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4 O MITO FUNDADOR GAÚCHO SEGUNDO ERICO VERISSIMO

4.2 Elementos míticos em O Continente

4.2.1 Mito fundador gaúcho em O Continente

Compreender o conteúdo de A fonte, tanto na perspectiva histórica quanto na simbólica, torna-se fundamental para um entendimento das características da sociedade gaúcha, evocando o pressuposto de um mito fundador ser a célula matriz do que é criado a partir dele. Tendo estudado o começo de O Continente sob essa ótica, Maria da Glória Bordini afirma:

Como imagem em prospectiva das experiências históricas ou míticas em torno da região sul do Brasil, “A Fonte” exige um olhar detido sobre sua estruturação, pois nela se delineiam os rumos do romance, assim como da interpretação de Erico Verissimo do que seria a história “desmitificada” de seu Estado. 172

Bordini observa que, como recurso estilístico, Erico constrói em A fonte seqüências de impressões estéticas muito nítidas, quase como uma transposição para a literatura de seus talentos nas artes visuais. O episódio se inicia numa madrugada de abril de 1745, em que o padre jesuíta espanhol Alonzo desperta de um pesadelo e, num olhar panorâmico para o ambiente externo, reconhece na paisagem a beleza plástica que o deixa com o sentimento de estar mais perto de Deus. A seguir, Alonzo fica apreensivo ao olhar na direção leste, onde fica o Continente do Rio Grande de São Pedro e de onde espera que os portugueses venham a cobiçar as terras dos Sete Povos, repetindo o movimento da destruição das províncias jesuíticas pelos bandeirantes décadas atrás. A catedral aparece ao olhar do padre como uma fortaleza de frescor e amparo, comparada ao regaço materno dos tempos da infância. Alonzo, então, fita o povoado, com o colégio, o hospital, as oficinas e o quarteirão dos índios.

171 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Op. cit., p.2.

172 BORDINI, Maria da Glória. O Continente de São Pedro: éden violado. In: BORDINI, Maria da Glória;

ZILBERMAN, Regina. O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p.52-53.

A cena, construída especialmente pela visão do padre, afligido por uma antiga culpa, mas pacificado pelo ambiente da Redução, destaca a amplitude silenciosa e amável da natureza do pampa, em que irrompe a solidez e o peso do prédio sagrado, cujo negror evoca o hábito da Ordem e, em conseqüência, sua missão civilizatória. [...] Numa vista caracterizada pela pureza e suavidade de contornos e habitada em estado de beatitude, respira-se um clima de apreensão. [...] Prepara-se com isso a expectativa do leitor para o advento da catástrofe final, em que a Redução é invadida pelos portugueses, queimada pelo povo e os padres, e o futuro herói, Pedro, ainda menino, foge em direção ao Continente, para mais tarde encontrar Ana Terra e dar-lhe um filho. 173

Sempre sob o olhar de Alonzo, as Missões e seu entorno são representados como um paraíso terrestre. A paisagem, feito uma aquarela pintada por uma criança, com coxilhas verdes recobertas de macegas sob um céu azul, difere da paisagem da Espanha, mais trágica, e da crueldade daquela outra dos trópicos. Define Bordini: “Essa é a visão típica de um europeu setecentista ilustrado, que espera do espaço conquistado nas Américas o consolo que o solo da metrópole não pode lhe oferecer.” 174 A descrição da organização urbana do aldeamento

guaranítico, ainda na visão do padre, assemelha-se à realização das utopias humanistas que a Europa cultuava desde a de Thomas Morus, com a valorização da família como célula-mater, uma economia comunizada, administração justa, direitos igualitários, a religião como fundamento e admitindo o prazer ao lado da virtude.

A visão do Pe. Alonzo confirma o sentimento de vitória dos propósitos jesuíticos nas terras sul-americanas da Coroa espanhola. A pedagogia teocêntrica encontrou sintonia numa organização socioeconômica coletivista que respeitou o modo de produção comunitária indígena. Longe de seguir modelos utópicos europeus, a sociedade fraterna e pacífica criada era fruto de acomodações históricas das crenças sociais da Ordem às tradições tribais, operada por interações entre brancos e índios. Tudo isso, é claro, devido “aos jesuítas enquanto mestres e condutores últimos da vida comunitária”.175

Mas eis que chega o inevitável momento de inversão dessa representação mitificada de uma comunidade igualitária, harmoniosa e espiritualizada, quando a situação política externa às missões se agrava. Ante a ameaça da invasão das tropas portuguesas e espanholas, agora unidas, para o cumprimento do Tratado de Madri com a saída dos missioneiros do território das reduções, a sociedade ideal desmorona. Os jesuítas, antes partidários da Coroa espanhola, mesmo relutantes tomam o partido dos índios resistentes, mas passam de líderes a subalternos. É nesse contexto que ganha destaque o principal comandante da resistência dos

