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5 DEUS MORTO NO PAMPA

5.3 Deus e religião em O Continente 228 Op cit., p 90.

5.3.1 Materialidade dos símbolos religiosos

No cenário do rancho dos Terra, a alusão à religião aparece apenas na parede sobre a cama do casal: “um crucifixo de madeira negra, com um Cristo de nariz carcomido.” 232 O

detalhe do nariz carcomido na imagem do Cristo morto é por demais simbólico para passar despercebido, pois, no relato bíblico do Gênesis, o nariz aparece como o órgão pelo qual o poder divino se insuflou no homem, dotando-o de vida: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente.” 233 Um cristo crucificado sem nariz parece indicar uma dupla condição de

morte desse ícone religioso. Ou seja, há ali uma herança cristã – pois, como Bibiana reconhece depois, o crucifixo “era um dos poucos objetos que tinham vindo da estância do bisavô” 234 –, mas absolutamente sem vida, feito uma fé ambivalente que coexista com a

dúvida ou a descrença diante do inesperado. Esse crucifixo é um objeto religioso que permanece no romance, pois é diante dele que Bibiana, reza quando o Capitão Rodrigo e Bento Amaral vão duelar por sua causa: “Ela havia rezado diante do velho Cristo sem nariz e feito uma promessa. ‘Se nenhum dos dois morrer, prometo nunca mais comer doce’. Mas achara a penitência fraca.” 235

Se seguirmos examinando certos elementos materiais da narrativa, observamos que o povoado de Santa Fé é fundado tendo ao centro uma enorme figueira, perto da qual se constrói uma capela. A figueira resiste ao tempo e sob sua copa alguns personagens do

232 VERISSIMO, Erico. O Continente. Vol. 1. 2.ed. São Paulo: Globo, 2002, p. 115. 233 BÍBLIA SAGRADA. Gênesis, 2:7. 119.ed. São Paulo: Ave-Maria, 1998, p.50. 234 VERISSIMO, Erico. Op. cit., p. 230.

romance desfiarão suas angústias. Mesmo sendo uma árvore comum na região, devemos questionar a razão de ter sido ela a eleita pelo autor, conscientemente ou não, para ser o marco central de Santa Fé. Chevalier e Gheerbrant atribuem à figueira uma enorme gama de significações, que vai de símbolo de abundância ao de ciência religiosa. No entanto, se buscarmos apenas as referências simbólicas relacionadas ao cristianismo, encontraremos na Bíblia a figueira ligada à consciência do pecado original, ainda no Paraíso, quando Adão e Eva percebem-se nus e se encobrem com folhas de figueira (Gênesis, 3:7), e também ligada à maldição lançada sobre ela por Jesus para que jamais desse frutos. A maldição da figueira é usada por Jesus para ilustrar a necessidade da fé entre os apóstolos (Mateus, 21:19-22). 236

A figueira ao centro do povoado remete ainda ao simbolismo do centro do mundo. Segundo Mircea Eliade, o centro do mundo, ou eixo do mundo, de conotação sagrada, é onde os três níveis cósmicos, céu, terra e regiões inferiores, se encontram. É este simbolismo que, “na maior parte dos casos, nos permite entender o comportamento religioso em relação ao ‘espaço em que se vive’”. 237 A árvore é uma perfeita expressão dessa união cósmica entre

céu, terra e mundo inferior, e torna-se símbolo também do Cosmos em seu constante movimento de renovação. “É por essa razão que o Cosmos foi imaginado sob a forma de uma árvore gigante.” 238 Todavia, não se pode atribuir uma possível sacralidade a toda e qualquer

árvore. Menos ainda se essa espécie já traz outras relações de afastamento da conexão com o sagrado, como a figueira, acima localizada nas passagens bíblicas da perda do paraíso e da maldição de Jesus. A figueira, nesse caso, só pode ter uma relação com o profano, destituída, portanto, do seu aspecto sagrado. Eliade observa: “Ao nível da experiência profana, a vida vegetal revela apenas uma seqüência de ‘nascimentos’ e ‘mortes’” 239

A condição profana da figueira como centro do mundo de Santa Fé é destacada no romance. Diante da árvore, o Pe. Lara evoca a passagem bíblica citada para advertir o Capitão Rodrigo sobre uma mudança em seu comportamento folgazão: “Há homens como a figueira das Escrituras. Não têm nada para dar. É o mesmo que se estivessem secos.” 240 É sob a

figueira que Bolívar Cambará amarga a culpa de ter testemunhado contra o negro Severino, com quem brincara na infância naqueles galhos. A figueira, para ele, era como uma mulher de cabeça enterrada no chão e pernas abertas para o alto, e em cujo vértice experimentara os

236 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 19.ed. Rio de Janeiro: José Olympio,

2005, p.427.

237 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins Fontes, 1992,

p. 39.

238 Idem, p. 124. 239 Ibidem, p. 124.

desejos eróticos adolescentes. E nesse sentido, Bolívar compara a figueira-mulher à sua amada, a destrutiva e mórbida Luzia Silva. 241

Perto da figueira, a capela é construída, sob as ordens do latifundiário major Amaral e com a ajuda de todos os moradores de Santa Fé. “E, quando a capela ficou pronta, foi ela dedicada a Nossa Senhora da Conceição. [...] E o major Amaral mandou comprar nas Missões, a peso de ouro, uma imagem da padroeira do povoado.” 242 Esse aspecto deixa claro

que as missões permanecem atuantes, mesmo sem os jesuítas, embora reduzidas a meras fornecedoras de materiais religiosos manufaturados pelos índios e mestiços. Não resta mesmo dúvida de que o paraíso dos Sete Povos é só uma nostalgia. Tal passagem fica nítida numa cena em que Ana Terra divaga:

Para que tanto campo? Para que tanta guerra? Os homens se matavam e os campos ficavam desertos. Os meninos cresciam, faziam-se homens e iam para outras guerras. Os estancieiros aumentavam as suas estâncias. As mulheres continuavam esperando. Os soldados morriam ou ficavam aleijados. Voltou a cabeça na direção dos Sete Povos, e seu olhar perdeu-se, vago, sobre as coxilhas. 243