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4 O MITO FUNDADOR GAÚCHO SEGUNDO ERICO VERISSIMO

4.1 Literatura e mito

Nesta pesquisa visando apontar relações entre o Brasil e o Rio Grande do Sul a partir do enfoque religioso primordial, chegamos a um ponto em que, pelo processo histórico abordado no capítulo anterior, já teríamos condições de estabelecer um provável mito fundador para a região em análise. Como formação social mais antiga do Rio Grande, as missões jesuíticas concentram todos os fatores necessários à produção de um mito de origem, destacando-se o viés divino que costuma embasar tais mitos. No entanto, num olhar para além da história, vamos aqui buscar o mito fundador gaúcho em outra fonte da expressão humana sobre o ambiente: a literatura.

Essa opção pela literatura como manancial de valores humanos e culturais não aparece aqui como mero pretexto para adequação do presente estudo num mestrado na área de Letras. Antes disso, um das premissas dessa pesquisa vem do reconhecido valor da literatura como arte ou construção simbólica capaz de falar do homem, de sua história e de sua cultura. Acreditamos que não cabe esmiuçar a complexa rede de relações entre literatura e realidade e nem esgotar a abrangência do valor da literatura como possível espelho da história ou da sociedade. Para o que interessa ao nosso trabalho, consideramos suficiente reconhecer na arte a sua função social. Portanto, valemo-nos do argumento de Antonio Candido ao mostrar, de acordo com a sociologia moderna, que a arte – e por extensão a literatura – é duplamente social, porque “depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua

conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais”. 158

(grifo nosso)

Valemo-nos ainda da função da literatura como criadora de um mundo imaginado que, sem necessariamente assentar-se numa fidedignidade histórica, termina por revelar nas entrelinhas aspectos do real e do tempo presente. Na concepção de Marisa Lajolo, mesmo a criação de uma utopia na literatura se nutre sempre de uma imaginação ancorada na realidade.

Os mitos e espaços poéticos nascem não só da realidade circundante, compartilhada por autor e leitores, mas também do diálogo com tudo o que, vindo de tempos anteriores, constitui a chamada tradição literária. É como se a literatura fosse um constante passar a limpo de textos anteriores, constituindo o conjunto de tudo – passado e presente – o grande texto único da literatura.159

Nossa intenção agora é examinar, segundo o pensamento de Antonio Candido exposto acima, como uma obra literária pode delimitar ou reforçar os valores sociais de uma dada região, no caso, a sociedade gaúcha, e também apontar as possíveis relações entre mito e literatura. Acreditamos que a obra literária tanto pode sintetizar conteúdos míticos, ou seja, trazer em seu bojo temas caros à constituição psicológica de uma determinada coletividade, como também pode ela mesma atingir a condição de espelho mitificado da mesma coletividade, ou seja, uma obra que, mesmo literária, torna-se uma espécie de história oficial alternativa. Para fins didáticos, vamos examinar primeiramente a relação entre mito e literatura.

Mito e literatura têm em comum a narração e, embora possuam enfoques e características distintos, podem se interpenetrar. A literatura dá suporte ao mito, e um mito pode ter origem na literatura, como é o caso de Don Juan, o célebre personagem de um romance que dele escapou para atingir a condição de mito universal do sedutor irrefreável. Obviamente, literatura e mito são ambos portadores de sentido, criadores de formas e falam do homem. Nem sempre, contudo, essas duas formas narrativas estão a se interpenetrar. Como escreve Colette Astier, “pode-se apostar que a literatura só recorre à linguagem brutal do mito para apontar do interior uma saída fora dos códigos que ela apregoa como seus e, com isso, dotar-se de um horizonte”. 160 Astier ainda acrescenta que o mito pode transparecer ou

estar difusamente relatado na narrativa literária.

158 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8.ed. São Paulo: T. A Queiroz, 2000, p.20. 159 LAJOLO, Marisa. O que é literatura. 14.ed. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 46.

Também o mito, ou a estrutura da narrativa mítica, pode perfeitamente ser tema da literatura. Segundo André Dabezies, o mito intervém na criação literária pela relação do escritor com sua época e seu público. O escritor, assim, expressaria suas convicções e experiências através das imagens simbólicas que repercutem um mito já reconhecido pelo público como exprimindo uma imagem fascinante. Dabezies afirma que o texto literário não é em si um mito: “ele retoma e reedita imagens míticas, ele próprio poder adquirir valor e fascínio mítico em certas circunstâncias, para determinado público durante certo tempo”. Mas, igualmente, “o texto literário pode perder seu valor mítico quando o público ou as circunstâncias mudam”. 161 O mesmo autor observa que, se por um lado os mitos literários não

dão conta de falar do todo do homem, por outro lado implicam uma referência para uma visão totalizante.

Na medida em que determinada figura mítica revele-se viva e fascinante para uma dada coletividade, significa que ela exprime para essa comunidade algumas de suas razões de viver, uma maneira de compreender o universo, bem como sua própria situação em tal contexto histórico. 162