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5 DEUS MORTO NO PAMPA

5.2 Jung e a morte de Deus

A morte de Deus, que acreditamos estar representada simbolicamente no mito fundador segundo Erico, já era um tema observável nas artes em geral muito antes de chegar ao paroxismo da expressão na fase pós-Segunda Guerra, exatamente quando da escritura de O Continente, publicado em 1949. O pintor italiano Giorgio de Chirico no começo do século XX abordava em suas obras um estado de pesadelo que chamava de “vazio terrível”. Aniela Jaffé, colaboradora de Carl Gustav Jung, afirma:

Nietzsche, a quem de Chirico cita como autoridade no assunto, deu nome ao “vazio terrível” quando disse que “Deus está morto”. Sem referir-se a Nietzsche, escreveu Kandisnky no seu O Espiritual na Arte: “O céu está vazio. Deus está morto.” Uma frase deste tipo soa de maneira abominável. Mas não é nova. A idéia da “morte de Deus” e sua conseqüência imediata, o “vazio metafísico”, já inquietava o espírito dos poetas do século XIX, sobretudo na França e na Alemanha. Passou por uma longa evolução que, no 218 MAESTRI, Mário. Guerra farroupilha: história e mito. Disponível em:

século XX, encontrou expressão na arte. A cisão entre a arte moderna e o cristianismo foi, afinal, consumada. 219

Jaffé adverte que, tanto a visão dos pintores citados quanto uma posterior constatação de Jung, em 1937, de que aquela época era a do desaparecimento e morte de Deus, não constituem afirmações sobre a existência ou não de um superior ser transcendental. Tratam- se, antes, de conteúdos inconscientes da psique coletiva, como Jung demonstrou no livro Psicologia e religião. 220 Parceiro de Sigmund Freud nos primórdios dos estudos da psicologia

como ciência da psique humana, Jung ampliou o conceito de inconsciente para uma dimensão que abrangia o coletivo. A parte consciente do homem, que envolve a mente racional, para Jung, é como uma ilha no imenso oceano do inconsciente, sujeita, portanto, às influências deste último. A totalidade da psique, englobando consciente e inconsciente, ganhou o nome de Self, ou Si-mesmo.

O inconsciente teria, também, uma autonomia criadora e uma autogestão, fortes o suficiente para dominar e restringir a parte consciente, inclusive atuando na capacidade de percepção desta. Jung evoca o pensamento de estudiosos como Arthur Schopenhauer que, ao identificar o inconsciente como o princípio criador do mundo, “nada mais fizeram do que sintetizar todas as doutrinas do passado, as quais, com fundamento na experiência interior, encaravam a misteriosa força atuante como deuses personificados.” 221

Jung toma o conceito de religião a partir do que Rudolf Otto – de quem Mircea Eliade tomou os sentidos de sagrado e profano, como abordamos no primeiro capítulo – chamou de “numinoso”, ou seja, uma existência ou um efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. Para Jung, o sujeito humano é mais vítima que criador do numinoso:

Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. De qualquer modo [...], a doutrina religiosa mostra-nos invariavelmente e em toda a parte que esta condição deve estar ligada a uma causa externa ao indivíduo. O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência. Tal é, pelo menos, a regra universal. 222

De acordo com a perspectiva junguiana, a religião seria uma atitude humana ante certos fatores dinâmicos concebidos pelo indivíduo como “potências”, ou seja, espíritos, demônios e deuses, mas também leis, idéias, ideais ou quaisquer outras denominações que se

219 JAFFÉ, Aniela. O simbolismo nas artes plásticas. In: JUNG, Carl G (org). O homem e seus símbolos.

Tradução Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964, p. 255.

220 Idem, p. 255.

221 JUNG, Carl G. Psicologia e religião. Tradução Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha. Petrópolis: Vozes, 1978, p.

dê a tais fatores. No mundo próprio do homem, a experiência teria mostrado que esses fatores seriam “suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados.” 223 Na visão do autor, para um estudo da religiosidade pela psicologia,

não se trata de levar em consideração as codificações e dogmatizações de experiências religiosas que resultam em confissões de fé e nem a busca de uma verdade exclusiva conforme a pretensão de todo credo religioso. Alerta Jung:

Uma vez que se trata da experiência religiosa primordial, [o psicólogo] deve concentrar sua atenção no aspecto humano do problema religioso, abstraindo o que as confissões religiosas fizeram com ele. Como sou médico e especialista em doenças nervosas e mentais, não tomo como ponto de partida qualquer credo religioso, mas sim a psicologia do homo religiosus, do homem que considera e observa cuidadosamente certos fatores que agem sobre ele e sobre seu estado geral. 224

