• Nenhum resultado encontrado

6 A PARTE E O TODO NUM VIÉS MÍTICO-RELIGIOSO

6.7 Estado branco, terra do batuque

Nosso estudo não teve a pretensão de traçar um quadro da religiosidade gaúcha, no nível da manifestação da crença no transcendente, mas sim a de examinar, no nível básico do mito fundador, como os elementos humano e divino se relacionam e o quanto isso constitui mais um aspecto de diferenciação entre o Rio Grande do Sul e o resto do Brasil. Não nos coube avaliar as diferentes nuances com que o Estado expressa sua fé. O que mostramos foi, antes de tudo, a tendência gaúcha a uma valorização irrestrita do humano, mesmo nas questões da fé religiosa. No entanto, parece-nos relevante examinar, à luz mítica da nossa interpretação, um dado curioso apontado por uma reportagem do jornal Zero Hora em 2005, segundo a qual um estudo indica o Rio Grande do Sul como o segundo estado brasileiro com mais adeptos de religiões de origem africana – perde apenas para o Rio de Janeiro –, a

despeito de mais de 86% da população ser declaradamente branca. 349 O mesmo estudo,

realizado pelo diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Marcelo Neri, a partir de dados do IBGE, apresenta o Rio Grande do Sul como um estado de extremos na fé: reúne o mais católico, o mais evangélico e o mais afro-religioso dos municípios brasileiros. Mas, extremismos à parte, como a perspectiva que adotamos pode explicar o fato surpreendente de os genéricos terreiros de macumba terem tanta penetração em solo gaúcho?

Sem o interesse de esmiuçar os fundamentos dessa forma de religião herdeira dos antigos escravos africanos, mas buscando suas bases em estudos científicos já realizados, podemos tentar compreender o crescente fascínio de uma população branca e de formação cristã por rituais de origem negra e pagã. 350 Segundo o antropólogo Ari Pedro Oro, as

religiões afro-brasileiras possuem características próprias que contribuem para atrair as pessoas:

Elas são tolerantes, no sentido de que não exigem dos seus seguidores uma prática e uma identidade religiosa exclusivas; elas afirmam como sagrados valores “mundanos”, perseguidos por qualquer indivíduo, a saber: a saúde, o dinheiro, a realização no amor e a superação das dificuldades (Prandi, 1991); elas constroem um ambiente ritual que conduz as pessoas a expressarem suas emoções, promovendo a satisfação pessoal; elas possuem agentes religiosos que penetram facilmente na intimidade das pessoas perscrutando e valorizando seus desejos e sonhos e atuando como psicólogos, sacerdotes e médicos; elas reverenciam não deuses abstratos e longínquos, mas divindades que vêm à terra podendo ser tocadas e ouvidas. (grifos nossos) 351

No Rio Grande do Sul, as religiões afro-brasileiras se dividem em três formas principais, dependendo do grau de mescla de culturas: a umbanda, construída a partir de elementos religiosos africanos, orientais, católicos, indígenas e espíritas; o batuque ou nação, mais próximo da tradição africana; e a linha-cruzada ou quimbanda, que conjuga rituais das duas formas citadas, além de incluir o culto a entidades ambíguas “cuja função é abrir ou trancar a comunicação com os deuses.” 352 De acordo com Norton F. Corrêa, a grande maioria

das casas de culto no Rio Grande do Sul pertence à linha-cruzada. 353 Essa modalidade de

crença teria surgido a partir da década de 1960, numa fase de consolidação do capitalismo e do incremento de problemas urbanos como desemprego, insegurança, doença e frustrações.

349 MELO, Itamar. Onde está a fé gaúcha. In: Zero Hora, edição n. 14573. Porto Alegre, 17-06-2005.

350 Conforme estimativa citada por Ari Pedro Oro, o número de terreiros de religiões afros não passava de uma

centena na década de 1940 e já atingia cerca de 20 mil na década de 1980.

351 ORO, Ari Pedro. Nós, os macumbeiros. In: GONZAGA, Sergius; FISCHER, Luís Augusto; BISSÓN, Carlos

Augusto (org.). Op. cit., p. 81.

