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2 CATOLICISMO E O MITO FUNDADOR DO BRASIL

2.4 Mito fundador do Brasil

2.4.1 Deus e mito fundador do Brasil

2.4.1.2 A sagração da história

Se o primeiro elemento da produção do mito fundador brasileiro, a natureza, nos tira da história, o segundo a ela nos devolve, mas numa história providencialista ou teológica, ou seja, como realização da vontade de Deus. Para além das comuns divisões do tempo em cósmico (natural e circular) e épico (histórico), concebe-se também o tempo bíblico, no qual se desenha o drama do afastamento do homem de Deus e a promessa de reconciliação permitida por Deus.

Esse tempo, de concepção judaica, seria a expressão da vontade e do plano divinos. A idéia cristã de história seria, portanto, a operação de Deus no tempo. Dentre as várias características dessa visão da história enumeradas por Chaui, destacamos a providencial, porque manifesta a vontade de Deus no tempo, dotando-o de sentido e finalidade; a profética, na qual se oferece aos homens a possibilidade de conhecer a estrutura secreta do tempo e de ter acesso ao plano divino; a apocalíptica, em que se anuncia e se revela o fim dos tempos e o cumprimento das promessas divinas; e a universal, pois não é a história de um povo ou império qualquer, mas a do Povo de Deus, que criou o homem e salvará a humanidade eleita.

O tempo do fim descrito pelos profetas bíblicos seria a consumação dos propósitos divinos, a completude da promessa de Deus. Entre os sinais disso, de acordo com os relatos proféticos, há a ascensão do Quinto Império, sob a ação do Messias, e a instalação de um reino de mil anos de abundância e felicidade, após a batalha entre Cristo e o Anticristo. A completude da história universal, no entanto, desde o começo do cristianismo gerou disputas e controvérsias, entre os que dividiam os tempos anunciados em Velho e Novo Testamento, e os que consideravam o Novo Testamento uma profecia da Segunda Vinda do Messias no fim dos tempos, quando, finalmente, a história seria completada.

O profético reinado terreno de mil anos de paz, antes do Juízo Final, constituía a esperança milenarista, resgatada ciclicamente nos intervalos temporais em que se uniam os tempos sagrado e profano, ou seja, nos encontros entre o tempo interpretado como o da promessa divina e o tempo mundano. A busca cristã por um sentido para as desordens do mundo levava a contínuas tentativas de deciframento da temporalidade, enfim, a tentativas de se conhecer “a estrutura secreta do tempo e de seu sentido numa interpretação apocalíptico-

escatológica da história profética e providencial”. 91 Marilena Chaui aponta como a mais

importante contribuição a esse tema a elaboração extraída da obra do abade calabrês Joaquim de Fiori, escrita no século XII.

O Reino de Mil Anos de felicidade, que antecede a batalha final entre Cristo e o Anticristo, é a obra de um enviado especial, o Enviado dos Últimos Dias. Esse enviado é a contribuição de Joaquim de Fiori para explicar a ordem do tempo e se desdobra em duas personagens: o Papa Angélico – depois interpretado pelos joaquimitas como o Imperador dos Últimos Dias – e os homens espirituais – duas novas ordens monásticas de preparação para o tempo do fim, a ordem dos pregadores ativos e a dos contemplativos espirituais. 92 A plenitude do tempo será assinalada, como profetizara Daniel,

pelo aumento da espiritualidade ou do conhecimento no mundo e pela instituição do Quinto Império ou da Jerusalém Celeste, quando “todos os reinos se unirão em um cetro, todas as cabeças obedecerão a uma suprema cabeça e todas as coroas rematarão num só diadema.” Um só rebanho e um só pastor, profetizados por Isaías, são a condição para a realização do futuro.93

Essa perspectiva muito em voga na época do achamento do Brasil 94 vai dar à terra já

identificada como o paraíso reencontrado a condição de sinal de cumprimento das profecias milenaristas. “Eis por que, ao escrever aos reis católicos, Colombo explicara que, para seu feito [a chegada à América], não haviam sido necessários mapas-múndi nem bússola, mas lhe bastaram as profecias de Isaías e a do abade Joaquim.” A mesma idéia é conservada por franciscanos e parte dos jesuítas, identificados com as duas ordens religiosas profetizadas por Fiori para o tempo do milênio. As grandes navegações e o achamento do Novo Mundo foram vistos como sinais claros do cumprimento das profecias de Fiori. Também validavam- se, com tais feitos, as profecias de Isaías sobre a dispersão do povo de Deus aos quatro ventos, e a de Daniel sobre o esquadrinhamento de toda a terra no tempo do fim. 95

A evangelização foi vista como a tarefa sagrada a ser desempenhada como cumprimento da profecia de que Deus viria a reunir todas as nações e línguas, e elas viriam a Ele. No século XVII, o Padre Antônio Vieira foi um dos que interpretaram minuciosamente os versículos proféticos de Isaías e Daniel à luz do lugar de Portugal nessa missão especial de Deus. Vieira foi autor de História do Futuro ou Do Quinto Império do Mundo e Esperanças de Portugal, em que demonstrou que Portugal foi profetizado para realizar a obra do milênio, instituindo o Quinto Império e tendo à frente o Encoberto, um rei que seria o último avatar de

91 Op. cit., p. 74.

92 A autora lembra que é desse Enviado e da ordem monástica espiritual que trata o célebre romance O nome da rosa, de Umberto Eco.

93 Op. cit., p. 74-75.

94 No estudo Mil anos de felicidade (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), o historiador Jean Delumeau

comenta as visões da idéia de paraíso e do milenarismo no decorrer da história e a influência disso nas sociedades.

El Rei Dom Sebastião. Constituinte da história de Portugal, essa crença foi resgatada séculos depois por Fernando Pessoa em sua obra mítica Mensagem, na qual escreveu poemas com títulos como: D. Sebastião, O Quinto Império, As Ilhas Afortunadas e O Encoberto. De O Quinto Império, extraímos os versos:

Grécia, Roma, Cristandade, Europa – os quatro se vão Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade Que morreu D. Sebastião? 96

O achamento do Brasil num tempo de supostos cumprimentos de profecias milenaristas nos insere na história tanto pela porta providencial, que prega que a nossa história já está escrita, faltando apenas o agente que deverá completá-la no tempo, quanto pela porta profética, que diz que nossa história está prometida, mas inteiramente por fazer. Em ambas as leituras somos agentes da vontade de Deus e nosso tempo é o da sagração do tempo. “A história é parte da teologia”, conclui Chaui.97