• Nenhum resultado encontrado

6 A PARTE E O TODO NUM VIÉS MÍTICO-RELIGIOSO

6.6 O lugar da religião

Ainda sobre a teoria de Jung, observamos que o tradicionalismo é um “ismo”, ou seja, um sistema de idéias que pode ocupar na sociedade o lugar que normalmente cabe a uma crença metafísica e à imagem de Deus. Convém examinarmos, assim, as relações entre religião e tradicionalismo. Conduziremos essa análise sob dois enfoques, ambos vinculados

331 CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,

2000, p.94.

332 GOLIN, Tau. A ideologia do gauchismo. Porto Alegre: Tchê, 1983, p. 20.

333 SILVA, Deonísio da. O Estado mais politizado do Brasil. In: GONZAGA, Sergius; FISCHER, Luís Augusto

(org.). Op. cit., p 130, 133.

334 PILLA VARES, Luiz. A ideologia gaúcha dos farrapos ao getulismo. In: GONZAGA, Sergius; FISCHER,

ao conflito entre o homem e Deus do mito fundador, que produz uma sociedade mais política e menos religiosa, como mostrou Erico Verissimo nas páginas de O Continente: primeiramente, a partir da perda do sagrado do mito fundador, e depois, a partir da adaptação da fragilizada Igreja à cultura local, como forma de se manter ativa.

O mito de origem que adotamos aqui para o Rio Grande do Sul, pelo endosso de Erico, dá conta da destruição de um espaço sagrado marcado pela cruz e do conseqüente domínio do punhal guerreiro do homem livre. Em O sagrado e o profano, Mircea Eliade fala de uma oposição entre o homos religiosus, crente numa realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, santificando-o e tornando-o real, e entre o homem a-religioso, que nega a transcendência e reconhece-se como único agente da História. Para este estudioso, o homem moderno a-religioso:

[...] não aceita nenhum modelo de humanidade fora da condição humana, tal como ela se revela nas diversas situações históricas. O homem faz-se a si próprio, e só consegue fazer-se completamente na medida em que se dessacraliza e dessacraliza o mundo. O sagrado é o obstáculo por excelência à sua liberdade. O homem só se tornará ele próprio quando estiver radicalmente desmistificado. Só será verdadeiramente livre quando tiver matado o último Deus. 335

No entanto, na visão de Eliade, este homem a-religioso e descrente do transcendente, como o gaúcho de Erico, descende do homo religiosus, e, queira ou não, é também obra deste e constitui-se a partir das situações assumidas por seus antepassados. “Em suma, ele é o resultado de um processo de dessacralização.” 336 Mas as realidades que recusou e negou,

como uma herança, seguem assediando este homem moderno aparentemente liberto das “superstições” dos seus antepassados. Conforme Eliade, este homem:

Para obter um mundo próprio, dessacralizou o mundo em que viviam seus antepassados; mas, para chegar aí, foi obrigado a adotar um comportamento oposto àquele que o precedia – e ele sente que este comportamento está sempre prestes a reatualizar-se, de uma forma ou outra, no mais profundo de seu ser. [...] O homem moderno que se sente e se pretende a-religioso carrega ainda toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados. 337

Eliade aponta algumas vias de manifestação de um “amontoado mágico-religioso, mas degradado até a caricatura”, que caracteriza o perfil “religioso” dos sem-religião. Uma dessa vias em que comportamentos religiosos são camuflados ou degenerados é o misticismo político, algo parecido com o que Jung atribuiu a uma substituição de Deus pelo Estado. Eliade reconhece em movimentos como o comunismo, por exemplo, uma estrutura mitológica

335 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 165. 336 Idem, p. 165.

comum a diversas religiões. A sociedade sem classes de Marx e o fim das tensões históricas encontrariam precedente exato no mito da Idade do Ouro, “que, segundo múltiplas tradições, caracteriza o começo e o fim da História.” 338 Outros movimentos laicos e mesmo anti-

religiosos podem repetir uma estrutura mitológica, e o autor cita o nudismo, em cuja ideologia é possível decifrar vestígios da nostalgia do paraíso e o desejo de restabelecer o estado edênico de antes da queda do homem. Ora, não seria o tradicionalismo um movimento que reedita a Idade do Ouro e segue a nostalgia do paraíso? Seus rituais, disciplinas e culto a heróis não se assemelham a ritos religiosos? Por isso, na perspectiva de Eliade, podemos reconhecer o tradicionalismo como uma possível manifestação de religiosidade degradada de um povo que sempre tendeu a negar a transcendência. Isso ajuda a explicar a longevidade e permanência desse movimento que sobrevive aos ataques dos estudiosos encarregados de revelar as ideologias ocultas. Assim, o tradicionalismo seria uma forma alternativa e não- religiosa de lidar com o sagrado. 339

