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5 DEUS MORTO NO PAMPA

5.1 A sentença de Nietzsche

No mito fundador gaúcho, tanto segundo o panorama histórico já apresentado quanto conforme a visão de Erico Verissimo em O Continente, percebemos que uma espécie de éden religioso é destruído a partir de um confronto de forças entre as então reunidas Coroas espanhola e portuguesa e a Igreja, que rompia ali o pacto secular de colaboração com as potências ibéricas para ficar do lado dos índios em defesa da terra missioneira. Nesse episódio, a Igreja, e tudo o que ela representava, logicamente passava à condição de inimiga. A vitória das tropas aliadas e a posse dos Sete Povos decretava, por assim dizer, a vitória do homem branco conquistador sobre os jesuítas emissários dos valores dos céus. Num sentido mais imediato, Deus era vencido pelo homem em sua sanha conquistadora. E a história rio- grandense começava de fato sob o jugo do homem guerreiro contra Deus.

É válido ampliar esse episódio à luz da filosofia, uma vez que estamos buscando aspectos formativos do jeito de agir e de pensar de um povo. Temos aí, neste mito fundador, um quadro de conflito declarado entre valores baseados em princípios teocráticos e outros em intenções individualistas humanas. Ora, o fim da submissão relativa à crença numa determinada divindade e a conseqüente emergência da capacidade humana de tomar decisões é um tema que sempre despertou o interesse de pensadores, desde a antiga Grécia. Via de regra, quando mais teocrática for uma sociedade, menos liberdade de ação individual terá seus indivíduos. É o caso, por exemplo, de nações modernas como o Irã, em que o poder está diretamente vinculado a preceitos religiosos, gerando uma cultura de absoluta repressão a

quem ousar desobedecer ao cânone sagrado. Dentre os pensadores que diretamente atacaram a religião em defesa do livre-arbítrio humano, ninguém foi tão contundente quanto o alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). Indo mais além de Karl Marx, que considerava a religião um mal, rotulando-a de “ópio do povo”, Nietzsche proclamou: “Deus está morto”.

Leitor do também alemão Ludwig Feuerbach, de quem tomamos as idéias sobre o sofrimento contido no cristianismo, no primeiro capítulo dessa pesquisa, Nietzsche defendia um ideal de homem atento aos próprios instintos como forma de reagir à opressão e ao sofrimento da religião. A ferrenha oposição ao cristianismo foi um dos temas mais recorrentes na obra do filósofo, a ponto de ter publicado um livro chamado O anticristo. É muito conhecido o episódio do livro A gaia ciência, em que um louco, de lanterna em punho e à luz do dia, sai gritando em praça pública: “Deus morreu! Deus continua morto! E nós o matamos! [...] O que o mundo possui de mais sagrado e possante perdeu seu sangue sob nossa faca. [...] De que servem estas igrejas se são tumbas e monumentos de Deus?”. 212

Não cabe neste estudo detalhar a abrangência e a complexidade do sentido das idéias de Nietzsche acerca do fim de Deus, mesmo porque essa tarefa ainda gera controvérsias entre estudiosos da filosofia. Basta-nos aceitar que a anunciada morte de Deus pertence ao contexto de um pensamento que nega a ação sacerdotal do cristianismo. Escreve o autor: “É necessário dizer exatamente quem consideramos como os nossos antagonistas: os teólogos e todo aquele que tem sangue teológico em suas veias.” 213 Para o filósofo, o teólogo é um trapaceiro, cuja

influência faz inverter os conceitos de verdadeiro e falso. Assim, sob o jugo sacerdotal, o que é danoso à vida torna-se verdadeiro, enquanto o que a intensifica e exalta vira falso. Segundo Nietzsche, o cristianismo “fez um ideal do antagonismo de todos os instintos de autopreservação da vida saudável”. 214 O conceito cristão de Deus tornou-o a negação da

vida. E o pensador aponta o que seriam valores autenticamente humanos e verdadeiros:

O que é bom? – Tudo que aumenta a sensação de poder, a vontade de poder, o próprio poder no homem.

O que é mau? – Tudo que brota da fraqueza.

O que é felicidade? – A sensação de que o poder aumenta – que a resistência está vencida.

Não contentamento, porém mais poder; não paz a qualquer preço, mas guerra; [...]

O que é mais danoso do que qualquer vício? – A simpatia prática pelos fracos e falhados – o cristianismo... 215

212 NIETZSCHE, Friedrich Wilhem. A gaia ciência. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini e Norberto de

Paula Lima. São Paulo: Hemus, 1976, p. 133-135.

213 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O anticristo. Tradução de David Jardim Júnior. 4.ed. Rio de Janeiro:

Ediouro, 1985, p. 25.

