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Na condução desta pesquisa, a estrutura narrativa que adotamos possibilitou que, a cada capítulo, fossem extraídas considerações e conclusões parciais, que se tornam redundantes se repetidas aqui. A crescente construção teórica interdisciplinar guiou-nos para sucessivas e interligadas etapas de aprendizagem acerca dos temas relacionados à formação de uma sociedade e de uma cultura específica. Esse processo, aliás, resultou em imprevistos caminhos, a exemplo do exame das relações entre o tradicionalismo gaúcho e o mito fundador do Rio Grande do Sul, que não constava no projeto inicial da pesquisa. Essas e outras possíveis conexões apontadas conduzem a amplos e fecundos universos de investigação, cujo aprofundamento escapou aos propósitos deste trabalho, mas que convidam a novas investidas de estudos acadêmicos.

Apesar da obviedade, devemos ressaltar o quanto tal processo proporcionou-nos uma abertura conceitual sobre os temas analisados, quebrando idéias estereotipadas do senso comum e incentivando outras abordagens interdisciplinares. Para usar uma terminologia pertinente ao âmbito religioso investigado, essa pesquisa serviu-nos como um rito de iniciação para um novo patamar de observação das realidades regional e universal.

Compreendemos que estudar o aspecto religioso do processo de formação de uma sociedade significa entrar no âmago de sua cultura. Talvez nenhum outro sistema de

explicação da vida ofereça meios tão sintéticos para a apreensão do etos de um povo quanto a religião, da qual o mito emerge como forma mental primeira e célula-matriz de incontáveis manifestações culturais. Talvez por pertencer ao universo das crenças e dos inquestionáveis dogmas de fé, a religião seja subestimada pela ciência em sua capacidade de oferecer pistas relevantes às disciplinas de estudo do homem.

Como mostramos, a religião surge como uma resposta à natural necessidade humana de organizar e dar sentido à própria existência. Diante das incertezas do cotidiano, dos aterradores fenômenos da natureza e da iminência da morte, cedo o homem primitivo buscou uma explicação em potentados invisíveis, elevados à condição de deuses controladores do fluxo vital. A solidariedade na crença dessas divindades, a separação entre o sagrado (porque maravilhoso e distante do comum) e o profano e as práticas decorrentes disso são fatores apontados por Durkheim como vinculados ao social, pois a irmandade entre os membros de uma mesma crença legitima uma sociedade. Por isso, muito antes da sofisticação do pensamento filosófico e do conseqüente aparecimento da ciência, a religião, com seu pensamento mítico, já esboçava uma conduta social, delimitando acessos e interdições. Assim, estudar a religião para além de sua manifestação dogmática, deve ser uma busca da ciência. E o mito oferece a isso ricas possibilidades.

Narrativa da origem de todas as coisas, o mito fundamenta a religião, porque dá conta do nascimento dos deuses, do mundo e do homem. O mito estabelece modelos de conduta, pois sempre reporta a uma origem. Um país, uma região ou um povoado possui determinadas características devido ao modo como veio a existir, ou seja, devido ao seu mito fundador, onde residem suas potencialidades de manifestação, ou, como pensou Levi-Strauss, suas estruturas fundamentais. A depender do mito de origem, uma determinada cultura se manifesta de modo específico. Essa foi a principal construção teórica que guiou o percurso assumido por nosso estudo. Se uma identidade está relacionada a um processo histórico, e se a história, por sua vez, deriva da base potencial do mito, então, ao estudarmos o mito fundador e suas inflexões internas, estaremos reconhecendo as premissas de uma cultura e de uma determinada identidade.

Nosso problema de pesquisa inicial buscou estabelecer as relações possíveis entre os mitos fundadores do Brasil e do Rio Grande do Sul, pelo estrito viés religioso. Isso porque, embora seja o componente racional das religiões, nem sempre o mito está vinculado à esfera do sagrado. O uso dos mitos antigos na moderna psicanálise, por exemplo, sequer tangencia o religioso. Para além da definição do corte epistemológico, o viés religioso adotado aqui também teve o objetivo de mostrar, como já assinalamos, o quanto a religião pode ser uma

rica fonte de pesquisa para as esferas das ciências humanas, conjugadas de modo interdisciplinar, como adotamos. Destacamos também a importância da literatura – que forneceu nosso corpus de trabalho – como manancial de símbolos coletivos, talvez da mesma qualidade de uma mitologia estruturada.

De início, constatamos que, ao ingressar tardiamente no território brasileiro e, por isso, ter uma fundação mítica diferenciada, o Rio Grande do Sul também tenderia a ser o mais diferenciado estado da federação nacional. Das versões levantadas dos mitos fundadores, o brasileiro segundo a pesquisa de Marilena Chaui, e o gaúcho de acordo com o romance histórico O Continente de Erico Verissimo, reconhecemos em comum o elemento mítico do paraíso, mas em instâncias opostas, de assimilação e de destruição, respectivamente. Como idéia eminentemente religiosa, o paraíso foi ponto de partida da maioria das conjecturas estabelecidas entre os dois mitos, e daí, entre as culturas do Brasil em geral e a do seu estado mais meridional. Examinar com rigor essa idéia revelou-se um surpreendente veio de conexões com as mais básicas manifestações das sociedades analisadas.

