da sociedade colonial, de importância superior no relacionamento futuro entre as várias forças em questão. Autoridades municipais e governativas, religiosos dos vários institutos e congregações, governantes locais e do poder central, teólogos e juristas vão ence- tar a partir daí um conflito sem tréguas, que tem tradução profunda na vida e na sociedade do Estado do Maranhão daquela época.

A 25 de Março de 1624, Frei Cristóvão de Lisboa e dez companheiros deixa- ram o Tejo em companhia do primeiro governador, Francisco Coelho de Carvalho, com destino a Pernambuco e a São Luís do Maranhão.

Aí chegado, o custódio entabula uma luta constante para fazer valer as suas prerrogativas, concedidas por direito. Quando tentou promulgar o alvará que lhe concedia o governo temporal dos índios, estalou a contenda. Durante os onze anos, em que durou a sua actuação no território, o custódio viajou incansavel- mente entre São Luís, Belém, Ceará e Pernambuco. Fez explorações ao longo do Rio Tocantins e lançou as bases definitivas da missionação e da doutrina francis- canas.

2. OS SERMÕES DE FREI CRISTÓVÃO DE LISBOA EM DEFESA DO