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3 A PECULIAR REGIÃO DO RIO GRANDE DO SUL

3.6 O projeto missioneiro

3.6.2 Jesuítas e o Estado espanhol

A ação jesuítica nas terras colonizadas pela Coroa espanhola diferenciou-se da ação em terras portuguesas tanto na relação com o poder quanto na própria realização dos preceitos inacianos. A experiência espanhola foi tão bem sucedida, que terminou por ameaçar a soberania do próprio Estado que lhe dava tutela. Contribuíram para tal sucesso a complexa estrutura administrativa das missões espanholas, a pedagogia interna de relativo respeito ao índio e aos seus valores e também a utilidade dos aldeamentos como pontos estratégicos de defesa das fronteiras, com direito a armamentos e treinamentos militares. Somente por esses fatores já percebemos uma distinção radical da fracassada e ambivalente postura assistencialista dos portugueses em relação aos indígenas no Brasil.

Como garantia o Tratado de Tordesilhas, as terras do atual Rio Grande do Sul pertenciam na época – século XVII – à Espanha e, por isso, foram ocupadas parcialmente pelos jesuítas espanhóis. Essas povoações seguiam o projeto amplo das reduções planejadas que compunham a Província Jesuítica do Paraguai, instalada em 1607 e cuja ação se espalhou pelas áreas hoje fronteiriças do Paraguai, Argentina e Brasil. Quando se aborda esse tema, reduções e missões são comumente usadas como sinônimos, mas há distinção nos termos. Os nativos, ou gentios, deveriam ser reduzidos à fé católica e à vassalagem ao monarca, de acordo com o projeto colonialista. Como explica Júlio Quevedo:

Dessa forma, os padres partiam da redução, a reduccio (ou seja, o local, o recolocar o índio no verdadeiro lugar), para atingir outro patamar: a evangelização (compreendendo a missão, a missio, enquanto ato de evangelização). Os jesuítas transformam o espaço (criado em áreas de domínio espanhol), no ideal da Cristandade, atingindo com esse processo o âmago do “Ser índio”, que passa a se transmutar em “Ser índio reduzido”.148

Os índios eram reduzidos a “pueblo”, ou seja, ao modo de vida urbano e civilizado, razão pela qual “pueblos” e “povos” também designavam essas comunidades. Na concepção do missionário jesuíta, a terra do índio passava de terra arrasada, ou morada do diabo e de suas feitiçarias, para terra sagrada, ou Terra da Promissão, a partir da conversão. Assim, “o trabalho do índio reduzido passa a dignificá-lo como cristão – membro da cristandade, novo povo eleito – num processo de autonegação do ócio.” 149 As missões jesuíticas também foram

a solução cristã para a anterior prática oficial da “encomienda”, em que os índios em comunidade eram subjugados pelos colonizadores para o trabalho na lavoura. O colono beneficiado pagava um tributo à Coroa por isso, mas não remunerava os índios, devendo fornecer a eles apenas assistência material e religiosa. Em resumo, “o trabalho encomendado era uma forma de escravização do indígena”.150

O primeiro ciclo missioneiro no futuro Rio Grande do Sul ocorreu entre 1626 e 1641, com a Redução de Tape, à margem esquerda do rio Uruguai e envolvendo as bacias dos rios Ijuí, Ibicuí e Jacuí, além de parte do planalto central da região. Nesse intervalo, começam a chegar às reduções as violentas bandeiras paulistas, com o intuito de capturar os índios já treinados para o trabalho e vendê-los como escravos em outras capitanias brasileiras. O sucessivos ataques dos bandeirantes obrigaram a um recuo dos povos reduzidos para a margem oposta do rio Uruguai. No entanto, em 1641, a Coroa espanhola, a pedido dos jesuítas, consentiu em armar melhor os guaranis-missioneiros, e estes saem vitoriosos na batalha de M’bororé, quando mostram poder de resistência e fazem cessar as ofensivas paulistas.151

Sem a ameaça dos bandeirantes, inicia-se um segundo ciclo missioneiro no atual solo gaúcho, quando são criados os Sete Povos das Missões: São Nicolau, São Miguel, São Borja, São Luís Gonzaga, São Lourenço, São João Batista e Santo Ângelo, entre 1682 e 1706. A prosperidade e o desenvolvimento amplo das missões marcam essa fase, que vai até o conflito gerado pelo Tratado de Madri (1750), quando, em troca da Colônia do Sacramento, no Prata, a Coroa espanhola cede aos portugueses o território ocupado pelos Sete Povos e fazendo eclodir, com a reação dos índios, as Guerras Guaraníticas. Voltaremos a examinar esse episódio no próximo capítulo, por isso, passamos agora a comentar aspectos sociais, econômicos e políticos das reduções em solo brasileiro.

