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2. VALOR E CONCEITOS DE SOLIDARIEDADE, AMIZADE, DIREITO E JUSTIÇA

2.5. A TEORIA MODERNA DE JUSTIÇA

2.5.4. Immanuel Kant

Immanuel Kant131 foi um dos mais importantes e influentes filósofos da

modernidade. Seus estudos e ensinamentos nos campos da Metafísica, Epistemologia, Ética e Estética tiveram grande impacto sobre a maioria dos movimentos filosóficos posteriores.

Três domínios balizam as “Críticas” kantianas: o conhecimento, a ação e o sentimento estético.

A “Crítica da Razão Pura” (1781) foi escrita para determinar as possibilidades do conhecimento e os fundamentos de sua validade. Separar a razão pura da razão ordinária para obter um instrumento de análise do conhecimento e suas motivações.132

Sua investigação filosófica corresponde a um esforço para “se orientar no

pensamento”, sendo que ela deve satisfazer as exigências do “senso comum”. A

filosofia crítica não se satisfaz apenas em apontar as ingenuidades das abordagens ordinárias, mas também em denunciar o excesso de uma razão exageradamente segura de si.

131 Imannuel Kant nasceu em 1724, em Königberg (Prússia Oriental), e morreu em 1804 nessa mesma cidade.

Estudou os clássicos e os matemáticos inicialmente no Colegium Fredericianum, depois na universidade de sua cidade. Em 1755, passa a ensinar como professor catedrático nessa universidade e publica ‘História geral da natureza e teoria sobre o céu’. Em seguida, redige diversos escritos de lógica, moral e física. Sua obra verdadeiramente pessoal se inicia com as três “críticas”: a ‘Crítica da razão pura’, em 1781, ‘a Crítica da razão prática’, em 1788, ‘a Crítica do juízo’, em 1790. O último período de sua vida é marcado por importantes publicações, a mais imponente, ‘Metafísica dos Costumes’ (1796-97). in DENIS, Thourard, Kant, trad. Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p.23.

Por isso, do “senso comum” Kant extrai três máximas, que constituem a base para seu pensamento: a primeira é “pensar por si mesmo”, buscar em sua própria razão o critério da verdade; a segunda, “pensar colocando-se no lugar do

outro” – a razão kantiana, cônscia dos limites da perspectiva de cada um, exige a

livre confrontação com o outro. Por fim, a terceira máxima exige que os pensamentos sejam conseqüentes e coerentes, proibindo que um mesmo sujeito, pensando por si e, ao mesmo tempo, virtualmente por outro, se contradiga.133

Na obra em comento – “Crítica da Razão Pura” -, Kant define os juízos 'a priori' e 'a posteriori', os juízos analíticos e sintéticos, que servirão de estrutura para o desenvolvimento de toda sua teoria.

O Juízo 'a priori' constitui o conhecimento universal e necessário, que não funda sua validade na experiência, como é o caso da física. Já os juízos 'a posteriori' têm na experiência o seu fundamento de validade. 134

Juízos analíticos são aqueles em que o atributo explicita o que já se encontra no sujeito (ex., os corpos são extensos, a esfera é redonda). Nestes casos, o predicado já se encontrava contido no sujeito. Os juízos sintéticos, por sua vez, têm a particularidade de o atributo acrescentar ao sujeito algo que anteriormente não lhe pertencia (ex., a mesa é de madeira, a cadeira é pesada). Há, ainda, as categorias 'a priori' (espaço e tempo), com as quais o entendimento apreende e conhece as coisas. 135

Nos juízos sintéticos 'a posteriori', a experiência ensina que os atributos convêm ao sujeito. Contudo, tais atributos, em razão do seu próprio fundamento, não podem ser considerados necessários e universais, mas particulares e contingentes. 136 Já nos juízos sintéticos 'a priori', o atributo acrescenta algo ao

sujeito, mas de uma forma universal e necessária. 137

Ultrapassando a “Crítica da Razão Pura”, Kant vai se ater na ação moral, a qual afirma que somente será possível se a razão pura for também prática, ou

133Idem, ibidem, pp. 35-37.

134 Cf. DENIS, Thourard, Kant, trad. Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Estação Liberdade, 2004, p. 48 e ss. 135 GARCÍA MORENTE, Manuel. Fundamentos da filosofia. Trad. Guilhermo de la Cruz Coronado. 8 ed.

São Paulo: Mestre Jou, 1980, p. 221

136Idem, Ibidem, p. 223. 137Idem, Ibidem, p.226-227.

seja, se ela não depender de nenhum fator externo, a não ser sua própria força interna. Este é o objeto de análise da “Crítica da Razão Prática” (1788) - segunda fase do desenvolvimento de sua filosofia.

