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6 A PARTE E O TODO NUM VIÉS MÍTICO-RELIGIOSO

6.5 Mito fundador e ação política

No poema, o solo profanado dos índios missioneiros volta a se tornar sagrado com a expiação do sangue de Sepé, e o gaúcho nasce desse processo. É por esses arranjos simbólicos, improváveis no nível da racionalidade, mas reais sob o efeito das ideologias, que podemos supor outras combinações dos elementos do mito fundador gaúcho. A destruída sociedade teocrática, em que brancos e índios se irmanavam na condução dos rumos da comunidade, pode ter sido a mítica célula-matriz da tal escola de democracia que, depois, seria atribuída à convivência de patrões e peões nas estâncias. Mais ainda: pode ter gerado numa sociedade que valoriza o tradicionalismo o orgulho de ser herdeira de um modelo

326 GUTFREIND, Ieda. A historiografia sul-rio-grandense e o mito do gaúcho brasileiro. In: GONZAGA,

Sergius; FISCHER, Luís Augusto (org.). Op. cit., p 152.

327 BRAUN, Jayme Caetano. Missioneiro. In: Paisagens perdidas. CD produzido por Edson Campagna. Caxias

perfeito de ação política democrática – mesmo que esse modelo tenha sido destruído pela ação do luso conquistador. No dizer de Jean Delumeau, como destacamos anteriormente, o sentimento da perda do paraíso é compensado pela esperança utópica de realizar bem- aventuranças no mundo a ser vivido. Desse modo, ser um político hábil, honrado e exemplar seria uma forma de o gaúcho fazer jus ao seu passado missioneiro. Erico Verissimo abordou essa relação entre missões, utopia e política em artigo de cunho turístico que apresentava as regiões do Rio Grande:

Podemos [...] visitar rapidamente as ruínas das missões jesuíticas de São Miguel, a jóia dos Sete Povos. Mesmo derrocado como está, o templo dá uma idéia de sua antiga imponência. Construído em arenito avermelhado, foi o centro duma florescente civilização, espécie de teocracia que até hoje interessa os historiadores, levando-os a controvérsias apaixonadas. Devo dizer-lhe que estamos agora em plena Região Missioneira, cujos habitantes têm a reputação, não sei se merecida, de serem políticos astutos que sabem desconfiar, calar e esperar, gente matreira que – segundo uma explicação folclórica – herdou essas qualidades dos índios desta região e dos jesuítas, seus mestres e senhores. 328

Esse aspecto de uma habilidade política, que Erico Verissimo associa a uma herança missioneira e, portanto, ao mito fundador gaúcho proposto por ele em O Continente, produz uma distinção cultural que transcende as fronteiras do Estado. Os políticos gaúchos seriam diferentes, e o povo gaúcho seria mais politizado que o brasileiro em geral. Embora aponte novos rumos para essa crença comum, 329 o político em atuação Marcos Rolim admite a

existência e a propagação da mesma:

Repete-se normalmente que possuímos uma tradição política cuja singularidade teria nos garantido um perfil médio de homens públicos de outra cepa. Na base dessa expectativa ou mesmo das condições que se formaram na chamada “opinião pública” encontraremos uma outra noção, talvez mais arraigada, que sustenta a tese da maior politização do povo gaúcho. De fato, as duas proposições guardam entre si uma coerência lógica: um povo mais afeito à discussão dos temas de interesse público e, portanto, com uma dose de participação maior na esfera pública haveria de estar mais habilitado a selecionar seus próprios representantes. 330

Tal traço cultural distintivo, seja real ou construído ideologicamente, na perspectiva mítica que estamos adotando aqui, pode ser reflexo do já citado conflito original entre o

328 VERISSIMO, Erico. Um romancista apresenta sua terra. In: GONZAGA, Sergius; FISCHER, Luís Augusto;

BISSÓN, Carlos Augusto (org.). Nós, os gaúchos / 2. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade / UFRGS, 1998, p. 247.

329 Marcos Rolim defende que a tradição de lutas da história gaúcha tenha estimulado um perfil diferenciado de

políticos, mas observa um nivelamento crescente dessa tendência particular em relação ao modo nacional da ação política. A supremacia de um modelo nacional estaria derrubando, assim, a distinção regional.

homem, com seu livre arbítrio, e Deus, representado na doutrina cristã de aceitação passiva do destino e do sofrimento. Esse enfoque evidencia o tema da religião na formação de uma cultura. Em relação ao mito brasileiro, Marilena Chaui comenta: “Posta no momento em que o mito fundador produz a sagração do governante, a política se oculta sob a capa da representação teológica, oscilando entre a sacralização e a adoração do bom governante e a satanização e a execração do mau governante.” 331 Para Chaui, isso não impede de as camadas

populares perceberem o Estado brasileiro como o “poder dos outros”, fortalecendo-o e afastando-o de si e dos seus interesses. Como conseqüência, a inclusão política, ou a cidadania democrática, fica descartada. O brasileiro das camadas populares tende a “entregar a Deus” ou ao Estado a resolução dos problemas cruciais da sociedade.

No Rio Grande do Sul, em que até hoje o tradicionalismo fortalece o senso comum de ver-se como um país à parte, “que é brasileiro por opção”, 332 o mito fundador traz entre seus

elementos a negação de Deus e a valorização da ação humana. Foi por uma ação política que se deu o ataque aos Sete Povos, destruindo aquela utopia teocrática. Por essa via, não seriam descabidas as afirmações do escritor Deonísio da Silva de que o Rio Grande é o “Estado mais politizado do Brasil”, de que “o gaúcho é um bicho político” e de que este “é o único Estado- república ou cidade-Estado do Brasil”. 333 Se lembrarmos a teoria de Carl G. Jung discutida

no capítulo anterior, pela qual a “morte de Deus” fortalece a noção de Estado e faz surgirem os “ismos”, podemos entender ainda mais, em nosso prisma mítico-símbólico, a força da política na alma gaúcha. Luiz Pilla Vares diz que o gaúcho é um predestinado à política, desde as origens:

Nasceu como tal. Sua história é uma história de guerras, revoluções, idéias. A fama de estado mais politizado do Brasil não é sem fundamento. Pelo contrário. Se existe lugar no País, onde a política penetrou profundamente na alma popular, este é o Rio Grande do Sul. 334