214 Idem, p. 21. 215 Ibidem, p. 18.

Assim, a vitória do poder do homem contra a repressão dos seus instintos pelos dogmas cristãos era um baluarte das idéias de Nietzsche. Num dos muitos sentidos possíveis sobre essa declarada atitude do filósofo, reafirmamos a interpretação do historiador e especialista em filosofia Eduardo Rizatti Salomão acerca da morte de Deus decretada por Nietzsche, quando diz que:

[...] a validade de sua crítica está em seu questionamento à Teologia e à prática religiosa como instrumentos institucionais, mundanos, como sustentáculos do que chama de ideologia do sofrimento, que aterroriza o homem, invocando o castigo divino perante o pecador, diminuindo-o, negando a possibilidade de um homem livre dessa mácula. Da mesma forma o asceta e o sacerdote são vistos por Nietzsche como opressores por excelência, que em primeiro lugar negam a si, a sua condição natural, decretando uma conduta antinatural como o caminho a Deus, e em segundo lugar, são instrumentos de canalização do ressentimento, da intolerância e do fanatismo de seus fiéis. 216

Por essa ótica, a morte de Deus estaria relacionada diretamente a um confronto à teologia defendida pelos sacerdotes cristãos, com seu culto ao sofrimento e à anulação do potencial instintivo do homem. A partir do mito fundador em estudo, em cuja narrativa, por motivos mais políticos que teológicos os jesuítas foram vencidos, podemos reconhecer o surgimento de uma sociedade mais independente e guerreira que religiosa. Ao discutir a primordial religiosidade gaúcha, Jorge Salis Goulart, que declaradamente defende o lado português na fundação do Rio Grande do Sul, afirma que o rio-grandense nunca imitou o padre, mas sim o militar, e que o fracasso dos jesuítas no confronto missioneiro teria contribuído para o desprestígio dos sacerdotes. Acrescenta o autor:

Pode-se dizer que a formação social do Rio Grande do Sul foi uma luta contínua contra os jesuítas das Missões, desde os memoráveis reencontros em que os contingentes numerosos dos guaranis contrariavam a avançada portuguesa até a Colônia do Sacramento. [...] Verdade ou não, o certo é que os jesuítas se não livram do velho boato de terem instigado os índios contra o tratado de limites que entregava as Missões aos portugueses. [...] Era natural, pois, que o sentimento patriótico e guerreiro rio-grandense, a combater tanto tempo a figura do jesuíta, crescesse em redor dos chefes militares, diminuindo o prestígio do padre. 217

Façamos aqui um breve parêntese. Embora essa interpretação de Jorge Salis Goulart faça sentido em nossa discussão sobre o confronto com Deus a partir do mito fundador gaúcho, convém atentar para a já citada simpatia do autor pelo lado português da colonização

216SALOMÃO, Eduardo Rizatti. A morte de Deus e a idealização do homem segundo a ótica moral de

Friedrich Nietzsche. Disponível em: [http://www.consciencia.org/contemporanea/nietrizatti.shtml]. Acesso em: 24.02.2006.

do Rio Grande, desprezando a ação espanhola, e também para um outro comprometimento mais ideológico. O livro A formação do Rio Grande do Sul, de Salis Goulart, foi publicado em 1927, sendo apontado como a primeira tentativa de análise estrutural da história sulina. Para o historiador Mário Maestri, Salis Goulart era um jovem ideólogo do latifúndio e defensor da visão de uma sociedade gaúcha formada na base de relações democráticas no trabalho entre brancos e negros, ao contrário do processo brasileiro, marcado pela opressão. Maestri explica que Salis Goulart não teria inventado essa leitura, mas que teria sistematizado “com inteligência e criatividade, os mitos já existentes da ‘democracia pastoril’ e da ‘produção pastoril sem trabalho’”. 218 Observamos aí uma nítida revitalização do mito

fundador, em que figuram a liberdade de ação e a negação de possíveis autoridades instituídas. Como isso será abordado em outro capítulo, fechamos aqui o parêntese e voltamos à análise da morte de Deus.

Podemos supor que Erico Verissimo, validando sua proposta literária de um mito fundador gaúcho – e esta, por sua vez, estreitamente ancorada num processo histórico –, vá imprimir nos eventos subseqüentes da narrativa de O Continente a confirmação da morte simbólica de Deus ou de seus representantes enquanto instituição. Vamos conferir isso logo mais adiante, mas antes é necessário um exame de como a obra literária do escritor, na condição de arte conectada com uma determinada época, refletia e expressava valores simbólicos coletivos. Entramos, assim, no território de estudo da psicologia, em sua abrangência social.