No estatuto do primeiro CTG constava que a entidade não desenvolveria qualquer atividade político-partidária, racial ou religiosa. 340 Porém, isso não impediu uma ligação

estreita do movimento ao Governo do Estado. Segundo Tau Golin, em estudo de 1983, “o atrelamento do MTG ao Estado é concreto é claríssimo. Os anais dos Congressos Tradicionalistas registram a dotação de verbas para a sua realização. Neles compareceram os últimos governadores e seus secretários.” 341 Tampouco com a Igreja Católica deixou de

haver alianças, numa relação que merece ser examinada aqui, até porque também mostra o funcionamento do mecanismo de permanência do mito fundador. E mais: pode ajudar a confirmar nossa suposição da profunda identificação do tradicionalismo com um meio alternativo – ou, às vezes, o único meio – de lidar com o aspecto religioso.

José Hildebrando Dacanal associa o crescimento vertiginoso do número de CTGs na década de 1970 a uma crise dos valores religiosos, principalmente os da Igreja Católica, que começa ali a renegar suas posições conservadoras. Este fato, aliado a uma pasteurização cultural estrangeira, ditada pelo centro do país, e à influência da televisão, com novas formas culturais, teria levado parcelas consideráveis de grupos dirigentes de pequenas e médias

338 Op. cit., p. 168.

339 Em abril de 2006, o Centro de Cultura Nativista Nova Raça, de Canoas, foi excluído do MTG por permitir

inovações nas músicas e nas danças tradicionalistas. Em reportagem sobre o assunto, o jornal Zero Hora (Fandango da discórdia, de Itamar Melo e Marcelo Gonzatto, edição 14850, de 23 de abril de 2006) traz a seguinte declaração do historiador Tau Golin: “Como uma igreja, o MTG tem seus dogmas, mas esses textos refletem a visão de algumas pessoas sobre o que é ser gaúcho”. Dogmas quase religiosos, portanto, foram o motivo da desfiliação do CTG.

340 LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Op. cit., p. 58. 341 GOLIN, Tau. Op. cit., p. 74.

cidades do interior gaúcho, inclusive de descendentes de italianos e alemães, a “abrigar-se sob o capim santa-fé dos centros de tradições gaúchas.” 342 Acrescenta Dacanal:

Ali, na idealização de um passado que não era o deles e a rigor nem existira, [...] estes grupos reinventam um espaço, por provisório que fosse, em que se reencontram e recongregam. E foi assim que, em muitos lugares, os CTGs substituíram, como ponto de encontro e convivências, as igrejas, as canchas de bocha, os antigos clubes, as associações de canto, etc. 343

A adesão aos CTGs de descendentes de imigrantes alemães e italianos intrigou inclusive os tradicionalistas. Vale destacar que, após a fundação do pioneiro 35 CTG, o próximo a surgir tenha sido na cidade de Taquara, cidade de colonização alemã, ainda em 1948. Na visão de Ruben Oliven, a criação desse CTG, logo após a Segunda Guerra, foi uma forma de “seus fundadores afirmarem sua brasilidade e sua gauchidade”. 344 Oliven lembra

ainda que os estudiosos da colonização assinalam que os imigrantes estrangeiros idealizavam o gaúcho como tipo socialmente superior. O cavalo, símbolo do gaúcho, era na Europa apanágio de distinção social. “A identificação do ‘colono’ com o ‘gaúcho’ significava, portanto, uma forma simbólica de ascensão social.” 345

No entanto, sob o prisma do nosso estudo, podemos acrescentar a esses fatores um componente mítico: a idéia do CTG também envolve o desejo de restaurar o paraíso que permeia o movimento imigrante. Ou seja, o abandono do país natal e a busca de melhores condições de vida em outra nação remetem ao mesmo mito fundador gaúcho em que um paraíso-berço é abandonado e cabe ao homem reconstruí-lo no futuro. O mítico “país da cocagna” que acendeu as esperanças dos expatriados italianos, por exemplo, pode ter encontrado ressonância no papel do CTG de restaurar simbolicamente a Idade do Ouro. A nostalgia do passado imigrante faz eco ao culto a velhas tradições gaúchas. Então, se o CTG simboliza um mundo perfeito reconstruído e se pode ser uma alternativa para a prática religiosa, devido ao seu substrato ritualístico, não estranhamos o fenômeno de descendentes de imigrante se sentirem acolhidos ali. Ainda mais se tudo convergir para a formação de uma identidade comum. Pela compartilhada noção mítica de perda do paraíso, podemos compreender a sintonia entre imigrantes e gaúchos natos, estes vistos, muitas vezes, pelos outros brasileiros, como “estrangeiros”.