Nela Kant se esforça para resgatar e separar o verdadeiro sujeito da moralidade que é a pessoa, e é precisamente na razão prática que vai se situar o nascedouro de toda concepção jurídica kantiana, desenvolvida na Metafísica dos Costumes.

A razão prática, a consciência moral e seus princípios têm a primazia sobre a razão pura. Em outras palavras, a consciência moral pode alcançar aquilo que a razão teórica não logra, conduzindo às verdades da metafísica. 138

Em sua terceira grande obra – “A Crítica do Juízo” (1790) -, Kant elabora uma teoria do juízo reflexionante: diferente do juízo determinante que subsume o particular ao universal dado, o juízo reflexionante procede a partir do próprio singular.

Nessa obra, Kant pensou nos caracteres transcendentais e individuais. Mais que isso, esforça-se por mostrar a possibilidade de uma reconciliação entre o mundo natural e o da liberdade. A natureza talvez não seja apenas o domínio do determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na organização harmoniosa dos seres vivos.

Todavia, se o princípio de causalidade (determinismo) é constitutivo da experiência (não posso dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de finalidade permanece facultativo, puramente regulador (posso interpretar o agrupamento de certas condições como a manifestação de um fim). Tudo se passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenas é certa: o pássaro voa porque é constituído de tal maneira.

Os valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem uma espécie de reconciliação entre a razão e a imaginação, já que, na contemplação estética, a bela aparência que admiramos parece inteiramente penetrada por valores do espírito. Finalidade sem fim (isto é, harmonia pura, fora de todo móvel exterior à obra de arte), a beleza oferece à nossa imaginação a

oportunidade de uma satisfação inteiramente desinteressada. Ela é, no mundo kantiano, o exemplo único de uma satisfação ao mesmo tempo sensível e pura de todo egoísmo, o momento privilegiado em que uma emoção, que, longe de manifestar meu egoísmo dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem, me "arrebata". 139

Em 1795, Kant escreve um estudo intitulado “À paz perpétua”, em que defende que toda pessoa deve ser bem recebida, bem acolhida, em qualquer parte do mundo. Esta obra é importante, seja para o Direito Internacional, seja como contributo de uma fraternidade universal.

Em sua filosofia do Estado, Kant faz distinção entre Estado e Constituição, descrevendo a última como o que “rege as relações mútuas dos homens e

permite que aos abusos da liberdade por indivíduos em recíproco antagonismo se

oponha uma força legal centrada num todo, chamado sociedade civil”, 140

identificando o Estado como parte de uma constituição mais ampla.

Aliás, isso permite a Kant distinguir na obra – “À paz perpétua” – entre uma constituição republicana e uma democrática. Expondo, também, duas classificações do Estado, uma, tendo como critério a forma de soberania: autocrática, aristocrática e democrática; a outra, em termos de forma de governo: republicana ou despótica. 141

A filosofia moral de Kant afirma que a base para toda razão moral é a capacidade do homem de agir racionalmente. O fundamento para esta lei de Kant é a crença de que uma pessoa deve comportar-se de forma igual à que ela esperaria que outra pessoa se comportasse na mesma situação, tornando, assim, seu próprio comportamento uma lei universal.

Em sua obra “Fundamentos da Metafísica dos Costumes” (1796-1797), desenvolveu os conceitos de imperativo categórico e imperativo hipotético.142

139 THOUARD, Denis, op.cit., p. 152 e ss.

140 KANT, Emmanuel, Crítica à faculdade do juízo, §83, 1790 in CAYGILL, Howard. Trad. Álvaro Cabral –

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 128.

141 Kant, Imannuel. À paz perpétua. in CAYGILL, Howard. Dicionário de Filosofia – Kant. Trad. Álvaro

Cabral – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p.128-129.

É só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar- se em toda sua pujança. A razão teórica tinha necessidade da experiência para não se perder no vácuo da metafísica. A razão prática, isto é, ética, deve, ao contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que seja sensível ou empírico.

Toda ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos, é estranha à moral, mesmo que essa ação seja materialmente boa. Por exemplo: se me empenho por alguém por cálculo interessado ou mesmo por afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e meus sentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A vontade que tem por fim o prazer, a felicidade, fica submetida às flutuações de minha natureza.

Nesse ponto, Kant se opõe não só ao naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista de São Tomás, para quem a felicidade é o fim legítimo de todas as nossas ações.

Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará uma visão moral do mundo, que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo moral não é um imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo (cumpre teu dever se nele satisfazes teu interesse, ou então se teus sentimentos espontâneos a ele te conduzem), mas o imperativo categórico: Cumpre teu dever incondicionalmente.

