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3 A PECULIAR REGIÃO DO RIO GRANDE DO SUL

3.5 A cultura da região pampeana

A análise da cultura que vai caracterizar a sociedade em formação no pampa exige que, antes de tudo, sejam definidos os contornos deste conceito. De volta, então, ao Dicionário Houaiss, encontramos primeiramente para cultura definições ligadas ao cultivo da terra e à criação de animais e plantas e seus derivados. A seguir, aparecem definições como:

conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social; forma ou etapa evolutiva das tradições e valores intelectuais, morais, espirituais (de um lugar ou período específico); complexo de atividades, instituições, padrões sociais ligados à criação e difusão das belas-artes, ciências humanas e afins.125

Já no Dicionário Aurélio vemos uma ampla acepção do termo em relação à natureza do homem: “O conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam e aprimoram através da comunicação e cooperação entre indivíduos em sociedade”. 126 O mesmo dicionário diz que, nas ciências humanas, cultura opõe-se por vezes

à idéia de natureza, ou de constituição biológica, e está associada a uma capacidade de simbolização considerada própria da vida coletiva e que é a base das interações sociais.

Esses significados dão a entender que cultura pode ser apenas o resultado de trocas coletivas e de aprendizados em sociedade. Em Tabula rasa: a negação contemporânea da

124 Idem, p. 24.

125 HOUAISS, Antônio; VILLAR. Mauro de Salles. Op. cit., p. 2416. 126 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Op. cit., p. 587.

natureza humana, Steven Pinker questiona o sentido do que é meramente aprendido e da citada oposição entre cultura e a constituição biológica do homem. Argumenta que, se algo é aprendido, isso se deve a uma capacidade inata para aprender. “A mente sem equipamento para discernir crenças e intenções de outras pessoas, mesmo se for capaz de aprender de outros modos, é incapaz do tipo de aprendizado que perpetua a cultura”. 127

Adiante, Pinker acrescenta que a realidade social existe apenas entre um grupo de pessoas, “mas depende de uma capacidade cognitiva presente em cada indivíduo: a capacidade de compreender um acordo público para conferir poder ou status, e de honrá-lo enquanto as outras pessoas também o fizerem”.128 Na visão do autor, a cultura é um fundo

comum de inovações tecnológicas e sociais que as pessoas acumulam para ajudá-las na vida, e não uma coleção de papéis e símbolos arbitrários que surgem para elas.

Essa idéia ajuda a explicar o que torna as culturas diferentes e semelhantes. Quando um grupo dissidente deixa a tribo e fica separado por um oceano, uma cadeia de montanhas ou uma zona desmilitarizada, uma inovação de um lado da barreira não tem como se difundir para o outro. À medida que cada grupo modifica sua própria coleção de descobertas e convenções, as coleções vão divergindo, e os grupos passam a ter culturas diferentes. 129

Evocando os conceitos iniciais de cultura dos dicionários, ligados ao cultivo da terra e à criação de animais e plantas, podemos associar os fundamentos de uma prática cultural à relação do homem com o ambiente do qual ele extrai seu sustento. Pinker vale-se dos estudos do economista Thomas Sowell e do fisiologista Jared Diamond para argumentar contra a arbitrariedade dos sistemas de símbolos que formam uma cultura distinta e contra a visão da história como meros acontecimentos subseqüentes. A evolução humana estaria, sim, ligada à ecologia. Pinker concorda que “os destinos das sociedades humanas não nascem do acaso nem da raça, mas do impulso humano para adotar as inovações de outros em combinação com as vicissitudes da geografia e da ecologia”. 130

Pinker, ainda em cima das conclusões de Sowell e Diamond, mostra que as primeiras civilizações surgiram em regiões do globo onde a agricultura e a domesticação de animais se tornaram possíveis. A maior massa de terras do planeta, a Eurásia, permitiu a disseminação dos conhecimentos acumulados, além do fato de essas mesmas terras estarem dispostas de leste para oeste, numa mesma faixa de latitude, com climas e outras características físicas afins. Certos conhecimentos não poderiam ser compartilhados entre terras distribuídas no

127 PINKER, Steven. Tábula rasa: A negação contemporânea da natureza humana. São Paulo:Companhia

das Letras, 2004, p. 94.

128 Idem, p. 99. 129 Ibidem, p. 100.

globo de norte para sul, pois climas e vegetações diferentes indicariam modos também distintos de os homens atenderem às suas necessidades básicas.