Assim, na teoria junguiana, o conceito de Deus seria resultado do contato da consciência com uma potência criada pelo inconsciente e geralmente projetada para fora e identificada como algum poder externo. 225 Afirma o psicólogo: “O pressuposto da existência

de deuses ou demônios invisíveis é, na minha opinião, uma formulação do inconsciente, psicologicamente muito mais adequada, embora se trate de uma projeção antropomórfica.” 226

A quebra da projeção externa, com o aumento da consciência, e o processo histórico de uma visão mais materialista da existência, conduzem à necessidade de um reconhecimento dos devidos conteúdos psíquicos na alma do homem, de onde aparentemente saíram. Essa prática, no entanto, não ocorre normalmente.

Como não se pôde descobrir o trono de Deus entre as galáxias, conclui-se simplesmente que Deus não existe. O segundo erro inevitável é o psicologismo; se afinal de contas Deus é alguma coisa, deverá ser uma ilusão motivada entre outras coisas pela vontade de poder e pela sexualidade recalcada. Estes argumentos não são novos. Os missionários cristãos disseram coisas parecidas para derrubarem os ídolos pagãos. Mas, ao passo que em sua luta contra os antigos deuses os missionários primitivos tinham consciência de estar servindo a um novo deus, os modernos iconoclastas não sabem em nome do que destroem os antigos valores. 227

De acordo com Jung, Nietzsche vivenciou na própria pele o terrível resultado da sua percepção de que Deus está morto. “Nietzsche não era ateu, mas o seu Deus havia morrido. O

223 Ibidem, p. 10. 224 Op. cit., p. 11.

225 Esta visão do psicólogo sobre a projeção de Deus para algo externo se aproxima do pensamento de Ludwig

Feuerbach, conforme mostramos no capítulo primeiro. Jung acrescenta a noção do inconsciente como gerador dessa potência.

226 Op. cit., p. 90. 227 Op. cit., p. 90.

resultado dessa morte foi sua cisão interior que o compeliu a personificar seu outro ‘Si- mesmo’ como ‘Zaratustra’ ou, em outra fase, como ‘Dioniso’”. 228 O eu, assim, ficou inflado

pela associação com a totalidade do Self, identificando-se então como senhor do Universo. Associado à mais forte posição da psique, ou ao seu fator efetivamente mais poderoso e decisivo, o conceito de Deus passa a depender da liberdade do homem em identificá-lo como um espírito ou um fenômeno da natureza e também da sua representação como um poder benéfico ou destruidor. Jung sintetiza: “Nossa escolha caracteriza e define ‘Deus’”.229

Em outras palavras, “Deus” não é criado, mas escolhido.

Para o psicólogo, pode acontecer uma dissociação entre a pulsão da psique que estamos chamando de “Deus” e os limites da imagem dela criada pelo homem. “Aí talvez pudéssemos dizer com Nietzsche: ‘Deus está morto’. Todavia, mais acertado seria afirmar: ‘Ele abandonou a imagem que havíamos formado a seu respeito e nós, onde iremos encontrá- lo de novo?’” 230 Nesse processo, há o risco de surgirem os “ismos” e as fatais anarquia e

destruição embutidas aí. E é quando a idéia de Estado pode perfeitamente assumir o lugar vago no trono de Deus:

Assim como o Estado trata de “englobar” o indivíduo, assim também o indivíduo imagina ter “englobado” sua alma, e faz disso até uma ciência, baseado na absurda suposição de que o intelecto, mera parte e função da psique, basta para compreender a totalidade da alma. 231

Essas teorias de Jung foram reunidas no livro Psicologia e religião no ano de 1937, no apogeu da prepotência dos estados totalitários sustentados por ideologias cegas como o nazismo, o fascismo e o comunismo, que iriam deflagrar a Segunda Guerra Mundial com toda destruição inerente ao conflito. Ao tomarmos como base deste capítulo de nosso estudo as idéias de Nietzsche e a interpretação de Jung para elas, não pretendemos adequá-las de modo literal à formação da sociedade gaúcha a partir do mito fundador, em que há, como já referimos, um conflito simbólico entre Deus e o homem. Esse suporte teórico deve apenas balizar o caminho da nossa leitura sobre o modo com que Erico Verissimo retratou a sociedade em formação no romance O Continente. Vamos, então, analisar algumas nuances com que Deus e a religião serão abordados na narrativa, para então buscarmos respaldo para nossa hipótese de uma simbólica morte de Deus no pampa.

5.3 Deus e religião em O Continente