173 Idem, p. 54. 174 Ibidem, p. 55.

Sete Povos, Sepé Tiaraju, e é quando o Pe. Alonzo percebe nuances ocultas do que era um modelo de sociedade religiosa. Afirma Bordini:

O espanto de Alonzo ao testemunhar a alteração do cenário da redução em virtude da mobilização dos guaranis implica o reconhecimento, forçado pela situação nova, de que seus pupilos têm recursos próprios e que sua pedagogia não afetou a raiz identitária dos índios. 176

A morte de Sepé Tiaraju, antevista numa premonição do menino Pedro Missioneiro, anuncia o fim de tudo. Um incêndio consome o outrora paraíso humano erguido sob as ordens de Deus. Nesse ponto final do episódio, narrado à distância, não mais sob a perspectiva de Alonzo, Erico Verissimo anuncia o primeiro movimento da ação fundadora do clã que será tema de seu longo romance: “Pedro montou num cavalo baio e, levando consigo apenas a roupa do corpo, a chirimia e o punhal de prata, fugiu a todo galope na direção do grande rio...” 177

Para Bordini, esse herói fundador, tendo assimilado uma cultura religiosa e humanística, seria o genitor de uma descendência de homens mais sensíveis às causas humanas do que os nascidos dos invasores, como se verá na narrativa posterior de O Continente. “Ele será o combatente e o artista, o macho gentil, o narrador criativo e sedutor, como seu último descendente em O Tempo e o Vento, Floriano Cambará.” 178 Na leitura de

Bordini, o complexo de imagens da formação primordial do Rio Grande a partir de A fonte é o de um paraíso natural, em que as culturas espanhola e indígena se mesclaram, gerando uma forma de comunidade sociopolítica equilibrada e prática, na qual trabalho e lazer coexistem sob a motivação maior da elevação do espírito. Por essa ótica, as reduções seriam um reflexo do modelo comunitário dos antigos cristãos, sem a rigidez da hierarquia eclesiástica. No entanto, esse éden sobre a terra é violado:

[...] num primeiro plano sutil, pelas contradições morais e intelectuais dos promotores, os jesuítas, que tendem a encarar os guaranis como crianças, conformando seus costumes seculares ao figurino cristão, mesmo que este não se ajuste bem, e submetendo-os passivamente aos caprichos políticos da mãe Espanha. [...] Num segundo plano, de visibilidade tênue, esse paraíso possível é destruído pela colonização espoliativa dos dois impérios, o luso e o espanhol, que, tanto um quanto outro, não consideram a experiência de integração cultural que ali se desenrola, votando as populações nativas ao extermínio.179

176 Op. cit., p. 58.

177 VERISSIMO, Erico. O Continente. Vol. 1. 2.ed. São Paulo: Globo, 2002, p. 82. 178 BORDINI, Maria da Glória. Op. cit., p. 59.

Por esse enfoque imprimido em A fonte como fundação do Rio Grande do Sul, Erico Verissimo sugere, conforme análise de Bordini, que a gênese missioneira poderia ter produzido uma sociedade mais pacífica e culta, menos agressiva e rude do que vinha sendo até o período em que o escritor concluiu O Tempo e o Vento, no começo dos anos 1960. Pela trilogia, a história sulina não passou de uma “cadeia de guerras e conquistas de território ou de poder político, entre facções truculentas, anulando alteridades, como as culturas étnicas nativas ou importadas, e sufocando movimentos civilizatórios ou degradando-os.” 180 Não é à

toa, portanto, que o fundador Pedro Missioneiro, dotado de artes e sensibilidade, precisa ser sacrificado no episódio seguinte, Ana Terra, por perturbar os valores da sociedade colonizadora lusa.

A tese subjacente no imaginário do texto é de que o paraíso terrestre, se fosse uma possibilidade realizável entre povos diferentes, mas de boa vontade, não poderia fundar-se num projeto colonizador. Nessas circunstâncias, o acolhimento do Outro, mesmo efetuado nobremente, [...] traz em seu âmago a semente da falência. Está, já de início, imbuído do interesse do colonizador pelo território, seja ele espiritual ou geopolítico. Essa é a vertente que Erico Verissimo, tomando “A Fonte” como ponto de partida, explora até o final de O Tempo e o Vento: a dos belos gestos fraudados, a dos paraísos perdidos que só a arte, em sua finalidade sem fim, pode restituir.181