• Nenhum resultado encontrado

4 O MITO FUNDADOR GAÚCHO SEGUNDO ERICO VERISSIMO

4.2 Elementos míticos em O Continente

4.2.5 Símbolo de violência

No conjunto de A fonte, as críticas ao trabalho jesuítico se diluem ante a força do seu componente humanístico, num contexto histórico de escravidão e extermínio dos indígenas. Mas, um derradeiro símbolo vinculado por Erico a esse éden terrestre merece toda nossa consideração e análise, exatamente por conter a síntese do que, para o escritor, seria o rumo tomado pela nova sociedade a ser fundada com a destruição das missões. Trata-se do punhal que Pedro Missioneiro carrega dali e que, cerca de 150 anos depois, no final de O Continente, encontra-se nas mãos do menino Rodrigo. É um dos elementos de permanência ao longo do romance, ao lado da tesoura de D. Henriqueta (mãe de Ana Terra), com os quais, segundo

Zilberman, o tempo das origens, próprio do mito, pode ser recuperado por uma repetição ritualística. 203 O punhal carrega o óbvio sentido de morte, por sua vez vinculado à simbologia

do falo e do gênero masculino.

Chevalier e Gheerbrant associam aos instrumentos cortantes em geral a significação de um princípio ativo modificando a matéria passiva. A faca, mais especificamente, tem seu símbolo conectado à idéia de execução, de morte, vingança e sacrifício, além de provas iniciáticas como a circuncisão, donde se extrai seu simbolismo fálico, conforme os autores, “tão freqüentemente evidenciado por Freud na interpretação dos sonhos dos seus pacientes”.

204 No enredo de A fonte, o punhal surge a partir de um sonho perturbador do Pe. Alonzo, que

o relata ao cura da redução, Pe. Antônio, numa perfeita seqüência de narrativa de cunho psicanalítico.

Essa interpretação do sonho realizada pelo cura, à guisa de um moderno psicanalista, mas na condição de padre confessor, parece avisar ao leitor que preste atenção nos conteúdos simbólicos da narrativa e, mais exatamente, na ligação do punhal com o masculino e a morte. Alonzo relata que, no sonho daquela madrugada, dirigia-se ao armário da sua cela para buscar algo e que lá havia uma parte do corpo que ele não ousava pronunciar dentro da igreja, sugerindo ser o órgão genital. Mais tarde, conta ao cura que no armário guarda um antigo punhal, relíquia de família, com a qual planejara matar um homem, por desejar a mulher deste, tudo isso antes de seu arrependimento e filiação à Companhia de Jesus ainda na Espanha. O cura o questiona por qual razão ainda guarda o punhal no armário, e Alonzo responde:

– A conselho do meu confessor. Quando a graça de Deus caiu sobre mim e vi a iniqüidade em que vivia, despojei-me de tudo quanto tinha, de tudo que me pudesse lembrar da vida antiga: objetos, roupas, amigos... Foi então que o meu confessor me sugeriu que guardasse o punhal, pois lhe parecia perigoso que eu apenas “esquecesse” o passado. [...]

– Tira o punhal do armário e coloca-o em cima da mesa, bem à vista! [...] É preciso expulsar o demônio deste casarão – continuou, batendo com a ponta do indicador na testa de Alonzo. 205

Incentivado pelo conteúdo dos sonhos e o conselho do cura, Alonzo se submete a uma revisão interna catártica e purgativa, a partir de um contato direto com o punhal: “Era uma bela arma de cabo e bainha de prata lavrada. Alonzo desembainhou-a: a lâmina triangular de aço, que ele apertou na mão, era fria. Fria e má – concluiu”. Enquanto deixava a mente entregue ao passado e experimentava a sensação de danação infernal caso tivesse matado seu

203 ZILBERMAN, Regina. História, mito, literatura. In: Op. cit., p. 43. 204 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Op. cit., p. 414.