A atitude política foi uma das mais destacadas diferenças entre as duas categorias em análise. A associação entre a Igreja e o Estado, no processo de colonização do Brasil, pode ter dado origem a uma cultura que legitima o sofrimento e a aceitação passiva de um poder externo, o que remete à idéia do Deus católico. Apontamos isso com base nos dados históricos coletados na nossa pesquisa, que referendaram a perspectiva mítica de o brasileiro estar imerso num eterno éden a ser descoberto, condição que convida à inércia própria da idéia de paraíso. No caso gaúcho, a ruptura com as representações de Deus no mito fundador, evocando o pensamento anticlerical de Nietzsche, produziria o homem livre do jugo divino, e mais propenso a uma ação pontuada pelo livre-arbítrio, do qual seria derivada a ação política.

De fato, o destaque político atribuído ao Rio Grande do Sul é comprovado pela sua própria história e pelos estudos dos autores que citamos. Contudo, o alto teor simbólico do mito, com sua diversidade possível de leituras, ao mesmo tempo em que oferece sintéticas abordagens do potencial de uma cultura, também exige o confronto rigoroso com outras formas de análise. Por isso, reconhecemos que nossa interpretação, embora adequada ao objetivo inicial, necessita de outros enfoques e considerações, antes de ser validada cientificamente, o que escapa aos propósitos meramente de identificação deste estudo.

A inclusão do tradicionalismo gaúcho no foco da nossa investigação mostrou-se adequada ao intuito de apontar relações entre o Rio Grande e o Brasil pelo viés mítico- religioso, exatamente porque se trata da mais objetiva e divulgada manifestação cultural da região em análise. Todavia, advertimos que as relações apontadas entre culto à tradição e

religiosidade degradada é um tema que, reconhecidamente polêmico, exige aprofundamento teórico e confrontos metodológicos em outros estudos interdisciplinares. Seria no mínimo instigante explorar esse filão, pois lançaria novas luzes sobre esse sempre recorrente campo de batalhas entre seguidores e críticos que é o tradicionalismo. A peculiar nostalgia do paraíso perdido, que embasa o gauchismo, soa claramente distante da crença geral brasileira de “país do futuro” e de “país sem memória”, típica, talvez, de uma nação que está sempre por se fazer, o que sustenta mais uma das diferenciações apontadas pelos elementos dos mitos fundadores.

Nosso estudo não teve a intenção de mostrar o Rio Grande do Sul como um estado avesso à religião ou um possível palco do ateísmo, até porque a realidade mostra uma certa semelhança com o resto do país em termos de hegemonia católica e diversidade de crenças. Antes de tudo, o objetivo foi identificar uma diferença de atitude em relação à vida, a si mesmo e ao transcendente por parte do gaúcho, no quadro geral brasileiro. Acreditamos ter cumprido esse propósito, na medida em que discutimos extensamente as nuances religiosas do gaúcho.

De nosso estudo, porém, surge a hipótese de que a postura religiosa do gaúcho é diferente da postura brasileira em geral, no tocante à participação individual nas questões de fé. É como se um católico gaúcho, comprometido desde o mito fundador com o livre-arbítrio, apostasse mais em sua capacidade de resolver os próprios problemas do que o católico de outras partes do país, este talvez mais confiante no Deus provedor ou no Estado tutelar, pois, afinal, diz a voz do povo que “Deus é brasileiro”. Essa hipótese, derivada de nossa investigação, exige um estudo em separado, com pesquisa de campo ou outras investigações metodológicas, de modo a mensurar, ainda que qualitativamente, o nível de religiosidade do gaúcho de uma mesma crença que outro brasileiro.

Ainda sobre os desdobramentos do percurso de nosso estudo, há um questionamento importante. Se o mito fundador é um conjunto de potencialidades simbólicas aptas a se reorganizarem em momentos críticos da história para se manterem atuantes e sempre vinculadas à origem, como esse mito pode ser definitivamente alterado ou mesmo rompido? Como uma sociedade pode ser reinventada, a ponto de produzir outro mito de origem? No estudo Mito do eterno retorno, Mircea Eliade examina questões como essa, que dão conta da relação entre o mito, com sua estrutura circular e repetitiva, e a história, ou seja, o campo aberto dos acontecimentos imprevisíveis no tempo. A difícil relação do Rio Grande do Sul com a história moderna, segundo a ótica de Sandra Pesavento citada no capítulo seis de nossa pesquisa, parece sinalizar a força do mito e do passado circular, que associamos ao

tradicionalismo como manifestação. A possibilidade de “fuga” do mito para a história, portanto, pode resultar em outro estudo acadêmico.

Enfim, essa multiplicidade de novos rumos sugeridos pela pesquisa que aqui encerramos, devido ao cumprimento dos objetivos estabelecidos de início, comprovam a riqueza do foco mítico-religioso no exame de questões fundamentais de uma determinada cultura. História, antropologia, sociologia, psicologia e outras disciplinas mais podem se entrecruzar sob a regência simbólica do mito, ou sob a égide de relevantes narrativas literárias, de modo a ajudar a desvendar o fascínio humano que sustenta o viço de mitos arcaicos na atualidade e os torna “reais”. Como numa jornada mítica arquetípica, chegamos ao fim dessa etapa sabendo que novos desafios nos aguardam antes de se completar um talvez longo processo de revelações perfeitamente adequadas aos critérios científicos.