352 Idem, p. 79.

353 CORRÊA, Norton F. O batuque no Rio Grande do Sul – Antropologia de uma religião afro-rio-

“Neste contexto, a linha-cruzada vai se tornar uma religião prática, pragmática, de serviço, que se especializará nas soluções sobrenaturais daqueles problemas.” 354

Esse aspecto prático e objetivo da religião, em sua função imanente de atender as necessidades dos seus seguidores, é apontado por Ari Pedro Oro como um dos motivos de sua expansão no Rio Grande, no Brasil e em outros países latino-americanos. O estigma da origem negra e escrava, por sua vez, justificaria, em parte, a forma velada com que a população gaúcha participa desses ritos. 355 Entendemos que o acesso a um apoio de nível

religioso que promovesse a resolução de problemas comuns do homem, sem que isso representasse vínculos com o sagrado, seria bastante coerente com uma postura de vida balizada pela liberdade e pela não aceitação de doutrinas, o que caracteriza o gaúcho que emerge de nosso mito fundador. Em outras palavras, se, diante das demandas da vida, houver necessidade da busca de ajuda religiosa, que seja então a de uma crença objetiva, prática e sem a exigência de fidelidade espiritual. Nesse ponto, a questão da clandestinidade do culto conta a favor, num ato quase mercantil de “comprar” os favores do oculto, vindo de um homem de fraca ou não assumida religiosidade.

Ainda sobre a questão da praticidade, ou materialidade, dessa religião afro-brasileira – e isso a aproxima dos triviais temas humanos –, Corrêa afirma que sua festa ritual coloca deuses e humanos num mesmo palco. E isso deixa explícito que “há muita semelhança entre os humanos e os deuses”. 356 Não se trata aqui do Deus cristão, invisível e incognoscível, mas

de deuses encarnados, ao alcance do toque humano. Tampouco se trata de uma forma religiosa que prega a repressão do corpo e dos instintos e a salvação da alma, como o catolicismo. Corpo e alma formariam “um bloco único, indistinto”. 357 Idéias cristãs de

salvação e condenação, céu e inferno, não se encaixam nessa cosmovisão religiosa. O corpo é valorizado e – diferença importante do cristianismo – “as relações sexuais entre os humanos não têm a conotação exata de pecado”. 358

Ou seja, o corpo é assumido como algo que ocupa o primeiro plano na concepção-pessoa batuqueira. Simbolicamente, ademais, se considerarmos a dança como “o corpo em movimento”, ela ganha uma dimensão que pode muito bem ser entendida como de conotação sexual, simbolicamente falando. [...] ao oposto do panteão cristão o amor-sexo aqui é visto com naturalidade: na história mítica dos deuses ele está sempre implícito. [...] Enquanto que imagens dos santos católicos são também assexuadas, as de

354 ORO, Ari Pedro. Op. cit., p. 80. 355 Idem, p. 83.

356 CORRÊA, Norton F. Op. cit., p. 275. 357 Ibidem, p. 264.

madeira feitas especialmente para representar os orixás, existentes em todas as casas de Batuque, são sexuadas. 359

Nossa intenção aqui não é explicar o fascínio das crenças afro-brasileiras numa sociedade de maioria branca e nem reduzir tais crenças a fatores distintivos da religião oficial da maioria. O objetivo é apenas reconhecer aspectos coerentes com o perfil do gaúcho gerado pelos elementos do mito fundador. Assim, uma crença que valorize os instintos, não exija devoção e fidelidade, ajude a resolver as questões materiais do cotidiano, assegure ao humano o direito a eleger seu bem ou seu mal e, fato importante, seja praticada de uma forma discreta, porquanto quase clandestina, pode adequar-se ao etos de um povo de espírito combativo e independente, simbolizado pelo punhal da narrativa de Erico Verissimo. Explorar mais essas relações, buscando justificá-las, poderia ser tema de outro estudo, mesclando antropologia, história e teologia, e aqui deixamos a sugestão.