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6 A PARTE E O TODO NUM VIÉS MÍTICO-RELIGIOSO

6.3 Cultura gaúcha e o resgate do passado idílico

Um mito fundador que traz em sua constituição o episódio da destruição de um paraíso possível, como o foram as comunidades missioneiras – e não cabe aqui a crítica histórica, mas sim a leitura mítica do episódio –, pode resultar numa nostalgia continuada e num crescente apelo para o resgate dessa sociedade idealizada. De fato, a construção de um universo familiar, feliz e próximo a todos os gaúchos, onde se possa compartilhar valores comuns herdados, parece ter sido um alicerce do tradicionalismo, como atesta um dos seus criadores, Barbosa Lessa, atribuindo ao cerne do movimento:

[...] o democrático solidarismo da cuia de chimarrão, o gosto pelos acampamentos ao ar livre, o culto consciente ou inconsciente ao fogo-de- chão, a ausência de conflitos entre gerações, etc., de tal forma que – não se trata de uma hipótese mas de uma realidade muitas vezes comprovada – um viajante comercial podia percorrer o Rio Grande de ponta a ponta e, sendo tradicionalista, sentir-se sempre “em casa” ao chegar num CTG, por compartilhar de um mesmo repertório de mitos e símbolos com alto poder de confraternização. 318

Questionando o atrelamento do gaúcho a uma ideologia antiga, apesar do deslocamento da estrutura pastoril para a industrial-urbana, o historiador Décio Freitas sintetiza as conseqüências disso:

Ao invés de se empenhar na conquista do futuro, [o gaúcho] refugiou-se no passado, idealizando-o como uma perdida idade de ouro em que todos eram livres e felizes. Percebendo as vantagens do mito, as novas elites urbanas dele se apropriaram e o promoveram através de seus aparelhos ideológicos, o folclore, a literatura, a historiografia, a poesia. Desta forma, embevecidos na contemplação e recordação de um passado mítico, os homens preferem se conformar com o presente, e deixam de sonhar com o futuro. 319

Para Ruben Oliven, embora um número considerável de intelectuais aponte o aspecto ideológico e reacionário da volta a um tempo idílico que ou não existiu ou não existe mais, tal denúncia não resolve a questão da sobrevida da tradição rural num Estado urbano que se quer

318 LESSA, Luiz Carlos Barbosa. Op. cit., p. 95.

moderno. Isso ocorre porque esses elementos ajudaram a moldar uma identidade gaúcha capaz de distingui-la no contexto nacional.

O que ocorre no Rio Grande do Sul parece estar indicando que atualmente para os gaúchos só se chega ao nacional através do regional, ou seja, só é possível ser brasileiro sendo antes gaúcho. [...] Quando se pretende comparar o Rio Grande do Sul ao resto do País, apontando diferenças e construindo uma identidade social, é quase inevitável que este processo lance mão do passado do estado e da figura do gaúcho, por serem estes os elementos que permitem ser utilizados como sinais distintivos. 320

Se lembrarmos que o mito fundador brasileiro projeta o país para o futuro e para uma condição de potência a ser despertada, o mito gaúcho, com sua tendência a resgatar um passado idealizado, pode sinalizar não apenas a construção de uma identidade das mais peculiares, mas também um sentimento de exclusão em relação ao todo ou de não fazer parte dos rumos da história nacional. Sandra Pesavento fala de uma frustração histórica continuamente reeditada na trajetória gaúcha, a despeito de seu legado de guerras e revoluções, e questiona: “Afinal, com tantas cabeças brilhantes e passado glorioso, por que será que o Rio Grande do Sul acabou perdendo todos os bondes da história contemporânea que por este Brasil passaram?” 321 A historiadora confirma sua constatação:

Senão vejamos: o imediato pós-30 já reservou para parcela da oligarquia gaúcha uma frustração histórica inicial. Ela, que se considerava dona de Getúlio e da Revolução, viu as coisas tomarem outro rumo. Caindo São Paulo e o café, em vez de assumirem o papel hegemônico nacional o Rio Grande e os pecuaristas, o que se viu foi que, no novo bloco do poder montado, Getúlio estabeleceu alianças justamente com os setores não- agrários do centro econômico do país. [...] O Rio Grande era heróico, mas outros estavam ficando ricos. Contávamos histórias de glórias passadas e festejávamos revoluções, como em 1935, mas “eles” inauguravam fábricas e influíam nas decisões do poder central. [...] O remédio foi aderir (de novo), e nos especializamos, no período ditatorial, em fornecer quadros para o autoritarismo central. Freqüentávamos ante-salas do poder, mas “eles” decidiam. Maldito processo identidade/alteridade, que nos opunha de maneira desconfortável o contraste evidente: começávamos a fundar centros de tradições, enquanto “eles” sediavam as pontas avançadas de uma indústria de base. [...] Para combater o fantasma da incômoda performance “deles”, “nós” nos utilizávamos da nossa ilusão referencial: sentinelas da fronteira, monarcas das coxilhas, centauros dos pampas, raça de gigantes, democracia racial. Tudo lindo, edulcorado pela distância histórica que, em parte, compunha uma imaginário social verossímil. 322

320 OLIVEN, Ruben George. O renascimento do gauchismo. In: GONZAGA, Sergius; FISCHER, Luís Augusto

(org.). Nós, os gaúchos. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1993, p. 79-80.

321 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Da frustração histórica do Rio Grande. In: GONZAGA, Sergius; FISCHER,

Luís Augusto (org.). Op. cit. p. 20.

Pesavento ainda relaciona outras frustrações históricas gaúchas, como a deficiência de energia e de transportes nos progressistas anos JK. Na década seguinte, com a renúncia de Jânio Quadros, gaúchos foram às armas na defesa da posse do conterrâneo João Goulart, mas em pouco tempo tudo redundou num longo período de autoritarismo. Nos anos do milagre econômico militar, sucediam-se presidentes gaúchos, “mas o Rio Grande não acompanhava o ritmo de expansão da acumulação nacional”. Por fim, nos tempos da retomada da democracia, não coube aos gaúchos nenhum papel de protagonistas e de articuladores da virada da mesa. Conclui Pesavento: “Algo houve, pois não fomos admitidos nos núcleos (fechados) da nova democracia (aberta) recém-instalada.” 323 E, mais uma vez, os gaúchos experimentaram a

sensação de terem sido excluídos da história.