antigo rival, o padre apertava o punhal na mão, até o sangue pingar nas lajes do chão. É assim, com essa repetição de um redentor sofrimento cristão, com uma legítima chaga na mão, que Alonzo se purifica. “A ponta do punhal penetrara-lhe na carne. Mas agora, suado e ofegante, ele antevia o céu.” O trabalho evangélico nas missões era um sinal claro do perdão e da redenção vindos do Criador. “Da ferida da mão, o sangue ainda escorria. Mas ele amava aquela ferida.” 206

Pouco depois, chega à redução uma índia em trabalho de parto e esvaindo-se em sangue. A mulher morre, mas salva-se a criança, um menino mestiço, o qual, na visão experiente do padre e do cura, deveria ser filho de algum dos paulistas que costumavam prear e violentar índias no Continente do Rio Grande. Eleito para ser padrinho do menino, Alonzo sugere batizar-lhe de Pedro. Logo descobre a razão inconsciente da sugestão: Pedro era o nome do homem que outrora ele tentara matar na Espanha com o antigo punhal.

Criado sob os cuidados da família de um cacique da redução e seguido de perto pelo padrinho Alonzo, o menino Pedro demonstra possuir dons extraordinários. Identifica-se como filho de Nossa Senhora, a quem chama de Rosa Mística e com quem diz conversar periodicamente. Dono de uma mente perscrutadora, Pedro intriga-se com o mistério dos fenômenos naturais, como a chuva, o trovão e o raio. “Em tudo isso ele via, de uma maneira obscura, manifestações da luta entre o bem e o mal. E havia sobretudo o grande mistério da morte.” 207 Quando descobre o punhal, na cela de Alonzo, o pequeno índio demonstra

interesse pela arma, para defender-se dos espíritos do mal, ao que o padrinho argumenta: “A melhor arma contra eles é a cruz.” No entanto,

Sempre que podia, Pedro entrava furtivamente na cela do padre, tomava o punhal nas mãos, acariciava-o, experimentava-lhe a ponta, punha-o na cintura e imaginava-se um guerreiro como o corregedor, o alferes real Tiaraju, que era o homem que ele mais admirava na redução. [...] Pedro ficava-se ali na cela a imaginar essas coisas. Depois repunha o punhal sobre a mesa e retirava-se sem ruído, como uma sombra. 208

É por essa fascinação pelo punhal que ele, ao fugir da redução em chamas, quando do ataque português, leva consigo a arma, junto com a chirimia. A permanência do punhal e o desaparecimento da chirimia ao longo da história da sociedade em formação deixa evidente o simbolismo subjacente à cultura que a partir dali se cristalizaria. Para Antônio Hohlfeldt, o punhal estaria associado ao elemento masculino, o vento do título da saga, voltado a uma ação horizontal de conquistas e posses, geralmente violentas, através de figuras como as do capitão

206 Idem, p. 52-53. 207 Ibidem, p. 64. 208 Op. cit., p. 67.

Rodrigo e do seu bisneto, Rodrigo Cambará. Já a tesoura, usada na trilogia para cortar cordões umbilicais, teria relação com o feminino, ou o tempo, de ação vertical e conservadora da vida, identificada nas figuras de Ana Terra e Bibiana. 209

Mais a título de informação sobre o fascínio e a função utilitária e simbólica do punhal, e menos por alguma consciente ação intertextual por parte de Erico em A fonte, transcrevemos a seguir texto do argentino Jorge Luis Borges, sob o título de O punhal, publicado no livro Evaristo Carriego, de 1930:

Numa gaveta há um punhal.

Foi forjado em Toledo, nos fins do século passado. [...] Quem o vê tem de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o procuravam; a mão se apressa a apertar a empunhadura que a espera; a lâmina obediente e poderosa encaixa com precisão a bainha.

Outra coisa quer o punhal.

É mais que uma estrutura feita de metais; os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de algum modo, eterno, o punhal que ontem à noite matou um homem em Taquarembó e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar brusco sangue.

Numa gaveta da escrivaninha, entre rascunhos e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o empunha, porque o metal se anima, o metal que pressente em cada contato o homicida para quem o criaram os homens.210