Examinemos outra relação da Igreja com o tradicionalismo, agora pelo viés da adaptação. Numa sociedade de fraca religiosidade, como a gaúcha, cabe à Igreja buscar os

342 DACANAL, José Hildebrando. Origem e função dos CTGs. In: GONZAGA, Sergius; FISCHER, Luís

Augusto (org.). Op. cit., p 86.

343 Idem, p. 86.

fiéis adaptando-se aos costumes deles, como o fez o fictício Padre Atílio Romano na Santa Fé de Erico Verissimo. Se o tradicionalismo pode funcionar como uma religiosidade alternativa, é de se esperar que a Igreja procure cooptar seus ritos, mesmo que profanos. Se o gaúcho não procura Deus, então que Deus se humanize e seja gaúcho. Ideólogo do tradicionalismo, Barbosa Lessa ilustra como a Igreja Católica se mostrou sensível à cultura regional. Anos antes de o Vaticano permitir a adoção de idiomas nacionais para os ritos eclesiásticos, o Padre Paulo Aripe, apelidado pelos tradicionalistas de “Padre Potrilho”, instituía uma original Missa Crioula, absolutamente à gaúcha na sua peculiar liturgia:

[...] poncho-pala, copo de chifre, lampião, o entrecruzamento de lenços maragatos e lenços chimangos simbolizando a paz de Cristo, o entoar de canções campeiras, etc. Simultaneamente, o Padre Pedro Luís revivia a figura histórica de Nossa Senhora Conquistadora – protetora do beato Roque Gonzáles ao adentrar pela primeira vez o território das Missões – como a Virgem Tradicionalista. E o Bispo de Uruguaiana, D. Luís Felipe de Nadal, criava a sacramentava sua Prece Gaúcha: “Com licença, Patrão Celestial, vou chegando e cevando o amargo de minhas confidências porque, ao redor da madrugada e ao descambar do sol, preciso camperear por outras invernadas e repontar do Céu a força e a coragem para o entrevero do dia que passa. [...] Ajuda-me Virgem Maria, primeira prenda do Céu. Socorre- me São Pedro, capataz da estância gaúcha. E que tua vontade, Patrão Celeste, leve a minha de cabresto pra todo o sempre e até à Querência do Céu, amém.” 346

De qualquer modo, o tradicionalismo parece ser um modelo de tradição inventada que, em sua constituição, atendeu em boa parte às necessidades de transcendência da sociedade gaúcha. O lar perdido da origem, sacralizado, foi elevado à condição de mito a ser cultuado; os antepassados ganharam a condição “divina”, ou de “entes primordiais”, no dizer de Mircea Eliade. Louvado por Barbosa Lessa, o seguinte trecho de uma poesia crioula de Apparício Silva Rillo é um exemplo de como os antepassados do gaúcho, no solo sagrado do pago de antigamente, serviram de modelo mítico primordial para os futuros habitantes da terra:

Os avós eram de carne e osso.

Tomavam mate, comiam carne com farinha, campereavam. Tinham impérios de flechilha e trevo

e famílias de bois no seu império. E eram marcas de fogo os seus brasões. Humanos como nós, os velhos tauras, mas de bronze e de ferro nos parecem esses campeiros que fizeram a História. Estátuas vivas de perenidade

mos pedestais do tempo e da memória. 347

346 LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Op. cit., p. 95.

Esse poema denota que o sagrado do tradicionalismo teria uma origem humana. Ou, de acordo com o pensamento de Jung, como mostramos no capítulo anterior, o “eu”, ou a “consciência”, ao assumir o trono vago de “Deus”, infla-se e eleva-se à condição de soberano do seu destino e senhor da história. Isso poderia produzir o culto ao Estado e à ação política, como expomos anteriormente, ou a subjugação do sagrado estabelecido pelo humano profano. Assim, a adaptação dos rituais católicos secularmente estabelecidos e dogmatizados aos elementos tradicionalistas, na citada Missa Crioula, não seria uma evidência desse poder maior do humano? Citado por Barbosa Lessa, outro trecho de poesia crioula, este de Jayme Caetano Braun, mostra uma possível descida do sagrado católico ao altar estabelecido pelo tradicionalismo:

Sala grande, chão batido onde passei minha infância, querido Galpão de Estância que foste um dia meu lar hoje aqui venho rezar saudoso dum teu afago, catedral xucra do pago, de joelhos no teu altar. Dizem até que São Pedro altas horas desce oculto celebrando estranho culto no teu altar, meu galpão. É o padroeiro do rincão que vem, pela noite grande, encomendar o Rio Grande na missa da Tradição! 348