Por esse pensamento, o estado do Rio Grande do Sul, localizado nas latitudes mais meridionais do Brasil e com um processo de formação histórica também diferente dos demais estados da federação brasileira, teria, então, propensão a uma sociedade com uma cultura diferenciada. Nelson Werneck Sodré escreve:

O isolamento, o papel de zona de transição, o caráter de região fronteiriça, tomados individualmente, mas quase sempre entrelaçados e por vezes confundidos, influíram fortemente na formação sulina, condicionando o seu desenvolvimento e vincando profundamente a sua fisionomia. O isolamento não proveio apenas da distância, constituindo esta por si só um fator importante, mas ainda de características geográficas que os recursos da técnica só muito tarde puderam neutralizar. 131

Sodré reforça da fisionomia geográfica excêntrica do Rio Grande os seus aspectos de transição, definidores de seu isolamento. É transição entre o território brasileiro e os territórios uruguaio e argentino; entre uma zona de predominância de matas e uma zona sem vegetação; de clima predominantemente quente para um clima predominantemente frio; de uma zona de montanha para uma de planura, de uma zona de ventos cálidos para outra de rajadas frias oriundas das encostas andinas.

Região fronteiriça, e nisso ainda de transição, coube-lhe suportar os atritos, fornecer o palco, e participar ativamente da busca de equilíbrio entre atrações antagônicas que se processaram por longo tempo nesse cenário fácil, onde as lutas se sucederam com tamanha intensidade que foi um acampamento permanente, as cidades surgindo dos estacionamentos, das passagens obrigatórias, dos locais fortificados, das posições de espera, dos baluartes a guardar. 132

Não pretendemos entender o homem e sua cultura como meros produtos do meio, como a referendar antigas teorias positivistas. Há que se observar o viés simbólico das fronteiras, como já foi discutido anteriormente, seguindo a visão de Pierre Bourdieu sobre região e seus limites. Dentro dessa perspectiva, Rogério H. da Costa 133 alerta que, se o fato de

ter nascido num determinado espaço tem implicações indiscutíveis, não é propriamente o espaço que vai “fundar” uma identidade, “mas a força política e cultural dos grupos sociais que nele se reproduzem e sua capacidade de produzir/estimular uma determinada escala de identidade, territorialmente mediada”.

131 SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil. 13.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990,

p.144.

132 Idem, p. 145.

133 COSTA, Rogério Haesbaert da. Des-territorialização e identidade – A rede gaúcha no Nordeste. Rio de

A cultura gaúcha, que hoje pode ser identificada com evidentes reducionismos por meio da figura do gaúcho típico e seus hábitos, começou a ser formada numa rede de relações em que a questão territorial era primordial. A evolução dessa questão alterou os contornos dessa figura, como descrevem Magnoli, Oliveira e Menegotto:134

Na verdade, o gaúcho é personagem característico dos dois lados da incerta e móvel fronteira entre os territórios coloniais das coroas ibéricas. Do lado de lá, era o mestiço de espanhóis e índios. Do lado de cá, o mestiço de portugueses e índios. Uns e outros viviam como vaqueiros livres, numa área onde a delimitação dos pastos e propriedades encontrava-se incipiente. Os vaqueiros geralmente não tinham família e eventualmente saqueavam gado. Muitos falavam o guarani, recheado com termos portugueses ou espanhóis. Vagando pelas coxilhas, constituíam bandos armados pouco hierarquizados, numa época em que a presença do escravo era ainda tênue nas “terras de ninguém” da faixa fronteiriça. O gado abundante, o churrasco coletivo, as correrias a cavalo e os valores guerreiros fixaram uma cultura regional específica, muito distinta das vigentes nos núcleos da América Portuguesa. Uma outra figura comum nesse território de transição e de permissividades, e que ajudou a moldar a imagem do gaúcho sempre em movimento – distante, portanto, do sedentarismo – era a do contrabandista. Guilhermino César afirma que a vida continentina no século XVIII foi marcada por um contrabando intenso e variado, que tanto abarcava os couros como o gado em pé, mais panos europeus, ferro, prata peruana, escravos, sal, erva-mate e fumo. De boleadeiras na mão e armas nos ombros, os forasteiros que chegavam nessa área, interessados em adonar-se dela, “só puderam subsistir e crescer em função de uma mobilidade permanente, graças à qual conheceram enérgicos contatos de culturas.”135

No contexto de isolamento do Rio Grande do Sul, dos constantes conflitos pelas fronteiras e de liberdade absoluta dos seus primeiros habitantes, é de se esperar que a cultura em formação nesse ambiente não destaque o aspecto religioso enquanto submissão a crenças instituídas, como o catolicismo vigente no resto do Brasil. Mesmo considerando a afirmação do senso comum de que o homem é um animal religioso, Jorge Salis Goulart afirma que o insulamento produz a diminuição da crença. A longa distância entre as poucas paróquias existentes e os conflitos contínuos seriam determinantes de uma postura pouco afeita a rituais de ordem religiosa. “O rio-grandense nunca imitou o padre, e sim o militar. Diante do prestígio deste último se extinguia a precária ação do primeiro” 136

Para Goulart, a associação de religião à presença dos jesuítas espanhóis em solo gaúcho seria outro fator a indicar uma postura pouco religiosa do gaúcho. O desprestígio do padre poderia ser atribuído, em grande parte, ao fracasso dos jesuítas das Missões. “Aliás, a