Em que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a razão se impõe não podem, em nenhum caso, receber um conteúdo da experiência e que devem exprimir a autonomia da razão pura prática, as regras morais só podem consistir na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a máxima de tua ação

possa ser erigida em regra universal" (primeira regra). O respeito pela razão

estende-se ao sujeito racional: "Age sempre de maneira a tratares a humanidade

em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo como um fim e jamais como um simples meio" (segunda regra). Desse modo, o princípio do dever, para ser

absolutamente rigoroso, não implica em nenhuma "alienação", como se diria hoje, em nenhuma "heteronomia", como diz Kant. Para se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens só têm que obedecer às

exigências de sua própria razão: "Age como se fosses ao mesmo tempo

legislador e súdito na república das vontades" (terceira regra).143

O único sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética racionalista é o sentimento do respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria lei moral que o produz em mim; ele me engrandece, ele me realiza como ser racional que obedece à lei moral.

Assim, pelo fato de ser puramente formal, essa moral não propõe, efetivamente, um ato concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou proíbe este ou aquele ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não tenho o direito de mentir, mesmo que me digam: e se todos fizessem o mesmo? A mentira de todos para com todos é contraditória, portanto, proibida. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se como essencialmente negativa. O imperativo categórico é um "proibitivo categórico".

A moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança com relação à natureza humana, aos instintos, às tendências de tudo o que é empírico, passivo, passional ou, como diz Kant, patológico. Tal é o rigorismo kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever, porque é preciso impor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao preço de grande esforço, submeter a humana vontade à lei do dever. Por conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal aos instintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela graça, sentiria uma atração instintiva e irresistível pelos valores morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço que fazemos para submeter nossa natureza às exigências do dever.

Por sua vez, o Direito e a moral se distinguem no sistema kantiano como duas partes de um todo unitário. “Kant distingue um dupla legislação: a legislação

interna, ética (ethisch), que faz do dever o próprio móbil da ação (‘age de acordo com o dever por dever!; handle pfichtgemäss aus Pflicht!), e a legislação externa, jurídica (juridich), que admite outros móbeis além do dever”.144

143 KANT, Fundamentos da metafísica dos costumes, trad. Lourival de Queiroz Henkel. São Paulo: Ediouro,

1997, p. 79 e ss.

144 SERRA, História da filosofia do direito e do estado, 1990, p. 364. Apud BITTAR, Eduardo C.B., op.cit.,

Em outras palavras, o agir ético visa o cumprimento do dever pelo dever, enquanto o agir jurídico pressupõe outros fins, outras metas, outras necessidades interiores e exteriores para que se realize.

Não se realiza uma ação simplesmente conforme a lei positiva, mas também se encontram ações jurídicas que tenham como móvel, v.g., o temor da sanção, prevenção de desgastes inúteis, medo do escândalo, etc.

Convém notar, outrossim, que, para Kant, o estudo da justiça é dividido de acordo com a justiça civil e criminal. A justiça civil apresenta três formas: protetora, comutativa e distributiva; as primeiras se ocupam do direito privado, e a terceira, do direito público. Mas não é só. As duas primeiras formas de justiça estão presentes no estado da natureza, enquanto a última só é possível na “condição civil”, com a existência de um Tribunal para administrar a justiça distributiva. Portanto, ao Estado Judiciário é confiada a tarefa de realizar essa justiça através de uma lei universal. 145

Por sua vez, a justiça criminal é definitivamente retributiva. Nela um tribunal aplica uma pena ao delinqüente que é igual ao crime por ele cometido.146

Por tais razões, o conceito de justiça, igualmente o de direito, concerne unicamente à relação exterior de uma pessoa com a outra; há a ação de uma vontade sobre a outra, no sentido de que se trata de uma relação que reenvia ao arbítrio de outrem.

O indiscutível brilho da filosofia kantiana, que coloca o filósofo dentre os maiores da história da filosofia, não esconde dois problemas.

Primeiro: o cumprimento do imperativo categórico – exclusivamente dever –, no limite, traz o prazer do dever cumprido, o que é um paradoxo, porque contém algo mais do que só dever.

Por outro lado, a idéia de que todos os homens, pela razão, chegariam à mesma verdade é desmentida pela divergência, muitas vezes multifacetada, entre

145 CAYGILL, Howard. Dicionário de Filosofia – Kant. Trad. Álvaro Cabral – Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

2000, p. 213.

os seres. Kant entende que a boa vontade e a razão dão conta do problema, tratando as divergências como erros de avaliação.

A filosofia posterior não se alinha a essas reflexões. Mas a contribuição desse grande filósofo é extraordinária, especialmente na seara da teoria do conhecimento.