149 Idem, p.16. 150 Ibidem, p. 65.

Sempre tendo por base o pensamento doutrinador de Inácio de Loyola, os jesuítas passaram a orientar e fiscalizar os índios reduzidos no sentido de trabalharem em regime comunitário. Sandra Pesavento descreve:

A terra, assim como todos os meios de produção, pertencia à comunidade. Demarcavam-se lavouras para as famílias e outras para a comunidade. Nestas últimas, todos eram obrigados a trabalhar determinados dias da semana a fim de garantir sustento dos incapazes (órfãos, viúvas e doentes) e ocupantes de cargos de administração. Toda a colheita era arrecadada para armazéns públicos e daí distribuída por funcionários para as famílias. Os Sete Povos tornaram-se importantes centros econômicos, onde, além de erva-mate e criação de gado, realizavam-se trabalhos de fiação, tecelagem, metalurgia, ofícios vários e trabalhos artísticos, com destaque na arquitetura e escultura.152

O sucesso desse modelo de produção também repercutia em grandes vantagens para a Coroa espanhola. Além de constituírem uma sociedade economicamente auto-sustentável, os guaranis-missioneiros eram considerados vassalos diretos do rei, devendo pagar tributos diretamente ao Tesouro Real. Quando convocados, deviam prestar serviços de ordem militar às províncias hispânicas e defender os núcleos espanhóis contra as investidas luso-brasileiras.

153 Essa última atribuição destacava a importância dos aldeamentos enquanto instituições de

fronteira.

No plano político-administrativo, as missões foram caracterizadas pela influência de duas tendências, espanhola e guarani, “que se fundiram num amálgama nascido de uma situação transicional de aculturação.” 154 Cooptados pelos missionários, os caciques foram

destacados como capitães do exército guarani, membros dos cabildos indígenas e líderes das tribos cristianizadas. Além disso, recebiam o título de “Don”, produzindo uma elite política aculturada. Missionários e caciques conduziram um dirigismo político que viabilizou um raro projeto realista de desenvolvimento econômico indígena na América colonial hispânica. Tudo isso num contexto geral de fracasso das tentativas de libertação dos indígenas da escravidão e da morte.

No aspecto social, a ação jesuítica combateu o costume da poligamia e da promiscuidade entre os indígenas, propondo a construção de moradia particular para cada núcleo familiar e instituindo a monogamia cristã como regra. Casamentos eram realizados em grupos, em datas especiais. E todos os esforços eram dedicados à educação.

A escola era totalmente dirigida para a vida prática. Pode-se dizer que, durante muitos anos, foi principalmente profissional, utilitária. Enquanto 152 PESAVENTO, Sandra. Op. cit., p. 11-12.

153 KERN, Arno Alvarez. Missões: uma utopia política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982, p. 31. 154 Idem, p. 261.

certas crianças se especializavam nos trabalhos de madeira ou tecelagem, outras aprendiam a contabilidade, pois a redução tinha necessidade de fiscais, controladores e contadores. Para as meninas, tinham-se criado escolas de costura e bordados, onde se aprendia a confeccionar os ornamentos de igreja e roupas de festas.155

Essa experiência ímpar dos jesuítas a serviço da Coroa hispânica rendeu, em vários períodos da história, distintas interpretações. Ainda no século XVIII, filósofos iluministas anticlericais acusavam os jesuítas de terem criado um império teocrático baseado no comunismo e na escravidão do indígena, apenas em nome de uma vontade de poder. No século XX, os missionários foram apontados como precursores do marxismo, por terem tolerado a comunidade da terra, organizado a distribuição de bens e uma economia sem moeda numa suposta República Guarani independente. Também são identificados como precursores do federalismo internacional, do comunismo e da democracia integrais, num modelo a ser imitado pelo homem contemporâneo. Mas, como alerta Kern, “tanto uma como outra corrente minimizam os aspectos religiosos e a própria situação política de uma época nascida das lutas da Contra-Reforma.” 156

Kern observa que a organização política dos povos missioneiros buscou sempre um equilíbrio entre o trono e o altar, entre a sociedade espanhola e a indígena, entre os interesses da frente de expansão da colonização hispânica e os objetivos evangelizadores da ação missionária. Entretanto, ao pretender para os guaranis um espaço de liberdade no mundo colonial ibero-americano, as Missões se transformaram em uma utopia. Assim, na rede de conflitos luso-espanhóis e diante das novas perspectivas históricas do século iluminista, a desintegração das Missões “indica claramente que não havia mais espaço possível para esta utopia política.” 157

O fim da experiência missioneira espanhola decreta uma possível fundação do Rio Grande do Sul como território marcado por uma cultura potencial. Que mito fundador surgiria desse fim de uma utopia? É o que vamos analisar a seguir, sob a ótica da literatura de Erico Verissimo.

155 LUGON, Clovis. A república “comunista” cristã dos guaranis. Tradução de Álvaro Cabral. 2.ed. Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 212.