134 MAGNOLI, Demétrio; OLIVEIRA, Giovana; MENEGOTTO, Ricardo. Op. cit., p. 23.

135 CESAR, Guilhermino. O contrabando no sul do Brasil. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul;

formação do Rio Grande do Sul como parte do resto do Brasil foi um constante combate contra os jesuítas e contra o espírito espanhol que eles incutiam no seio dos povos indígenas”.137

Para o mesmo autor, o sentimento religioso no espírito do gaúcho teria sido transferido para o culto às personalidades de seus guias nos campos de batalha:

Rafael Pinto Bandeira, Borges do Canto, Patrício Correia da Câmara, e mais tarde, Bento Gonçalves, Antônio Neto, David Canabarro, foram os ídolos deste povo, que adorava seus heróis com o mesmo misticismo com que os crentes se prosternam ante os deuses. Por falta de educação clerical, o inato pendor místico, sem nunca desaparecer, se dirigia para aqueles que eram, aqui, senhores de toda a força e do maior prestígio.138

Consideramos relevante a associação que Goulart estabelece entre a fraca religiosidade gaúcha e o insulamento, e mesmo a identificação do gaúcho com o militar e não com o padre. No entanto, devemos relativizar o apontado aspecto de culto a personalidades representantes da ocupação portuguesa e o repúdio à influência clerical espanhola, pois a identidade da região em estudo, em relação ao sentimento de pertença à Coroa portuguesa ou ao Império brasileiro, só foi definida muito depois, quando da delimitação final das fronteiras. No período histórico que estudamos, e do qual nos interessa a fase de fundação, as fronteiras eram móveis. Isso estabelece uma separação entre correntes de estudiosos que defendem a história do Rio Grande do Sul a partir da definitiva ocupação lusitana e aqueles que validam a presença espanhola em solo gaúcho, no caso, a presença missioneira nos Sete Povos.

Para o historiador Fábio Kuhn, repensar a história do Rio Grande do Sul significa romper com certos mitos e desconstruir certas representações do passado que não têm mais muita utilidade analítica para a historiografia contemporânea. A concepção de fronteira da historiografia tradicional seria uma dessa formas de representação idealizada, que supervalorizava as rivalidades e a exclusão entre povoadores hispânicos e lusitanos. “Isso sem falar na exaltação das virtudes quase heróicas de um grupo de colonizadores/conquistadores que garantiu a posse do território rio-grandense para a causa portuguesa e também para o Brasil.”139

Citando exemplo de defensores dessa abordagem, Kühn aponta Moysés Vellinho como construtor de uma narrativa cuja idéia subjacente era a noção de lusitanidade da formação do Rio Grande do Sul. Sobre Vellinho, afirma:

Em Fronteira, um de seus livros mais emblemáticos, os personagens escolhidos são altamente significativos e estão encadeados em uma 137 Idem, p.56.

138 Ibidem, p.61.

seqüência que não permite contestações. Ela se inicia com o fundador de Rio Grande, o brigadeiro Silva Pais, que simboliza a conquista do território; na seqüência, vem André Ribeiro Coutinho, uma figura notável por sua experiência a serviço do Império português, que consolidou o povoamento do território. O terceiro personagem é Gomes Freire, o todo-poderoso do Sul do Brasil, que, com sua atuação in loco, assegurou os interesses lusitanos no Continente; em seguida, vem a dupla Francisco e Rafael Pinto Bandeira, pai e filho que se destacaram como militares e fazendeiros a serviço de uma única causa: a posse portuguesa do Rio Grande. [...] A sagrada família lusitana se realizava com todo o brilhantismo pela atuação desses heróis fundadores, genuinamente portugueses e, por óbvia extensão, brasileiros.140

Segundo Kuhn, essa visão tradicional, além de propagar uma determinação histórica do Rio Grande do Sul como parte do Brasil, também omitia ou minimizava as influências platinas. “Um bom exemplo é a história dos Sete Povos das Missões, que não é considerada como parte da história do Rio Grande do Sul simplesmente porque os jesuítas estavam a serviço da Coroa espanhola.” 141 Kuhn, então, argumenta que a noção de fronteira no período

colonial deve ser relativizada, porque não levava em conta a inexistência de Estados nacionais unificados e territorialmente definidos ao longo do século XVIII.

Não pretendemos aqui esmiuçar essa querela de enfoques sobre as origens da formação do Rio Grande do Sul. Como nosso objeto literário de estudo é o romance O Continente, e nele Erico Verissimo situa a gênese do processo histórico da região em análise nas missões jesuíticas, vamos optar por essa perspectiva. Aliás, a opção do escritor por essa via já assinala o quanto ele defendia uma visão crítica da história oficial e o quanto estava sintonizado com a contemporaneidade. Então, como as missões jesuíticas serão consideradas o episódio fundador do Rio Grande do Sul, na visão de Erico, devemos analisar essa etapa religiosa da história gaúcha.